“Escritos Avulsos II” – Machado de Assis
Resenha Livro - “Escritos Avulsos II” – Machado de Assis –
Ed. Globo
É quase trivial a afirmativa segundo a qual Machado de Assis
é “um dos maiores escritores das letras brasileiras”. Podemos dizer sem exagero
que a obra Machadiana tem um estatuto universal e ombreia clássicos que
transcendem o tempo e as fronteiras geográficas: Machado de Assis é um clássico
da literatura universal tal qual Dostoiévski com suas façanhas “Crime e Castigo”
e “O Idiota”, Fernando Pessoa e seus respectivos heterônimos e Shakespeare com
uma produção vasta, apenas para ilustrarmos respectivamente exemplos do
romance, da poesia e do teatro.
Tal estatuto universal em Machado de Assis diz respeito
particularmente aos seus contos e romances (gêneros literários que mais
possibilitaram exsurgir seu talento) e especificamente à segunda fase de sua
produção artística. Como se sabe, o autor fluminense costuma ter sua produção
literária dividida em dois grandes turnos. Num primeiro momento, romances como “Helena”
(1876), “Ressureição” (1872) ou “Iaiá Garcia” (1878) se situam na terceira fase
do romantismo brasileiro. São romances de estilo folhetinesco, geralmente situados
em ambiente urbanos e restringindo a tendência de forte idealização/platonismo
amoroso que informava a questão sentimental da segunda fase do romantismo, o
período byronista. Adverte-se aqui que falamos em “estilo” folhetinesco, ou
seja, uma prosa associada ao periodismo/jornalismo e mesmo dirigida a um certo
público feminino leitor dos jornais, que acompanhavam as tramas a cada dia –
tal qual as telenovelas mais recentes. Mesmo porque o salto qualitativo em
Machado de Assis a partir do qual se funda uma nova escola literária dá-se
também com um romance publicado na forma de folhetim, uma “novela” de março a
dezembro de 1880, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Qual é o salto de qualidade de 1881, ano de publicação das
Memórias de Brás Cubas?
Brás Cubas é um defunto autor ou um autor defunto. Inicia as
suas “Memórias” após uma experiência traumática cheia de simbolismos em que a
morte surge-lhe como a Natureza, com um gênero feminino – e em seus delírio vê
passar a história de toda a humanidade. O expediente de tratar de suas memórias
após a morte serve como mecanismo que dá vazão aos segredos mais íntimos da
alma e do coração. A morte cria as reais possibilidades de se exprimir com uma
verdadeira indiferença em face do olhar do outro – afinal trata-se sempre de um
autor defunto ou de um defunto autor. Tal efeito cria a possibilidade de uma
narrativa franca, excessivamente franca. Como diria em certo conto de Machado
de Assis, a verdade é osso duro de roer,
in verbis:
SERMÃO DO DIABO
(....)
16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas
cumpri ao Senhor os teus Juramentos.
17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade, nua e
crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de
tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que
nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas”.
O realismo literário envolverá uma arguta análise
psicológica das personagens, a crítica social e dos costumes, a objetividade em
detrimento da subjetividade na descrição dos ambientes e pessoas, uma certa
conexão com concepções positivistas a partir das quais haveria a possibilidade
de observar e reproduzir fielmente a realidade (propósito levado adiante com
maior intencionalidade pelo naturalismo). E um aspecto que em Machado de Assis
nos é fundamental para compreender os contos em comento: se no romantismo, o
amor e o casamento são frequentemente motivos de realização pessoal, no
realismo, descambam o amor e o casamento corriqueiramente no trágico-cômico e
são o pretexto para atestar a personalidade mesquinha, egoísta, interesseira,
de um ser humano com motivações distintas daquele herói romântico dos romances
de Alencar e das primeiras obras do romantismo brasileiro, por ex.
Ainda quanto ao estilo, Machado de Assis, em sua fase
derradeira, ganha um refinamento no humor e na ironia, e passam a ser
frequentes certos lances imaginativos e criativos de diálogo com o próprio leitor,
remissões a filósofos e tiradas retóricas – sempre num tom humorístico.
Aliás, chega a ser impressionante como alguém sem escolaridade superior e auto- data, advindo do Morro do Livramento, filho de pintor de paredes e de lavadeira, neto de escravos alforriados, mulato e gago, com todos estes predicados, enfim, ter ascendido culturalmente e ter sido reconhecido em sua época, num país ainda eivado pela chaga da escravidão. Em romances, contos e crônicas há citações em francês, latim, inglês, remete-se a filósofos, destacando-se sempre Montaigne e filósofos gregos.
