domingo, 23 de novembro de 2025

“A Imaginária” – Adalgisa Nery

 “A Imaginária” – Adalgisa Nery



Resenha Livro - “A Imaginária” – Adalgisa Nery – Editora José Olympio

“Às vezes, o pensamento me vem, como agora. É como se todos os instantes em que vivi tivessem deixado uma profunda marca sobre as múltiplas facetas do meu ser.

Estou ao largo da madrugada. Chego à janela aberta. O primeiro plano da paisagem é a rua asfaltada, cortada por trilhos brilhantes e polidos pelo uso. O segundo plano é um pequeno morro salpicado de casebres. Sobre todas essas coisas um imenso e profundo céu, e o silêncio. Se eu pudesse alcançar o cume da mais alta montanha do universo e varrer com o olhar toda a extensão do globo terrestre, veria que a única coisa que existe é a solidão”.

Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira (1905/1980) foi escritora, jornalista e poetisa.

Nascida em 1905 no Rio de Janeiro, sem escolaridade formal, lançou o seu primeiro livro de poesias em 1937, quando já era viúva e tinha os seus 32 anos de idade.

Teve o mérito de se tornar uma escritora de talento num tempo em que poucas mulheres poderiam ter condições de granjear algum reconhecimento no meio literário.

Os seus livros de poemas, contos e romances foram publicados entre os anos de 1930 até 1970. O direito feminino ao voto no Brasil é de 1932. A primeira lei do divórcio no Brasil foi aprovada em 1977 – até então, o casamento, não raramente, poderia equivaler a uma prisão hedionda. Pouquíssimas mulheres nesse período puderam cursar o ensino superior – a formação intelectual, quando muito, se dava em torno do magistério ou nos colégios de freiras.   

Rachel de Queiroz, contemporânea de Adalgisa Nery, também publicaria o seu romance de estreia, denominado “O Quinze”, nos anos de 1930. O seu retrato realista das famílias nordestinas retirantes da seca faria com que Graciliano Ramos, ao ler o livro, duvidasse que ele tivesse sido escrito por uma mulher. Rachel de Queiroz só seria agraciada como membro da Academia Brasileira de Letras em 1977, mais de quarenta anos depois do seu primeiro e mais impactante romance.

Foram, portanto, poucas as mulheres que conseguiram vencer as barreiras sociais para conquistar uma posição de destaque na literatura brasileira. Os exemplos, de fato, não são muitos: Adalgisa Nery, Rachel de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Carmen Dolores, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, esta última talvez a mais conhecida de todas.   

A Imaginária (1959) é um romance autobiográfico.

Nele, a escritora irá relatar suas experiências desde a infância no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, até o seu casamento precoce com o pintor Ismael Nery, este último um precursor do expressionismo e do modernismo nas artes plásticas brasileiras. Casou-se por amor, aos quinze anos de idade, contrariando sua família. O casamento com um artista dotado de inteligência incomum trouxe-lhe a oportunidade de participar de discussões com intelectuais que frequentavam a sua casa – o que pôde suprir a ausência de escolaridade formal com o aprendizado e a vivência nesses debates que ocorriam à noite na sala de visitas.  

Entretanto, o matrimônio também lhe traria os horrores de uma vida familiar trágica, envolvendo uma sogra com lapsos e impulsos de loucura e violência, uma tia beata profundamente avara e egoísta, a morte precoce de filhos, a infidelidade conjugal e a completa incompreensão de todos aqueles que a cercam, ignorantes da sua viva sensibilidade. A mais dolorosa incompreensão vinda do seu marido que, após 13 anos de matrimônio, ainda via sua mulher apenas como uma boa mãe e uma boa dona de casa, desconhecendo o turbilhão de sentimentos e emoções que dão à Adalgisa os caracteres de poeta e artista:

“E qual a categoria a que pertenço? Quais são essas pessoas que formam um grupo? São os poetas e artistas que possuem no mais alto grau a faculdade de viver não somente o seu próprio tempo e as suas impressões, mas também a vida exterior e a vida interior dos outros, através do cálculo da sensibilidade. De sentir não somente a sua paisagem, a sua raça, mas também a dos outros, de ter consciência de várias existências como a da própria .”.

