“Diogo Álvares – O Caramuru”
Resenha Livro – “O Caramuru –
Aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil” – João Ribeiro – Livraria
Sá da Costa – Editora Largo do Poço Novo – Lisboa – 1935
Diogo Álvares (1475-1557), mais
conhecido como o “Caramuru”, foi o primeiro desbravador das terras onde hoje se
situa o Estado da Bahia. Sua importância reside no fato de ter preparado o
terreno para a ocupação portuguesa do território recém descoberto, trazendo ao
convívio dos portugueses os índios tapuias disposto ao convívio pacífico, que o
viam como uma liderança com feições sobre humanas.
Esse português que foi alçado à
condição de fundador da nacionalidade brasileira aportou no Brasil nos
primeiros instantes da chamada “descoberta” em 1500.
Muitos historiadores, a começar por
Afrânio Peixoto, muito propriamente dizem ser mais apropriado falar em
“achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo “achar” remete à ideia de
algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas
as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava
da existência do território onde hoje se situa o Brasil.
A própria data da assinatura do
Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só
dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se
descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de
demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do
território brasileiro: se o tratado é anterior à 1500, presume-se que já se
tinha noção da existência das terras de Santa Cruz, depois batizada de Brasil.
Outra forte evidência do conhecimento
do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim
Afonso de 1530 para reconhecimento, exploração e defesa do território em face do
assédio das demais potências marítimas, especialmente os franceses. Na
expedição de reconhecimento foram localizados portugueses degredados que provavelmente
já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João
Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do
bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes de
1500.
Muito provavelmente, a expedição de
Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão
de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente. Já se tinha
alguma noção da existência desse território – por questões geopolíticas, eram
informações tratadas como segredo de estado entre as duas principais potências
marítimas, Espanha e Portugal. Degredados eram despejados no litoral para travarem
as primeiras relações com os índios bárbaros, pavimentando o caminho da
colonização. A grande expedição dirigida por Cabral que aportou em 1500 foi
apenas, neste sentido, um ato oficial de consumação das descobertas.
Diogo Álvares, ou o Caramuru, aportou
nas praias da Bahia após um acidente que levou ao naufrágio e a morte a maior
parte dos tripulantes. Sobreviveram apenas 7, que foram acossados pelos índios e
tornados prisioneiros. Conforme a prática daqueles povos, alimentavam e
engordavam os prisioneiros para depois comê-los. Todos os navegantes foram
vítimas no ritual antropofágico, exceto Diogo, que consegue escapar num momento
em que os tapuias se vêm obrigados a enfrentar o ataque de uma tribo rival.
Sozinho e doente, Diogo consegue
resgatar da embarcação que naufragou algumas armas que lhe garantiriam a
sobrevivência. Encontrou escudos de guerra, capacetes, pólvora, espingarda e
balas. Ao manejar a arma de fogo e dar tiros ao ar, apavora os índios que o vêm
como um ente sobrenatural capaz de provocar raios e trovões. Relacionado às
crenças mitológicas dos indígenas, o português é temido e adorado por
manifestar poderes sobre humanos através das armas de fogo e dos recursos da
pólvora. À noite, na escuridão, utilizando a pólvora, Diogo magicamente acende
o fogo que ilumina, assombrando os índios que só sabiam fazer a luz com muito
esforço, esfregando pedações de madeira uns com os outros.
Conforme conta o historiador João
Ribeiro, os índios “por isso ficam atônitos ao ver a chama nascer tão
rapidamente do fuzil de ferro. Julgam que ela vem do céu ou que nasce das mãos
de Diogo. E mais se persuadem do poder sobrenatural que nele creem existir”.
Utilizando mais a astúcia e a inteligência
do que a força física, o Caramuru consegue exercer prestígio e influência sobre
os indígenas.
