“A Imaginária” – Adalgisa Nery
Resenha Livro - “A
Imaginária” – Adalgisa Nery – Editora José Olympio
“Às vezes, o
pensamento me vem, como agora. É como se todos os instantes em que vivi tivessem deixado uma profunda marca sobre as múltiplas facetas do meu ser.
Estou ao
largo da madrugada. Chego à janela aberta. O primeiro plano da paisagem é a rua
asfaltada, cortada por trilhos brilhantes e polidos pelo uso. O segundo plano é
um pequeno morro salpicado de casebres. Sobre todas essas coisas um imenso e
profundo céu, e o silêncio. Se eu pudesse alcançar o cume da mais alta montanha
do universo e varrer com o olhar toda a extensão do globo terrestre, veria que
a única coisa que existe é a solidão”.
Adalgisa Maria
Feliciana Noel Cancela Ferreira (1905/1980) foi escritora, jornalista e
poetisa.
Nascida em 1905
no Rio de Janeiro, sem escolaridade formal, lançou o seu primeiro livro de poesias
em 1937, quando já era viúva e tinha os seus 32 anos de idade.
Teve o mérito de
se tornar uma escritora de talento num tempo em que poucas mulheres poderiam
ter condições de granjear algum reconhecimento no meio literário.
Os seus livros de
poemas, contos e romances foram publicados entre os anos de 1930 até 1970. O direito
feminino ao voto no Brasil é de 1932. A primeira lei do divórcio no Brasil foi
aprovada em 1977 – até então, o casamento, não raramente, poderia equivaler a
uma prisão hedionda. Pouquíssimas mulheres nesse período puderam cursar o
ensino superior – a formação intelectual, quando muito, se dava em torno do
magistério ou nos colégios de freiras.
Rachel de
Queiroz, contemporânea de Adalgisa Nery, também publicaria o seu romance de
estreia, denominado “O Quinze”, nos anos de 1930. O seu retrato realista das
famílias nordestinas retirantes da seca faria com que Graciliano Ramos, ao ler
o livro, duvidasse que ele tivesse sido escrito por uma mulher. Rachel de
Queiroz só seria agraciada como membro da Academia Brasileira de Letras em
1977, mais de quarenta anos depois do seu primeiro e mais impactante romance.
Foram, portanto,
poucas as mulheres que conseguiram vencer as barreiras sociais para conquistar
uma posição de destaque na literatura brasileira. Os exemplos, de fato, não são
muitos: Adalgisa Nery, Rachel de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Carmen
Dolores, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, esta última talvez a mais
conhecida de todas.
A Imaginária
(1959) é um romance autobiográfico.
Nele, a
escritora irá relatar suas experiências desde a infância no bairro das Laranjeiras,
no Rio de Janeiro, até o seu casamento precoce com o pintor Ismael Nery, este último
um precursor do expressionismo e do modernismo nas artes plásticas brasileiras.
Casou-se por amor, aos quinze anos de idade, contrariando sua família. O casamento
com um artista dotado de inteligência incomum trouxe-lhe a oportunidade de
participar de discussões com intelectuais que frequentavam a sua casa – o que pôde
suprir a ausência de escolaridade formal com o aprendizado e a vivência nesses
debates que ocorriam à noite na sala de visitas.
Entretanto, o
matrimônio também lhe traria os horrores de uma vida familiar trágica, envolvendo
uma sogra com lapsos e impulsos de loucura e violência, uma tia beata
profundamente avara e egoísta, a morte precoce de filhos, a infidelidade
conjugal e a completa incompreensão de todos aqueles que a cercam, ignorantes da
sua viva sensibilidade. A mais dolorosa incompreensão vinda do seu marido que, após
13 anos de matrimônio, ainda via sua mulher apenas como uma boa mãe e uma boa
dona de casa, desconhecendo o turbilhão de sentimentos e emoções que dão à
Adalgisa os caracteres de poeta e artista:
“E qual a
categoria a que pertenço? Quais são essas pessoas que formam um grupo? São os
poetas e artistas que possuem no mais alto grau a faculdade de viver não
somente o seu próprio tempo e as suas impressões, mas também a vida exterior e
a vida interior dos outros, através do cálculo da sensibilidade. De sentir não
somente a sua paisagem, a sua raça, mas também a dos outros, de ter consciência
de várias existências como a da própria .”.
