sábado, 6 de dezembro de 2025

A História do Padre Cícero

 A História do Padre Cícero



 

Resenha Livro – “Juazeiro do Padre Cícero” – M. B. Lourenço Filho – Ed. Melhoramentos

 

Anualmente, no mês de março, ocorre a Romaria de Padre Cícero na cidade do Juazeiro do Norte, onde o líder messiânico desenvolveu sua atividade religiosa e política. A peregrinação envolve milhares de romeiros que lá se dirigem para agradecer e pagar as suas promessas atendidas. É um movimento popular espontâneo que fortalece a identidade cultural do país em torno de um catolicismo aclimatado à alma do povo sertanejo. Transcorridos quase cem anos desde a morte do líder carismático cearense, as romarias em sua homenagem chegam a reunir centenas de milhares de pessoas, denotando o potencial nacional revolucionário e engajador do movimento de romarias em torno de Cícero Romão Batista, o Padre Cícero.

Entretanto, se esse aspecto cultural e religioso se revelam como a face mais positiva do padre, o seu envolvimento político junto à oligarquia Acyoly e ao deputado/jagunço Floro Bartolomeu parecem revelar os traços mais negativos dessa figura carismática e profundamente contraditória.  

 Cícero Romão Batista nasceu em 1844 na cidade do Crato, no interior do Ceará. Quando tinha 16 anos de idade matriculou-se num seminário de padres dirigido por um duro clérigo chamado Inácio de Sousa Rolim. Consta que ao final dos estudos, a liderança da escola recomendou a não ordenação do futuro messias como padre, por ter demonstrado ser uma pessoa excessivamente obstinada. Foi necessária a intervenção de um coronel próximo da família de Cícero demandando junto à escola que ele fosse finalmente admitido como padre.

O líder religioso foi ordenado em 1870. Naquela época, mais de 80% da população do Ceará era analfabeta e havia em todo o estado cerca de 40 padres. A atividade desses jovens missionários não era propriamente constituir um terreno fixo de ação em torno de uma paróquia. Eles tinham que percorrer léguas a fio, através de uma atividade de andarilhos, para contemplar todo aquele vasto sertão nordestino, com suas cidades longínquas. Naquela época, o padre seguia de cidade em cidade, e em cada parada, além de ministrar as missas, abençoa os açudes e os animais, para que fossem atendidas as preces pelas chuvas. Atendem os pedidos dos beatos e quando os milagres acontecem, atribuem-nos à benção do padre. Em certo sentido, essa atividade tem como origem mais remota as missões jesuíticas por meio dos quais os religiosos se lançavam aos cantos mais longínquos do território, ao norte e ao sul, para catequizar índios bravios no meio do mato.  

Além de Padre Cícero, outro que desempenhou essa atividade de padre andarilho foi Antônio Conselheiro, que depois se tornou o grande líder da Guerra de Canudos. 

No ano de 1890 ocorreria o grande evento milagroso que consagraria a popularidade do Padre Cícero. Ao ministrar uma hóstia para a beata Maria de Araújo, constatou-se a transformação dessa hóstia em sangue. O fato foi testemunhado pelas diversas outras pessoas e a boato se disseminou como pólvora sertão a dentro. Logo, essa hóstia transformada em sangue foi descrita pelo povo como o sangue de cristo, e a terra onde ele foi derramado como uma terra sagrada. Essa terra é Juazeiro, a cidade onde ocorreu o milagre e onde se criou o mito político e religioso em torno de Padre Cícero.

Diante da popularização do padre pelo milagre de Maria de Araújo, sua autoridade perante o povo do Cariri iria despertar o interesse das oligarquias políticas que dirigiam o estado do Ceará. De todo o conhecido coronelismo familiar dos estados do nordeste, parece que o Ceará é aquele em que o tom familiar das oligarquias é dos mais evidentes. Na época de Padre Cícero, o estado era governado há tempos imemoriais pelo clã Acyoly

Naquele contexto ocorreu a "Política das Salvações" (1910-1914) do presidente Hermes da Fonseca por meio do qual o governo federal começou a intervir na política dos estados, nomeando governadores e destituindo as oligarquias locais, inclusive através do uso da força. Isso ocorreu o Ceará, quando apearam do poder a família Acyoly. Esse clã familiar se apoiou na popularidade do Padre Cícero para travar uma contraofensiva política naquilo que ficou conhecido com a sedição de Juazeiro (1913/1914).