Consta que Machado de Assis
era um leitor compulsivo e conhecia as obras de Gustave Flaubert, E. Zola,
Balzac, Shakespeare, Pascal e Shopenhauer, entre outros. É muito comum observar
citações de termos jurídicos em sua prosa, utilizados fora do contexto
processual, mas dentro do escopo de uma prosa, seja de um conto, crônica ou
romance: o que é interessante é que, ao contrário da grande maioria dos bacharéis
de sua época que se aventuravam no mundo das letras e tinham o diploma de
direito, parece que Machado de Assis foi assimilando os conceitos jurídicos
como redator jornalístico do “Diário do Rio” ao cobrir as sessões do Senado. E
pode-se sempre reparar como os termos jurídicos são utilizados com precisão, ao
contrário de um jornalismo contemporâneo tacanho até mesmo no acerto da língua
portuguesa, confundindo o “furto” com o “roubo”.
Estes “Escritos Avulsos II” correspondem a uma compilação de
autoria da Editora Globo. Boa parte destes contos foi primeiro publicada sob
nome “Relíquias da Casa Velha” (1906). Alguns dos Contos foram publicados por
Machado de Assis entre 1874-78 no “Jornal da Família” e outros no “Jornal
Estação” em 1882. E aqui reside o interesse singular desta coletânea: se o
ponto de virada da obra de Machado de Assis, do romantismo ao realismo se situa
no Romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”(1881), é possível encontrar
embaralhados nestes contos desde prosas com caracteres que pendem para o romantismo e para o realismo como “História Comum” (em função da sacada filosófica e do
refinado humor) ou “Uma Carta” - cujo final destoa bastante dos motivos
amorosos associados à realização através do amor, mas antes ao efeito trágico-cômico:
“Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só,
Celestina deixou cair uma lágrima – e foi a última que o amor lhe arrancou”.
Celestina era uma solteirona de 39 anos e “não era bonita”.
Recebeu uma carta de amor anônima pelas mãos intermediárias de uma escrava e
exultou, pensando ter um admirador secreto.
“Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que
era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de
Celestina de uma vida desusada (obsoleta). Com efeito, durante a noite, esteve
ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos
outros”.
A decepção advém da descoberta de que a carta não era
destinada a Celestina: a escrava cometera um engano e a missiva tinha como
destinatária a irmã Joaninha.
Outros contos parecem ter o estilo folhetinesco associado
àquele público feminino leitor de jornais, citadino e eventualmente pouco afeto
a uma literatura com maiores possibilidades de reflexão acerca da consciência
das personagem e especialmente da crítica social daquele tempo. É o caso do conto
“O Caso Romualdo”.
Aqui é como se houvessem todos os ingredientes para um desfecho realista, mas
se observa o procedimento contrário: D. Carlota é uma jovem viúva desejada por
Romualdo, amigo do de cujus (falecido). Todavia, o morto, quando convalescia,
esteva fora da corte donde morava com a esposa e obteve do amigo Romualdo a
promessa de que a esposa ou se conservasse viúva ou se casasse com um advogado
chamado Dr. Andrade. Tal promessa cria um impasse para
Romualdo e vejamos qual
o procedimento literário a partir do qual a consciência da personagem nos é
revelada:
“Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava
certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade
com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro.
Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se
havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio termo: obedecer
à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair
segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto
era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes,
ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe
falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.”
Em que pese as vacilações, Romualdo adimpliu com as
obrigações a despeito de seus interesses individuais: esta não é a regra quando
observamos o tratamento da questão sentimental e do amor no contexto do
realismo literário.
O que é certo é que existem nos contos de Machado de Assis
fenômeno similar aos romances. Os contos de feitio romântico não têm o humor e
ironia, as possibilidades de reflexões filosóficas por meio da análise
psicológica que se extraem por exemplo de “O Alienista”[1]
(1882). Todavia, reiteramos que tanto as obras “juvenis” quanto de “maturidade”
de Machado de Assis devem ser conhecidas, não só pelos méritos artísticos, mas
como preciosas fontes acerca do passado brasileiro do Segundo Império,
particularmente o ambiente urbano fluminense, as lojas da famosa Rua do
Ouvidor, o amplo leque social desde uma alta, média e pequenos camada de proprietários
e funcionários públicos (Ex. advogados, comendadores, parlamentares, militares,
jornalistas, estudantes, médicos etc.) enfim, as relações sociais e culturais
que perpassam as histórias, especialmente em face da tendência narrativa
objetiva de Machado de Assis. Sua narrativa confere a possibilidade de se
adentrar à intimidade doméstica dos lares burgueses do Brasil do II reinado,
incluindo passagens críticas (sutis) acerca das contradições envolvendo a força
de trabalho escrava.
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