A morte precoce
do primeiro marido e as dificuldades de uma mulher solteira, intelectualmente
sofisticada, seriam alguns capítulos de uma vida marcada pelo intenso sofrimento
da alma.
Como mencionado,
este é um livro autobiográfico. Entretanto, falar que “A Imaginária” é uma mero
relato da trajetória de vida da autora seria a mais completa falsificação da
obra.
A sucessão de
eventos da vida da protagonista aparece de forma secundária no livro. A
história é contada em primeira pessoa e apenas incidentalmente descobrimos em
determinada passagem que a narradora se chama Berenice. Ela não atribui nome à
mãe, falecida quando tinha oito anos de idade, nem ao pai, nem aos irmãos, nem à
madrasta. Também não faz alusão ao nome do seu marido. Apenas se refere à sogra
como “a mãe do meu marido”. Como insistentemente se refere a essa personagem
dessa maneira, fica claro ao leitor a sua intencionalidade de sequer qualificá-la
como “sogra” para evidenciar uma relação de não pertencimento à tumultuada família
do esposo – a tal “mãe do meu marido” procuraria culpar o próprio filho pela
doença que o levaria à morte e, depois, passaria a jogar o neto contra sua
nora, incutindo-lhe desconfianças de que Berenice travaria relações com amigos que
frequentavam a casa.
Também não
existem no livro alusões mais detidas sobre o espaço e o tempo. Há a descrição
da casa onde a protagonista viveu, do colégio de freira onde estudou, do
sanatório onde o marido foi internado. Mas não sabemos onde esses lugares estão
situados, não há um nome de uma cidade ou de um país. Também não sabemos bem quando
se passa a história. A narradora fala dos seus sentimentos e eles adquirem uma
dimensão universal, na medida em que pouco sabemos sobre os nomes dos
envolvidos na trama, das cidades e do país onde vivem e da conjuntura histórica
em que estão situados.
O motivo principal do romance é, portanto, as
cogitações da protagonista, dotada de uma sensibilidade dilacerante, que irá voltar
sua energia para descrever a percepção do mundo e das pessoas a sua volta – o cotidiano
não é a fonte da história, mas um meio de revelação da alma da poetiza. “O
fato de eu pensar no meu próprio pensamento me faz compreender a minha
incompreensão”, afirma a protagonista em determinado momento.
E esse
deslumbramento das suas próprias emoções, somado à profunda capacidade de
compreender os outros e a si própria, será uma fonte constante de angústia.
O sofrimento é a
lei inescapável da vida. Ao ponto da protagonista em determinado momento afirmar
inexistir a felicidade, mas apenas meros hiatos entre uma ou outra forma de
derivação do sofrimento. Não tem, entretanto, nenhum pendor ao papel de vítima.
Não esboça revolta contra as injustiças, mesmo quando seu marido, no leito da morte,
confessa o caso extraconjugal. Procura ver a vida com resignação, que só pode
ser alcançada através de uma profunda capacidade de compreensão do outro.
Sempre através da sua sensibilidade exacerbada e, nas palavras da escritora, “monstruosa”,
a poetiza sofre mas compreende com naturalidade esse sofrimento.
O livro é uma
viagem profunda da narradora dentro de si mesma através do exercício da
introspecção. Um paralelo poderia ser traçado aqui com o livro “Angústia” (1936)
de Graciliano Ramos, talvez o mais introspectivo livro do grande escritor
alagoano. Os dois livros, “Angústia” e “A Imaginária” são um relato em primeira
pessoa de uma história pessoal, cujos eventos principais cedem espaço aos
efeitos desses mesmos eventos sobre as emoções do narrador. No caso de
Angústia, esse movimento irá dar causa à loucura do protagonista Luís da Silva.
Já no caso de “A Imaginária”, a introspecção dará ensejo à aceitação da vida
como ela é, a resignação como produto da compreensão mais profunda dos outros e
duas suas próprias razões.

Nenhum comentário:
Postar um comentário