quarta-feira, 31 de agosto de 2016

“Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro

“Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro



Resenha Livro - 235 - “Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro – Ed. Quartier Latin

“Uma vez estabelecida a forma de troca de equivalentes, estabelece-se igualmente a forma do direito, a forma do poder público, isto é, estatal, e, por conseguinte, esta permanece, ainda durante algum tempo, mesmo quando já não exista a divisão de classes. O aniquilamento do direito e com ele o do Estado só acontece, segundo a concepção de Marx, quando “o trabalho não é apenas um meio de viver, mas ele próprio se transforma na primeira necessidade vital”; quando com o desenvolvimento universal do indivíduo tenham aumentado também as próprias forças produtivas; quando todos os indivíduos trabalhem voluntariamente segundo suas capacidades ou, como diz Lênin, quando se tenha ultrapassado “o horizonte limitado do direito burguês que obriga a fazer cálculos com a aspereza de um Shylock: terei eu trabalhado meia hora a mais do que o vizinho?”, numa palavra enfim, quando a forma da relação de equivalências tiver sido definitivamente ultrapassada”. 
PASHUKANIS. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo, Acadêmica, 1988.  

Alysson Leandro Mascaro é Doutor e Livre Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. É um dos principais expoentes do pensamento crítico do Direito do país.

Este trabalho corresponde à sua tese de doutorado defendida na FDUSP em Outubro de 2002. O tema da dissertação versa sobre a dimensão ideológica do discurso da legalidade em face da sociedade capitalista em sua dinâmica na história: o problema da legalidade confrontado com a reprodução mercantil, à execução dos contratos e à defesa da propriedade privada; o tratamento dado ao direito e legalidade pelo capitalismo; o problema da legalidade em face da evolução histórica brasileira com destaques para o período da redemocratização e para a consolidação de institutos de direito processual que, na década de 1990, sintomaticamente, revelariam a falsa universalidade da qual se reveste o discurso do direito: a lei dos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9099/95) e a Lei de Arbitragem (9307/96), ambos institutos com interfaces importantes com as políticas neoliberais hegemônicas daquele período.

Assim, o intuito do trabalho pode ser deduzido:

“Esclarecer as bases últimas das contradições jurídicas de nossos tempos – a legalidade que exalta a igualdade entre todos é, ao mesmo tempo, a chanceladora da desigualdade real – é partir para mais além da denúncia da corrupção dos tempos, dos homens ou de suas funções. Entender os mecanismos históricos e sociais que constroem, ao mesmo tempo, o império da igualdade formal e a miséria da desigualdade social, é buscar os nexos mais fundamentais da estrutura social, a separação que não é só a que a lei não logrou juntar, mas aquela que se dá na própria exploração do trabalho e da produção, no conflito de classes e na desigualdade de condições que faz com que a apropriação não seja conforme as necessidades, e sim calcada no excesso para alguns e na carência para a maioria”. (Pg. 15)

E como método para o desvendar as contradições jurídicas que vislumbre desigualdade flagrante entre igualdade jurídica e igualdade real ou legalidade e justiça, Mascaro certamente não trilha o mesmo caminho da esmagadora maioria dos juristas, o Juspositivismo.

O Juspositismo, corrente jusfilosófica dominante dentre os juristas, equipara o Direito ao “Direito posto”, à legalidade ou à norma emanada pelo Estado. Não é à toa que seu maior expoente é o jurista alemão Hans Kelsen, cujo programa “Teoria Pura do Direito”, propugna uma ideia de Direito axiologicamente neutro, totalmente livre de cogitações relacionadas à ética, à moral e à justiça. Já percebe-se bem aqui uma clara relação entre o programa juspositivista e a dimensão ideológica do direito burguês cuja pretensão de universalidade omite os interesses classistas, considerando a vocação do direito da burguesia de fazer perpetuar uma sociedade profundamente injusta e dividida em classes.

