domingo, 21 de dezembro de 2025

“Populações Meridionais do Brasil” – Oliveira Viana

“Populações Meridionais do Brasil” – Oliveira Viana






Resenha Livro - “Populações Meridionais do Brasil” – Oliveira Viana – Edições do Senado Federal V. 27.

Oliveira Viana foi um dos principais formuladores do pensamento conservador brasileiro. Suas ideias serviram como substrato ideológico e referencial teórico do movimento político que conduziu Getúlio Vargas ao poder (1930/1945). Sua oposição frontal ao liberalismo, visto como fonte de desagregação social e anarquia, e sua proposta de constituição de um Estado Nacional, que dê as coordenadas de funcionamento da sociedade, foram reproduzidas na Era Vargas, em especial na sua fase mais autoritária, durante o período do Estado Novo (1937-1945). Da mesma forma como a República Velha encerra uma fase de descentralização política e predomínio das oligarquias regionais, a Revolução de 1930 irá almejar a superação dessas tendências de fragmentação e a imposição de uma ordem institucional unitária, centralizadora e autoritária. Oliveira Viana, neste sentido, defende no plano das ideias aquilo que o movimento getulista implantou na prática.

Foi um herdeiro do castilhismo, movimento de inspiração positivista que defende um Estado intervencionista e que exerça um papel moralizador da sociedade. Não foi entretanto um apóstolo do positivismo: de origem católica, os seus principais interlocutores são Alberto Torres, Silvio Romero e Tobias Barreto.

Em conjunto com esses pensadores, procurou desenvolver uma interpretação original do Brasil, do seu povo e das suas instituições políticas. A grande relevância aqui reside na crítica radical à tendência de se importar sistemas políticos e filosóficos oriundos da Europa, mas não aclimatáveis à sociedade brasileira.

O fracasso do liberalismo no Brasil decorre das particularidades da formação histórica da nacionalidade que o torna incompatível ao nosso meio social – enquanto na Europa o liberalismo surge como uma reação espontânea da burguesia e do Terceiro Estado contra abusos do Estado Absolutista, no Brasil a conformação de uma sociedade baseada na hegemonia dos latifundiários implica num tipo original de relação entre o povo e o Estado Nacional.  

Aqui temos uma sociedade rarefeita, esparsa dentro de um vasto território, dispersa em torno de grandes fazendas e engenhos de características “autárquicas”, que produzem quase tudo do que precisam, sendo presididos por clã familiares que exercem o poder de fato – ao contrário da Europa, o Estado no Brasil surge como um mero espectador das lutas travadas entre os clãs rurais, ou das guerras travadas por esses mesmos senhores de engenho com tribos indígenas furiosas e negros em assaltos,  oriundos do Quilombo.

Para Oliveira Viana, aqui jamais poderia ter germinado o sistema liberal clássico, a despeito das nossas elites políticas, especialmente após a Independência (1822), insistentemente intentarem importar os modelos e arranjos institucionais estrangeiros, seja o parlamentarismo inglês, seja o sistema representativo norte americano, seja o liberalismo político produto da Revolução Francesa.

“Populações Meridionais do Brasil” é o primeiro livro de Oliveira Viana. Foi escrito em 1918, mas só publicado dois anos depois, sob os auspícios de Monteiro Lobato que, ao que consta, foi amigo pessoal do Autor.

Aqui, Oliveira Viana traça uma proposta de trabalho pioneira e ambiciosa. Numa época em que a historiografia brasileira ainda se ressente de sua influência positivista, com sua ênfase nos grandes eventos, nas fontes históricas puramente documentais e oficiais, e na missão meramente descritiva do historiador, Oliveira Viana propõe a assimilação das ciência sociais e das ciências naturais à História.  

Foi tanto historiador, quanto sociólogo e antropólogo. É preciso, para Oliveira Viana, compreender as particularidades e especificidades da sociedade e da psicologia do brasileiro, previamente ao estudo das suas instituições políticas. O Estado Nacional para cumprir o seu papel deve exsurgir naturalmente e estar plenamente aclimatado à conformação da sociedade e ao espírito do povo. Não basta, portanto, a mera história dos grandes eventos, de tipo positivista, pautada na sucessão de governos e formas de regime político – descoberta do Brasil, Capitanias Hereditárias, Governo Geral, I Reinado, Regência, II Reinado, República, etc. O que o Autor procura são as mais remotas origens da personalidade, da psicologia e da moral do brasileiro para, a partir daí, perscrutar a forma como essa sociedade criou as suas instituições políticos, mesmo porque elas nada mais são do que uma necessidade, uma resposta aos problemas criados pela sociedade.  

Oliveira Viana não vê o brasileiro como um povo único, mas como um conjunto de três grandes civilizações: os sertanejos que aparecem com a interiorização da ocupação territorial no nordeste através da pecuária, com as suas figuras messiânicas e o banditismo social dos cangaceiros; os gaúchos nos pampas ao Sul, temperados nas guerras e na animosidade bélica entre os seus caudilhos, que se entrincheiram em suas fazendas, disputando terras na bala com os espanhóis; e finalmente as populações meridionais, situadas na região Centro Sul do país, também denominados de matutos.

