“Dois
Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard
Resenha
Livro - “Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard – Edições do Senado
Federal Vol. 13
Quadro
– Índios do Amazonas Adorando o Sol - Auguste Françoise Biard - 1860
O mais provável é que August Biard
seja reconhecido por suas telas, pinturas e desenhos correspondentes ao período
em que esteve no Brasil, de maio de 1858 até fins de 1859. São realmente belas
fontes visuais que nos transportam a um país em que ainda há todos os matizes e
aspectos da sociedade colonial, a começar pela escravidão, ainda vigente.
Este “Dois
Anos No Brasil” corresponde a uma espécie de relato de viagem deste pintor,
desenhista e caricaturista francês, muito bem escrito por sinal, e que dá um
tom impressionista através das palavras. O autor percorreu das cidades do Rio de
Janeiro diante de uma feira de compra e venda de escravos até o longínquo
afluente Rio Madeira do Amazonas de onde pintou traços vivos da Tribo
Munducuru. A leitura deste relato de viagem deste já abre duas grandes
possibilidades àqueles que desejam aprofundar os estudos sobre o passado,
particularmente o período colonial Brasileiro: (i) o próprio entendimento das
fontes visuais correspondente aos diversos quadros e pinturas legados por Biard
e outros; (ii) o que, parece-nos, algo ainda mais
interessante, qual seja, um outro tipo de olhar sobre a realidade nacional que
é informada pelo olhar estrangeiro, o olhar do “outro”. Quanto ao segundo
ponto, é necessário sempre fazer mediações, a começar pelo período histórico em
que a obra foi redigida e as possibilidades teórico metodológicas que de resto
estavam comprometidas num momento em que sequer se cogita a ideia da História
enquanto uma disciplina com metodologia, com método próprio. Nem nos parece sequer
ter sido a ideia/intenção de Biard escrever
um livro de História, com cuidados e rigores metodológicos. O que queremos
chamar atenção é que temos em mãos um olhar desde fora e que possibilita
exsurgir interpretações ou leituras que eventualmente passassem batido por
nacionais que, ao viverem e experimentarem a realidade tal qual ela se manifesta, podem naturalizar o que é fenômeno histórico, contingencial e
produto de decisões políticas/jurídicas/administrativas/transitórias.
Biard
manifesta grande estranheza com o fato dos dejetos humanos serem no Rio de
Janeiro de meados do séc. XIX (sede da corte Imperial) displicentemente jogados ao mar à vista de todos, por exemplo. A chaga da escravidão não é só a base da
força de trabalho mas manifesta-se naquilo que L. Althusser chama de
sobredeterminação, qual seja, tem profundo conteúdo ideológico, o que não passa
desapercebido pelo olhar do viajante francês. Ainda na Corte, Biard deseja fazer
pinturas aproveitando os belos relevos da cidade do Rio de Janeiro e, em que
pese poder perfeitamente carregar suas telas e pinceis, foi notificado de que no
Brasil não cairia nada bem um homem branco como ele andar publicamente sem um
escravo que lhe carregasse tais objetos – obrigando-o meio a contragosto a
procurar um serviçal.
Como
dissemos, o relato de viagem de Biard ajuda-nos a compreender outras fontes
visuais que são obra de estrangeiros que em período equivalente, também
passaram pelo Brasil e retrataram nossa sociedade e costumes. Citamos Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que
viajou por todo o Brasil durante o período de 1822 a 1825 – seu trabalho
"Negres a fond de calle" ("Navio negreiro")
representa o poema épico "Navio Negreiro" do poeta Castro Alves. Este
mesmo pintor tem uma gravura muito conhecida denominada “Capitão do Mato” de
1823 que serviu de capa de uma das edições do ensaio “Retrato do Brasil” de
Paulo Prado. Rugendas pintou temas referentes à capoeira (uma iniciativa dos
negros que era proibida ao seu tempo) e festas populares como a “Dança do Lundu”.
Outro importante artista, na esteira de Rugendas e Biard, foi o francês Jean B.
Debret. Foi pintor, desenhista e professor. Integrou a missão Artística
Francesa que esteve atrelada à inciativa da vinda da família imperial em terras
brasileiras em 1808 e fundou no Rio de Janeiro a Academia de Artes e Ofícios. Debret
pintou temas interessantes sobre o ambiente doméstico em que se identifica as
relações mais íntimas entre brancos e os negros na esfera do lar, sendo uma de
suas mais famosas peças, um jantar brasileiro de 1827 em que as interpretações
podem vacilar desde um conservadorismo do tipo do de Gilberto Freyre que irá
propugnar após toda uma série de reflexões sobre a mistura racial no Brasil a
tese da “democracia racial”, até interpretações que observarão o problema da
exploração do trabalho, da violência que informa o instituto da escravidão
(mesmo no ambiente doméstico) e que verá no quadro de uma mulher alimentando uma
criança negra na cozinha pelas mãos aos pés quase algo como a mesma iniciativa
daquele que alimenta seu cão de estimação. (O que é indiscutível é a natureza jurídica de “res”[1] do escravo).