Para a “Crítica da Legalidade”, Mascaro serve-se assim da teoria crítica que remonta em última análise ao Marxismo e a Marx. É certo que é possível falar num pensamento crítico moderno anterior à Marx, presente no iluminismo ou mesmo na filosofia analítica. Mas aqui existe uma enorme distância qualitativa. Na “crítica” dos Iluministas, o horizonte possível restringia-se à “crítica do objeto nos seus próprios termos” ou mesmo na filosofia analítica, num recorte do objeto em inúmeras frações, mas sem com isso romper com estruturas do objeto. O salto qualitativo da noção crítica em Marx dá-se com sua “Contribuição à Crítica da Economia Política” e “O Capital”. Para além de uma crítica do objeto em seus próprios termos, Marx desloca o próprio objeto e vislumbra o problema sob uma nova perspectiva. Considerando sua diferenciação entre a Economia Política Clássica (Ricardo e Smith) e Vulgar (Malthus), Marx se apropria de alguns elementos do que de melhor a burguesia foi capaz de formular em seu momento de ascensão e compreensão, mas sobrepõe a esta compreensão novas categorias fundamentais como as ideias de estrutura e superestrutura (“Contribuição da Crítica da Economia Política”), mais valia relativa, mais valia absoluta (“O capital”) etc.

Dentro da perspectiva crítica, destacando-se uma compreensão em que ganham peso as contradições, a processualidade e o sentido da história, verifica-se que o Direito é um fenômeno essencialmente moderno, que se desenvolve de acordo com as exigências específicas do desenvolvimento do capitalismo.

“Quando o Iluminismo, Rousseau, Kant e outros mais derrubaram na filosofia o absolutismo, chegaram ao cume teórico de um movimento teórico que a prática já havia conquistado. A vitória das leis sobre o arbítrio dos homens acompanhou a vitória do capitalismo sobre as formas econômicas que lhe eram anteriores. A liberdade dentro das leis, princípio da legalidade, era a irmã da liberdade no mercado, no qual se compra ou se vende a partir da própria vontade. A igualdade formal, que serviu de lema das revoluções liberais, é o espelho de um mundo feito um grande mercado, no qual todos se igualam na condição de compradores e de vendedores, no qual até a exploração deixa de ser um mando direto de um senhor sobre um escravo e passa a ser a igual vontade jurídica de patrão e proletário. A vitória da legalidade é a vitória de um mundo feito um grande mercado”. (Pg. 21)

Alguns poderão se opor a estas teses dizendo que sociedades escravagistas como a romana também conheceram o direito sendo latente inclusive a importação de alguns de seus institutos ao nosso atual ordenamento jurídico como o pacta sunt servanda (“os acordos devem ser cumpridos”) que informa o direito dos contratos. Mas o que se sabe é que o Direito Romano pouco se assemelha ao Direito Moderno. O direito dos antigos era uma espécie de direito artesanal, cuja aplicação era dada diante de cada caso, além de ser um direito exercido por pretores, magistrados eleitos que em nada se assemelham aos juízes de hoje. Fala-se que o Direito Moderno é um resultado das exigências de uma economia capitalista porque ele envolve a criação de procedimentos reiterados e assim de previsibilidade e segurança jurídica para as relações comerciais; a criação de um Estado, um elemento terceiro que, dentre outros, execute contratos inadimplidos e proteja a propriedade privada; a criação de figuras jurídicas fundamentais como a de Sujeito de Direito que se equipara no mercado para se vender, na condição de equivalentes, como empregador e empregados; enfim, um governo das leis e não da autoridade real e absoluta, criando condições para uma nova hegemonia política da burguesia.

Tal desenvolvimento histórico no sentido de uma legalidade que se estabelece como contraponto a um poder absoluto e resultante de revoluções burguesas não se observou no Brasil. Todo o problema da legalidade no Brasil surge de forma deformada desde os remotos tempos coloniais em função da dependência externa, do patrimonialismo, do coronelismo no campo, da confusão entre o público e privado, entre outros. Certamente, os capítulos dedicado ao problema Brasileiro e a legalidade são igualmente recompensadores aos leitores do ensaio.

De uma forma geral “Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro” é um livro que está longe de ser restrito ao público leitor de obras jurídicas. Suas reflexões envolvem um instigante desafio no sentido de superar a ideologia da legalidade, percorrendo suas manifestações na história, no seio do marxismo, diante da questão nacional e no capitalismo contemporâneo.        




Um comentário:

  1. No transcorrer da existencia da humanidade, aqueles que falam a respeito, com respaldo e fundamentado conhecimento de causa, sobre assuntos que interessam a uma nacao nao sao compreendidos na integra de seus conceitos e defesas de pensamento, nem quando comentam reflexivamente sobre a opiniao de grandes mestres. Sinto-me desolado quando muitos tiveram acesso ao conhecimento e nao conseguem dizer que apoiam ou rejeitam os seus produtores e o seu bom produto. Parabens, Paulo pelo seu trabalho.

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