terça-feira, 1 de novembro de 2016

“Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard

“Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard

Resenha Livro - “Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard – Edições do Senado Federal Vol. 13




Quadro – Índios do Amazonas Adorando o Sol - Auguste Françoise Biard - 1860
           

O mais provável é que August Biard seja reconhecido por suas telas, pinturas e desenhos correspondentes ao período em que esteve no Brasil, de maio de 1858 até fins de 1859. São realmente belas fontes visuais que nos transportam a um país em que ainda há todos os matizes e aspectos da sociedade colonial, a começar pela escravidão, ainda vigente.

Este “Dois Anos No Brasil” corresponde a uma espécie de relato de viagem deste pintor, desenhista e caricaturista francês, muito bem escrito por sinal, e que dá um tom impressionista através das palavras. O autor percorreu das cidades do Rio de Janeiro diante de uma feira de compra e venda de escravos até o longínquo afluente Rio Madeira do Amazonas de onde pintou traços vivos da Tribo Munducuru. A leitura deste relato de viagem deste já abre duas grandes possibilidades àqueles que desejam aprofundar os estudos sobre o passado, particularmente o período colonial Brasileiro: (i) o próprio entendimento das fontes visuais correspondente aos diversos quadros e pinturas legados por Biard e outros; (ii) o que, parece-nos, algo ainda mais interessante, qual seja, um outro tipo de olhar sobre a realidade nacional que é informada pelo olhar estrangeiro, o olhar do “outro”. Quanto ao segundo ponto, é necessário sempre fazer mediações, a começar pelo período histórico em que a obra foi redigida e as possibilidades teórico metodológicas que de resto estavam comprometidas num momento em que sequer se cogita a ideia da História enquanto uma disciplina com metodologia, com método próprio. Nem nos parece sequer ter sido a ideia/intenção de Biard  escrever um livro de História, com cuidados e rigores metodológicos. O que queremos chamar atenção é que temos em mãos um olhar desde fora e que possibilita exsurgir interpretações ou leituras que eventualmente passassem batido por nacionais que, ao viverem e experimentarem a realidade tal qual ela se manifesta, podem naturalizar o que é fenômeno histórico, contingencial e produto de decisões políticas/jurídicas/administrativas/transitórias.

Biard manifesta grande estranheza com o fato dos dejetos humanos serem no Rio de Janeiro de meados do séc. XIX (sede da corte Imperial) displicentemente jogados ao mar à vista de todos, por exemplo. A chaga da escravidão não é só a base da força de trabalho mas manifesta-se naquilo que L. Althusser chama de sobredeterminação, qual seja, tem profundo conteúdo ideológico, o que não passa desapercebido pelo olhar do viajante francês. Ainda na Corte, Biard deseja fazer pinturas aproveitando os belos relevos da cidade do Rio de Janeiro e, em que pese poder perfeitamente carregar suas telas e pinceis, foi notificado de que no Brasil não cairia nada bem um homem branco como ele andar publicamente sem um escravo que lhe carregasse tais objetos – obrigando-o meio a contragosto a procurar um serviçal.

Como dissemos, o relato de viagem de Biard ajuda-nos a compreender outras fontes visuais que são obra de estrangeiros que em período equivalente, também passaram pelo Brasil e retrataram nossa sociedade e costumes. Citamos Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que viajou por todo o Brasil durante o período de 1822 a 1825 – seu trabalho "Negres a fond de calle" ("Navio negreiro") representa o poema épico "Navio Negreiro" do poeta Castro Alves. Este mesmo pintor tem uma gravura muito conhecida denominada “Capitão do Mato” de 1823 que serviu de capa de uma das edições do ensaio “Retrato do Brasil” de Paulo Prado. Rugendas pintou temas referentes à capoeira (uma iniciativa dos negros que era proibida ao seu tempo) e festas populares como a “Dança do Lundu”. 

Outro importante artista, na esteira de Rugendas e Biard, foi o francês Jean B. Debret. Foi pintor, desenhista e professor. Integrou a missão Artística Francesa que esteve atrelada à inciativa da vinda da família imperial em terras brasileiras em 1808 e fundou no Rio de Janeiro a Academia de Artes e Ofícios. Debret pintou temas interessantes sobre o ambiente doméstico em que se identifica as relações mais íntimas entre brancos e os negros na esfera do lar, sendo uma de suas mais famosas peças, um jantar brasileiro de 1827 em que as interpretações podem vacilar desde um conservadorismo do tipo do de Gilberto Freyre que irá propugnar após toda uma série de reflexões sobre a mistura racial no Brasil a tese da “democracia racial”, até interpretações que observarão o problema da exploração do trabalho, da violência que informa o instituto da escravidão (mesmo no ambiente doméstico) e que verá no quadro de uma mulher alimentando uma criança negra na cozinha pelas mãos aos pés quase algo como a mesma iniciativa daquele que alimenta seu cão de estimação. (O que é indiscutível é a natureza jurídica de “res”[1] do escravo).