A Viagem de Biard
“Soberbo o nascer do sol a 1º de maio. Eu passara a noite
inteira no convés vivamente impressionado por um singular efeito no céu desde
que transpuséramos o equador. Frequentemente surgia no firmamento límpido
extensa nuvem opaca, quase preta, e foi acima de uma dessa nuvens ameaçadoras
que me apareceu pela primeira vez a constelação do Cruzeiro do Sul, somente
visível no hemisfério austral. Já se sumira há dias a estrela polar e muitos
dentre nós não a tornaríamos a ver. Este pensamento me entristeceu. Todavia, ao
avistar esses astros novos, como que sentia mais a distância aberta entre mim e
os meus, dando-me ânsias de regressar para junto deles o mais depressa
possível. Em meio dessas meditações, desses projetos de volta, como
interrogasse intensamente o horizonte, vai se formar outra nuvem em breves
instantes substituindo a que atravessara já o espaço. Pareceu-me distinguir
também algumas aves. Redobrou-se-me a atenção. Sinais de árvores no fundo do
céu, semelhantes a pontos escuros flutuantes. Levanto-me, contendo-me a
respiração; não, não estou enganado. Tenho a América diante de meus olhos.”.
A trajetória
da Biard, desde a Europa, depois de uma pequena escala em Inglaterra e Portugal
(Lisboa), segue o roteiro: Ilha da Madeira; Pernambuco; Bahia; RJ (donde passa
6 meses); Província de ES e Colônia de Santa Cruz (mais 6 meses); RJ; PA (por
onde viaja pelo Rio Negro); Manaus (37 graus na sombra); Rio Amazonas e Rio Madeira.
Daqui Biard retorna exausto e doente em face do calor, picadas de mosquitos que
o deixam com olhos e narizes inflamados e fraqueza em face da comida à base de banana,
queijo duro e peixe seco.
Certamente,
a grande contribuição deste relato de viagem são as valiosas fontes de informação acerca da história do
cotidiano, das relações sociais e da cultura num contexto em que o país, recém
saído da emancipação política, em quase tudo resguardava os aspectos essenciais
do regime colonial. Na Bahia, Biard observa um fato inusitado, mas que de certo
modo informa como o instituto da escravidão resistia naquela sociedade.
Escravos carregam seus donos sob cadeirinhas e numa rua estreita observa-se um
bate boca em que duas mulatas madames sob as respectivas cadeirinhas exigem
passagem criando um impasse. De outro lado, Biard observa que a suspensão
efetiva do tráfico de escravos (1850) acabou favorecendo a qualidade de vida dos cativos,
ao menos parcialmente. Biard considera que os escravos brasileiros tendem a ser
mais bem tratados do que os seus pares norte-americanos, a depender ao menos do seu
dono: chegou mesmo a presenciar cena de escravo que fugira justamente após ser
alienado por um dono que até então, ao que tudo indica, era um proprietário
benevolente. De todo modo, com o fim do tráfico de escravos, houve aumento no
preço dos escravos e menor prática de punição corporal. Aliás, Biard verifica
que colonos que vêm à terra com promessas de aqui angariar meios de vida
através do desforço na agricultura têm vida mais difícil que os próprios
escravos:
“Em regra, a vida do escravo no Brasil é bem mais suportável
do que a dos infelizes colonos, como os quais nem sempre se cumpre o que se
prometeu ao tentá-lo no seu próprio país. Vêem-se pelas ruas desditosos filhos
de todas as terras: pálidos, magros, pedindo pão. Vi dois chineses, um deles cego,
receber uma esmola de um negro.”
Há uma interface curiosa entre um diagnóstico presente em “Dois
Anos no Brasil” e “Macunaína” de Mário de Andrade. Observa-se apenas uma
passagem do relato de viagem de bordo do viajante francês em que ele se
aventura a cogitações políticas. Vejamos:
“Presenciara inúmeras vezes discussões políticas, nem sempre
compreendidas direito. Diziam uns que o Brasil seria um dia presa de
aventureiros americanos; afirmavam outros que em breve o Norte se separaria do
Sul, tornando-se república, forma de governo aliás que o resto acabaria também
adotando. Sobretudo achavam que tais acontecimentos seriam consequências da
dificuldade de se substituir a raça negra, máxime não houvesse auxílio dos
colonos. Faltavam braços e que futuro poderia ter uma terra que não produzisse?
Ouvira muitas outras coisas e talvez todos, ao mesmo tempo, tivessem razões.