As populações meridionais ganham maior prepondância em relação às outras duas civilizações, diante da maior importância econômica e política conferida a essa região do país, desde a abertura do ciclo da mineração, passando pela transferência da corte portuguesa ao Brasil (1808), à Independência (1888), à cultura do café e já no século XX à industrialização. Para Oliveira Viana, são essas populações meridionais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro as mais representativas na conformação do povo brasileiro, ao passo que o gaúcho dos pampas e os sertanejos do nordeste ganham relevância mais regional.

Concordando ou não com esse ponto de vista, deve-se ao menos reconhecer que o grosso da população brasileira habita, trabalha e produz riqueza nesses três estados, até hoje considerados de conjunto o principal centro político e econômico do Brasil.  

Essas populações meridionais surgem através das bandeiras paulistas, que expandem as fronteiras geográficas do país, na atividade de captura dos índios para o trabalho escravo e depois nas expedições em busca do ouro e diamantes a partir do ciclo da mineração. Foram esses sertanistas paulistas que asseguraram a posse das terras onde hoje se situa o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, através da guerra às missões jesuíticas, levando as fronteiras da colônia portuguesa para além dos limites de Tordesilhas. Também são os grandes pioneiros de ocupação do grande centro oeste e norte do país, chegando mesmo a bandeira de Antônio Raposo Tavares espantosamente atingir a pé, partindo de São Paulo, o território do Peru, na sanha pelo eldorado.

Esses sertanistas, que são considerados por Oliveira Viana como a família mais remota das populações meridionais, também pavimentaram a criação de uma unidade cultural e linguística do Brasil.

As bandeiras eram conduzidas por alguns brancos de origem nobre, muitos mamelucos que falam a língua geral e multidões de índios flecheiros conhecedores do território. Inicialmente, fazem as expedições de reconhecimento de território.  Depois,  constituem um curral, depois uma fazenda, depois um engenho, depois um arraial, depois uma povoação e finalmente uma vila. Partindo de um tronco comum, desde São Paulo, as bandeiras levam um mesmo estilo de sociedade e cultura a todos os recantos do país, onde fundam os seus currais e vilas. A língua geral passa a ser falada na maior parte do território e em cada novo arraial se constitui a mesma sociedade de clãs baseados na propriedade agrícola. É como se os sertanista paulistas fosse um povo de origem comum que se lança a ocupar um grande território levando-lhe a sua própria civilização. E aqui se revela a proeminência dessa parcela da população brasileira sobre as outras duas manifestações de caráter mais regional.

As populações meridionais são conduzidas por aquilo que Oliveira Viana irá chamar de “Elite Agrária”, “Nobreza Campesina”, “Nobreza Territorial”, “Potentados Rurais” e “Aristocracia Rural”. O que dá especificidade na formação da sociedade e das instituições políticas no Brasil foi justamente o papel exercido pelos senhores dos engenhos, os latifundiários do café, os empresários da mineração e os estancieiros da pecuária, advindos especialmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Oliveira Viana evidencia uma natureza de clã envolvendo os latifundiários. No passado colonial, o grande proprietário de terra se orgulha em dizer que para suas fazendas apenas importa “ferro, sal, pólvora e chumbo”. Todos os demais produtos de subsistência, incluindo as fontes alimentares, o tecido da roupa e os utensílios domésticos, são produzidos no próprio engenho ou na própria fazenda, tornando-a independente dos centros comerciais das cidades portuárias, onde se situa as autoridades régias delegadas do Império Português. Tudo conspira para que esses clãs e essas fazendas surgem como um Estado dentro do Estado.

Além disso, a grande dimensão territorial do país colabora para o isolacionismo das fazendas. Tudo isso cria as condições para o fortalecimento de clãs familiares que conduzem a política e a jurisdição de todo povo agregado aos Potentados Rurais. Do escravo ao agregado, passando pelos trabalhadores livres e pobres, lavradores e pequenos funcionários estatais, estão subordinados ao grande senhor de terras. É justamente a propriedade de terras e escravos que dá prestígio e não os títulos de nobreza, como na Europa.

Os primeiros dois séculos de colonização, ou seja, de 1500 até 1700, para Oliveira Viana, marca o predomínio absoluto desses clãs familiares, que conduzem do ponto de vista político e institucional, a uma situação de “anarquia” (conceito empregado pelo próprio autor). Os potentados servem-se de um exército de agregados, lavradores destituídos de terras e escravos, que irão ser recrutados nas bandeiras e servir de fonte de defesa militar, seja nas guerras entre os diferentes clãs, seja na defesa da fazenda em face dos ataques de índios, quilombolas e ataques de nações estrangeiras.

Seria apenas com a descoberta das jazidas de ouro, quando do ciclo da mineração, que o Estado deixa o papel de mero espectador da liderança política dos clãs para impor a sua jurisdição – interessava-lhe o controle fiscal absoluto das minas, o que gerou revoltas, a mais conhecida delas a Guerra dos Emboabas (1707-1709).

E assim sucessivamente Oliveira Viana irá evidenciar momentos de centralização e descentralização do poder político no país – ora a predominância dos clãs, que levam à desagregação, ao separatismo e às revoltas, ora a força disciplinadora do Estado, como meio legítimo de impor alguma coesão social e racionalidade na organização da sociedade. É essa controvérsia que irá conduzir as principais discussões políticas do Brasil por todo o século XIX e ainda nos dias de hoje: a disputa parlamentar entre liberais e conservadores, as propostas de descentralização e centralização políticas, os movimentos separatistas e a correspondente reação nacionalista, a predominância dos poderes municipais controlados pelos clãs e a autoridade do Estado Nacional. 

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