A Viagem de Biard

“Soberbo o nascer do sol a 1º de maio. Eu passara a noite inteira no convés vivamente impressionado por um singular efeito no céu desde que transpuséramos o equador. Frequentemente surgia no firmamento límpido extensa nuvem opaca, quase preta, e foi acima de uma dessa nuvens ameaçadoras que me apareceu pela primeira vez a constelação do Cruzeiro do Sul, somente visível no hemisfério austral. Já se sumira há dias a estrela polar e muitos dentre nós não a tornaríamos a ver. Este pensamento me entristeceu. Todavia, ao avistar esses astros novos, como que sentia mais a distância aberta entre mim e os meus, dando-me ânsias de regressar para junto deles o mais depressa possível. Em meio dessas meditações, desses projetos de volta, como interrogasse intensamente o horizonte, vai se formar outra nuvem em breves instantes substituindo a que atravessara já o espaço. Pareceu-me distinguir também algumas aves. Redobrou-se-me a atenção. Sinais de árvores no fundo do céu, semelhantes a pontos escuros flutuantes. Levanto-me, contendo-me a respiração; não, não estou enganado. Tenho a América diante de meus olhos.”.

A trajetória da Biard, desde a Europa, depois de uma pequena escala em Inglaterra e Portugal (Lisboa), segue o roteiro: Ilha da Madeira; Pernambuco; Bahia; RJ (donde passa 6 meses); Província de ES e Colônia de Santa Cruz (mais 6 meses); RJ; PA (por onde viaja pelo Rio Negro); Manaus (37 graus na sombra); Rio Amazonas e Rio Madeira. Daqui Biard retorna exausto e doente em face do calor, picadas de mosquitos que o deixam com olhos e narizes inflamados e  fraqueza em face da comida à base de banana, queijo duro e peixe seco.

Certamente, a grande contribuição deste relato de viagem são as valiosas  fontes de informação acerca da história do cotidiano, das relações sociais e da cultura num contexto em que o país, recém saído da emancipação política, em quase tudo resguardava os aspectos essenciais do regime colonial. Na Bahia, Biard observa um fato inusitado, mas que de certo modo informa como o instituto da escravidão resistia naquela sociedade. Escravos carregam seus donos sob cadeirinhas e numa rua estreita observa-se um bate boca em que duas mulatas madames sob as respectivas cadeirinhas exigem passagem criando um impasse. De outro lado, Biard observa que a suspensão efetiva do tráfico de escravos (1850) acabou favorecendo a qualidade de vida dos cativos, ao menos parcialmente. Biard considera que os escravos brasileiros tendem a ser mais bem tratados do que os seus pares norte-americanos, a depender ao menos do seu dono: chegou mesmo a presenciar cena de escravo que fugira justamente após ser alienado por um dono que até então, ao que tudo indica, era um proprietário benevolente. De todo modo, com o fim do tráfico de escravos, houve aumento no preço dos escravos e menor prática de punição corporal. Aliás, Biard verifica que colonos que vêm à terra com promessas de aqui angariar meios de vida através do desforço na agricultura têm vida mais difícil que os próprios escravos:

“Em regra, a vida do escravo no Brasil é bem mais suportável do que a dos infelizes colonos, como os quais nem sempre se cumpre o que se prometeu ao tentá-lo no seu próprio país. Vêem-se pelas ruas desditosos filhos de todas as terras: pálidos, magros, pedindo pão. Vi dois chineses, um deles cego, receber uma esmola de um negro.”

Há uma interface curiosa entre um diagnóstico presente em “Dois Anos no Brasil” e “Macunaína” de Mário de Andrade. Observa-se apenas uma passagem do relato de viagem de bordo do viajante francês em que ele se aventura a cogitações políticas. Vejamos:

“Presenciara inúmeras vezes discussões políticas, nem sempre compreendidas direito. Diziam uns que o Brasil seria um dia presa de aventureiros americanos; afirmavam outros que em breve o Norte se separaria do Sul, tornando-se república, forma de governo aliás que o resto acabaria também adotando. Sobretudo achavam que tais acontecimentos seriam consequências da dificuldade de se substituir a raça negra, máxime não houvesse auxílio dos colonos. Faltavam braços e que futuro poderia ter uma terra que não produzisse? Ouvira muitas outras coisas e talvez todos, ao mesmo tempo, tivessem razões. Por minha parte, depois que passara a viver nas florestas, arriscava também minha opinião política, a meu jeito, e minhas reflexões, desta vez, encontravam berço na história das invasões.