Aqui entra na história a figura de Floro Bartolomeu, um médico e rábula que se internou no sertão de Cariri, onde travou relações pessoais com o Padre Cícero. Conquistou a confiança íntima do missionário ao ponto de se tornar uma espécie de “braço político” do movimento religioso do Padre Cícero. Floro Bartolomeu constituiu um exército de Jagunços de milhares de homens e ajudou a fazer de Juazeiro uma trincheira contra o governo ilegítimo de Fortaleza, imposto dentro da Política das Salvações. Enquanto o Padre Cícero mantinha sua autoridade moral e religiosa perante o povo do Cariri, Floro Bartolomeu se credenciou como a sua liderança política e militar.

A sedição de Juazeiro foi um movimento de revolta contra o Governo Estadual. Inicialmente, o povo em armas em muito se assemelha com a campanha de Canudos. Jagunços e fanáticos religiosos fizeram de Juazeiro uma trincheira militar e travaram uma guerra de guerrilha contra expedições mandadas desde Fortaleza. Nas duas primeiras campanhas, o exército popular do Padre Cícero sagrou-se vitorioso. Não contentes, os milicianos de Juazeiro levaram adiante uma marcha em direção à capital, passando por vilarejos e povoados, onde saqueavam e destruíam as casas e bens de todos aqueles que tinham ligação com o governo ilegítimo de Fortaleza. Os fanáticos apenas respeitavam as imagens e quadros sagrados nas casas, roubando e destruindo todo o resto. Alcançaram finalmente a capital e depuseram o governador Franco Rabelo em 15 de março de 1914.

Desde então, o movimento dirigido por Floro Bartolomeu e por Padre Cícero, cada qual representando a frente político-militar e espiritual, se tornam a principal força política do Ceará. Posteriormente, Bartolomeu seria eleito Deputado Federal e da Tribuna no Rio de Janeiro faria a defesa dos interesses das oligarquias regionais ligadas à figura do Santo Padre.

No testamento de Padre Cícero se nota um esforço do religioso em se dissociar dos eventos políticos que levaram ao movimento sedicioso de 1913/1914. No texto declara que “nunca desejou ser político” e que apenas autorizou que o nome dele fosse utilizado na campanha política de 1913/1914 “a pedido da população dessa terra”.

Neste sentido, há bastante controvérsia em torno do tipo exato de relacionamento existente entre Padre Cícero e Floro Bartolomeu, desde aqueles que defendem que o clérigo agia sob pressão da política local dos coroneis, emprestando a sua popularidade aos interesses do clã Acyoly, até outros que entendem ser Bartolomeu um mero testa de ferro de iniciativas de cunho político advindas do próprio padre.

Esse mesmo testamento revela a existência de um vasto acervo de bens, especialmente terras, no nome do Padre Cícero, o que não parece se coadunar com a figura de um santo ascético.   

Assim, a figura do Padre Cícero se revela aos olhos daqueles que estudam a sua história bastante contraditória.

A fama de santo milagreiro e a sua atividade puramente religiosa criaram condições para a existência de um movimento popular espontâneo e de massas, que traz à tona uma forma de catolicismo aclimatado à pobreza do sertão, voltado à devoção aos santos da Igreja Católica e aos apelos do imaginário do sertanejo e do povo simples. Do ponto de vista cultural, as romarias, que existem até hoje, são uma expressão de uma religiosidade profundamente emotiva e devocional, que devem ser saudada por todos aqueles que amam o Brasil, já que reforçam a existência de uma identidade cultural que fortalece o nacionalismo e o amor pelo país.

Já do ponto de vista puramente político, Padre Cícero talvez revele aqui a sua faceta mais negativa: mesmo nos dias de hoje, a sua fama e o seu nome são explorados pelas oligarquias regionais, que se servem dos mitos em torno do santo milagreiro para manutenção da ordem social baseada no latifúndio, no coronelismo, na desigualdade social e na violência contra qualquer tipo de movimento contestatório.

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