A morte precoce do primeiro marido e as dificuldades de uma mulher solteira, intelectualmente sofisticada, seriam alguns capítulos de uma vida marcada pelo intenso sofrimento da alma.

Como mencionado, este é um livro autobiográfico. Entretanto, falar que “A Imaginária” é uma mero relato da trajetória de vida da autora seria a mais completa falsificação da obra.  

A sucessão de eventos da vida da protagonista aparece de forma secundária no livro. A história é contada em primeira pessoa e apenas incidentalmente descobrimos em determinada passagem que a narradora se chama Berenice. Ela não atribui nome à mãe, falecida quando tinha oito anos de idade, nem ao pai, nem aos irmãos, nem à madrasta. Também não faz alusão ao nome do seu marido. Apenas se refere à sogra como “a mãe do meu marido”. Como insistentemente se refere a essa personagem dessa maneira, fica claro ao leitor a sua intencionalidade de sequer qualificá-la como “sogra” para evidenciar uma relação de não pertencimento à tumultuada família do esposo – a tal “mãe do meu marido” procuraria culpar o próprio filho pela doença que o levaria à morte e, depois, passaria a jogar o neto contra sua nora, incutindo-lhe desconfianças de que Berenice travaria relações com amigos que frequentavam a casa.

Também não existem no livro alusões mais detidas sobre o espaço e o tempo. Há a descrição da casa onde a protagonista viveu, do colégio de freira onde estudou, do sanatório onde o marido foi internado. Mas não sabemos onde esses lugares estão situados, não há um nome de uma cidade ou de um país. Também não sabemos bem quando se passa a história. A narradora fala dos seus sentimentos e eles adquirem uma dimensão universal, na medida em que pouco sabemos sobre os nomes dos envolvidos na trama, das cidades e do país onde vivem e da conjuntura histórica em que estão situados.

 O motivo principal do romance é, portanto, as cogitações da protagonista, dotada de uma sensibilidade dilacerante, que irá voltar sua energia para descrever a percepção do mundo e das pessoas a sua volta – o cotidiano não é a fonte da história, mas um meio de revelação da alma da poetiza. “O fato de eu pensar no meu próprio pensamento me faz compreender a minha incompreensão”, afirma a protagonista em determinado momento.

E esse deslumbramento das suas próprias emoções, somado à profunda capacidade de compreender os outros e a si própria, será uma fonte constante de angústia.

O sofrimento é a lei inescapável da vida. Ao ponto da protagonista em determinado momento afirmar inexistir a felicidade, mas apenas meros hiatos entre uma ou outra forma de derivação do sofrimento. Não tem, entretanto, nenhum pendor ao papel de vítima. Não esboça revolta contra as injustiças, mesmo quando seu marido, no leito da morte, confessa o caso extraconjugal. Procura ver a vida com resignação, que só pode ser alcançada através de uma profunda capacidade de compreensão do outro. Sempre através da sua sensibilidade exacerbada e, nas palavras da escritora, “monstruosa”, a poetiza sofre mas compreende com naturalidade esse sofrimento.

O livro é uma viagem profunda da narradora dentro de si mesma através do exercício da introspecção. Um paralelo poderia ser traçado aqui com o livro “Angústia” (1936) de Graciliano Ramos, talvez o mais introspectivo livro do grande escritor alagoano. Os dois livros, “Angústia” e “A Imaginária” são um relato em primeira pessoa de uma história pessoal, cujos eventos principais cedem espaço aos efeitos desses mesmos eventos sobre as emoções do narrador. No caso de Angústia, esse movimento irá dar causa à loucura do protagonista Luís da Silva. Já no caso de “A Imaginária”, a introspecção dará ensejo à aceitação da vida como ela é, a resignação como produto da compreensão mais profunda dos outros e duas suas próprias razões.

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