Por minha parte, depois que passara a viver nas florestas, arriscava também
minha opinião política, a meu jeito, e minhas reflexões, desta vez, encontravam
berço na história das invasões.
O Brasil fora conquistado pelos portugueses; por algum tempo
os holandeses dominaram aqui, mas depois os portugueses conseguiram
desalojá-los; da fusão destes últimos com os indígenas se originou a raça
brasileira. As tribos selvagens foram pouco a pouco se refugiando no interior
do País e, dizem, virá uma época em que outros povos substituirão os
brasileiros. De mim julgava que, se tal acontecer, inevitáveis inimigos, a seu
tempo, porão em fuga vencedores e vencidos e ficarão unicamente os senhores
desta bela e magnífica terra. Incontáveis legiões cavam há cem anos minas
subterrâneas; exércitos mais numerosos que as areais da praia se espalham sem
que possam ser contidos; tangidos de um lado, eles voltam mais encarniçados de
outra parte. Eis os verdadeiros inimigos do Brasil: os que têm compelido tribos
inteiras a se mudar de uma zona para outra, abandonando suas casas e o solo em
que nasceram – são as formigas. Falo seriamente: vi móveis maciços e enormes
portas de madeiras resistente como ferro se desmancharem como pó”.
O que parece ser diagnóstico discutível quanto às raízes das
grandes questões nacionais, ao menos coincide com uma máxima de um dos maiores
romances modernistas brasileiros: “pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil
são”. E de resto, Biard enfrentou no Rio de Janeiro de 1858 na única hospedaria
disponível do RJ um quarto sem janela todo ele infestado de baratas pelo chão.
Ao longo da viagem seria acometido de picadas de mosquitos, formigas, além de
lidar com bicho do pé, carrapato, bichos de galinha, mariposas e ratos. A Febre
Amarela assustava toda a população do Rio de Janeiro e fazia com que as classes
ricas deixassem a cidade a cada ciclo da doença – os rumores dos perigos da
doença já chegavam até a Europa.
Cuidados Finais
Biard é além de pintor um típico naturalista do século XIX: é
colecionador de orquídeas, entomologista (especialista em insetos) e na viagem
dedica bons momentos em caçar animais, como jaguares, sapos e cobras para sua
coleção pessoal. É um homem de seu tempo e certamente o que poderíamos ponderar
como ponto baixo de seu relato são algumas passagens de cunho racista, em face
dos negros e especialmente em face dos índios. Biard cria desconfiança com os Índios
que o acompanham e tira conclusões de que os mesmo têm tendências indolentes e
traiçoeiras ("o índio não demonstra seus sentimentos por expressão facial"), além
de demonstrar pensar que os nativos são movidos pelo interesse da cachaça.
Desde o séc. XIX e particularmente em fins deste século, ganha relevo o
determinismo, segundo o qual as heranças do meio geográfico ou da raça são
fatores essenciais e inescusáveis na conformação da personalidade; o darwinismo
social que seria uma solução de continuidade entre o propósito do imperialismo
e o neocolonialismo e uma ideia de missão civilizatória relacionada ao “fardo
do homem branco” são justificativas ideológicas para expedições de europeus em
Ásia, África e mesmo América Latina num claro sentido de dominação sócio
econômica; as teses de Lombroso e o direito penal associado à conformação do
fenótipo também dão sustentação às teses racistas. Com tais considerações,
queremos sempre encorajar o leitor a conhecer “Dois Anos no Brasil” a despeito
de alguns lapsos racistas que estão intimamente ligados ao contexto da obra e
do autor.
É uma obra escrita que remonta bastante aos quadros e
desenhos do autor. Temos acesso particularmente a detalhes da história do Brasil
que passam batido à história oficial mas que vão ser observados aos olhos de
alguém que vê detalhes – um pintor de talento. O observador que descobre a ave
Arara e aprende que o bicho tem este nome/fonema justamente por casa do som/canto
que produz; descobre um monarca do tipo distinto dos seus pares europeus, uma
vez que D. Pedro II não só despachava pessoalmente, como recebia pessoas
humildes, ao contrário do que ocorria na Europa donde as solicitações eram
feitas indiretamente por bilhetes e só junto à nobreza; aprende-se até uma
prática curiosa dos populares negros-escravos jogarem petecas nos transeuntes e
soltarem grandes gargalhadas - Biard releva a brincadeira diante da triste
sorte dos negros escravos. Estamos diante da plenitude da história do cotidiano
do Brasil que mal saiu do seu estatuto de colônia mas que ainda mantêm sua
herança de séculos daquele estatuto: escravidão, latifúndio, a mais profunda
desigualdade econômica associada à certa centralização política que criaria um impasse solucionado com o advento da República.
Biard, François-Auguste (1862)
Os Mundurucu às margens de um afluente do rio Madeira
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