O Brasil fora conquistado pelos portugueses; por algum tempo os holandeses dominaram aqui, mas depois os portugueses conseguiram desalojá-los; da fusão destes últimos com os indígenas se originou a raça brasileira. As tribos selvagens foram pouco a pouco se refugiando no interior do País e, dizem, virá uma época em que outros povos substituirão os brasileiros. De mim julgava que, se tal acontecer, inevitáveis inimigos, a seu tempo, porão em fuga vencedores e vencidos e ficarão unicamente os senhores desta bela e magnífica terra. Incontáveis legiões cavam há cem anos minas subterrâneas; exércitos mais numerosos que as areais da praia se espalham sem que possam ser contidos; tangidos de um lado, eles voltam mais encarniçados de outra parte. Eis os verdadeiros inimigos do Brasil: os que têm compelido tribos inteiras a se mudar de uma zona para outra, abandonando suas casas e o solo em que nasceram – são as formigas. Falo seriamente: vi móveis maciços e enormes portas de madeiras resistente como ferro se desmancharem como pó”.

O que parece ser diagnóstico discutível quanto às raízes das grandes questões nacionais, ao menos coincide com uma máxima de um dos maiores romances modernistas brasileiros: “pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são”. E de resto, Biard enfrentou no Rio de Janeiro de 1858 na única hospedaria disponível do RJ um quarto sem janela todo ele infestado de baratas pelo chão. Ao longo da viagem seria acometido de picadas de mosquitos, formigas, além de lidar com bicho do pé, carrapato, bichos de galinha, mariposas e ratos. A Febre Amarela assustava toda a população do Rio de Janeiro e fazia com que as classes ricas deixassem a cidade a cada ciclo da doença – os rumores dos perigos da doença já chegavam até a Europa.

Cuidados Finais

Biard é além de pintor um típico naturalista do século XIX: é colecionador de orquídeas, entomologista (especialista em insetos) e na viagem dedica bons momentos em caçar animais, como jaguares, sapos e cobras para sua coleção pessoal. É um homem de seu tempo e certamente o que poderíamos ponderar como ponto baixo de seu relato são algumas passagens de cunho racista, em face dos negros e especialmente em face dos índios. Biard cria desconfiança com os Índios que o acompanham e tira conclusões de que os mesmo têm tendências indolentes e traiçoeiras ("o índio não demonstra seus sentimentos por expressão facial"), além de demonstrar pensar que os nativos são movidos pelo interesse da cachaça. Desde o séc. XIX e particularmente em fins deste século, ganha relevo o determinismo, segundo o qual as heranças do meio geográfico ou da raça são fatores essenciais e inescusáveis na conformação da personalidade; o darwinismo social que seria uma solução de continuidade entre o propósito do imperialismo e o neocolonialismo e uma ideia de missão civilizatória relacionada ao “fardo do homem branco” são justificativas ideológicas para expedições de europeus em Ásia, África e mesmo América Latina num claro sentido de dominação sócio econômica; as teses de Lombroso e o direito penal associado à conformação do fenótipo também dão sustentação às teses racistas. Com tais considerações, queremos sempre encorajar o leitor a conhecer “Dois Anos no Brasil” a despeito de alguns lapsos racistas que estão intimamente ligados ao contexto da obra e do autor.

É uma obra escrita que remonta bastante aos quadros e desenhos do autor. Temos acesso particularmente a detalhes da história do Brasil que passam batido à história oficial mas que vão ser observados aos olhos de alguém que vê detalhes – um pintor de talento. O observador que descobre a ave Arara e aprende que o bicho tem este nome/fonema justamente por casa do som/canto que produz; descobre um monarca do tipo distinto dos seus pares europeus, uma vez que D. Pedro II não só despachava pessoalmente, como recebia pessoas humildes, ao contrário do que ocorria na Europa donde as solicitações eram feitas indiretamente por bilhetes e só junto à nobreza; aprende-se até uma prática curiosa dos populares negros-escravos jogarem petecas nos transeuntes e soltarem grandes gargalhadas - Biard releva a brincadeira diante da triste sorte dos negros escravos. Estamos diante da plenitude da história do cotidiano do Brasil que mal saiu do seu estatuto de colônia mas que ainda mantêm sua herança de séculos daquele estatuto: escravidão, latifúndio, a mais profunda desigualdade econômica associada à certa centralização política que criaria um impasse solucionado com o advento da República.    
    




Biard, François-Auguste (1862)
Os Mundurucu às margens de um afluente do rio Madeira





[1] Coisa. 

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