O nome Caramuru vem do espanto dos
índios com o barulho da arma de fogo. Existe alguma controvérsia em torno da
origem da palavra no idioma do índio, mas a versão mais conhecida é que se
trata do nome de um peixe violento que ao atacar faz um som parecido com os
tiros de pólvora.
Alçado à condição de um líder com
poderes sobrenaturais, o Caramuru se envolve nas guerras dos tapuias contra os caités.
Diante da superioridade das armas de fogo, impõe a derrota aos inimigos dos tapuias.
A ele é dada a mão da filha do chefe Gupeva,
a bela e desejada Paraguaçú. Trata-se da primeira família brasileira e da mais
antiga linha genealógica do nosso país.
Residindo no litoral da Bahia, o
Caramuru trava relações com os navegantes portugueses, espanhóis e franceses
que aqui transitam em busca do pau brasil. Ele exerce o papel de articulador e
mediador daqueles dois povos.
Dentro da mitologia criada em torno da
sua figura, ele é descrito como o agente que leva os índios selvagens à
salvação pela fé e aos hábitos da civilização europeia. Usando da ameaça de
suas armas, proíbe os índios de praticarem a antropofagia. Leva aos índios os
ensinamentos do cristianismo e os mobiliza para defender os interesses da
Monarquia Portuguesa e do Rei.
Escolhe Paraguaçú como esposa e, após travar
relações com navegantes franceses, consegue fazer uma viagem levando consigo sua
companheira à França, onde é recebido pela Corte. A bela índia é batizada e
recebe o nome de Catarina. O casal fica três anos na Europa e retorna à Bahia,
onde o Caramuru segue exercendo o papel de proeminência perante os índios do
litoral.
Essa importância conferida ao Caramuru
se evidencia quando o próprio Rei de Portugal recomenda Diogo Álvares a Tomé de
Souza, o primeiro governador geral do Brasil. Após o insucesso da maioria das
capitanias hereditárias, foi instituído o Governo Geral (1548) como uma
primeira tentativa de centralização política administrativa com a constituição
de cargos e funções para assuntos de natureza judicial, financeira e militar.
O primeiro governo geral teve como
sede a Bahia, onde Tomé de Souza fundou a cidade de Salvador, chamada “São Salvador
da Bahia de Todos os Santos”. O primeiro governador geral desembarcou na
colônia em 29 de março de 1549 e contou com a colaboração decisiva do Caramuru
para fundar a primeira capital do Brasil.
Deixando de lado o mito, a figura de
Caramuru evidencia aquilo que Darcy Ribeiro, no seu livro “O Povo Brasileiro”
(1995), caracteriza como a instituição social que pavimentou a formação do povo
brasileiro. A essa instituição ele atribui o nome de “cunhadismo”. Trata-se de
um velho uso indígena “de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia
em lhe dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia,
automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo”.
A mestiçagem que caracteriza a gênese
do povo brasileiro se inicia através das relações sexuais abertas e desregradas
dos portugueses com as índias – ao contrário das colônias de ocupação ao norte,
quando as famílias entram transplantadas para o novo mundo, no Brasil, uma
colônia de exportação, sem a presença da mulher branca, as primeiras famílias
eram aqui constituídas pela relação do português com a índia, formando os
mamelucos, ou seja, os primeiros brasileiros.
A criação de laços de parentesco
amplo, com europeus travando relações poligâmicas com as índias, a despeito da
censura dos jesuítas, foi o que Darcy Ribeiro chamou de cunhadismo, prática sem
a qual era impraticável a crianção do Brasil.
Os primeiros povoadores, como o
Caramuru, consistiam em alguns poucos náufragos ou degredados, além de
marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os nativos. Em pouco número,
por si sós, teriam passado desapercebido se não tivessem sido assimilados pelos
grupos indígenas e inseridos como parte de uma mesma família.
Bibliografia:
BARROS, João. “O Caramuru: aventuras
prodigiosas dum português colonizador do Brasil”.
RIBEIRO, Darcy. “Formação do Povo
Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”.
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