“Cristianismo Libertador” – Alysson Leandro Mascaro
Resenha Livro - 232 - “Cristianismo Libertador” – Alysson Leandro
Mascaro – Editora Comenius
“Da mesma forma, o entendimento dos laços passados e futuros
do espírito faz desmoronar a ideia de que Deus dê a cada qual uma cruz e que se
deve carrega-la inexoravelmente nesta vida. A pobreza e a miséria não são da
conta de Deus pai vingador. Instaura-se a responsabilidade da humanidade por si
mesma. A partir daí, não há justo título reconhecido pelo altar da divindade: a
existência social humana é passível de discussão e de indagação” (A
Transformação Humana – Pg. 45)
Alysson
Leandro Mascaro é professor de Filosofia do Direito da USP e conhecido como um
dos principais críticos do fenômeno jurídico desde um horizonte intelectual
marxista. Aqui o professor e filósofo diferencia-se da esmagadora parcela dos
juristas que mesmo no âmbito das reflexões da filosofia do direito trilham a
orientação do juspositivismo. Aliás a hegemonia do juspositivismo está
sintomaticamente presente em todos os ramos do direito: trata-se de entender o
direito como mero sinônimo de norma emanada pelo estado, restringir o fenômeno
jurídico ao direito posto, axiologicamente neutro e desprovido de interesses
com relação ao que é justo, à moral, à ética e às suas interfaces com a
história.
Não é à toa que Hans Kelsen, talvez o principal expoente do
Juspositivismo, escreveu um livro denominado “Teoria Pura do Direito”, buscando
justamente concretizar a ideia de que o direito deveria restringir a uma
técnica impessoal baseada na aplicação das leis. A perspectiva crítica do
direito – que em última análise remete à Marx e sua crítica da Economia
Política – desnuda o caráter ideológico do Juspositivismo. Trata-se em primeiro
lugar de situar o direito como um fenômeno histórico e o direito tal qual o
conhecemos é um fenômeno eminentemente moderno, produto do desenvolvimento
capitalista – havia um direito romano, mas que se constitui de forma artesanal,
de modo que os conflitos eram resolvidos em suas especificidades e sem a
existência dos procedimentos e da impessoalidade que só foram conquistados com
o advento do Estado Moderno. Os estudos de Alysson Mascaro e outros autores da
teoria crítica nos mostram como o direito exterioriza uma forma coerente com as
exigências históricas de desenvolvimento e reprodução capitalista.
A noção de “Sujeito de Direito” surge na modernidade num
momento em que o fim do feudalismo põe termo a dominação direta escravista e do
servo em relação ao Senhor Feudal, um mundo onde os indivíduos são livres
formalmente para a compra e venda da força de trabalho; nessa seara surge o
conceito de “autonomia da vontade”, um conceito-chave às relações contratuais
que concretizam tanto relações mercantis quanto chancelam os próprios contratos
de trabalhos; institutos comerciais que remetem à baixa idade média como a
concordata (Direito Estatutário Alemão) e os Títulos de Crédito vão sendo
consolidados e desenvolvidos pelo direito privado até a conformação de Códigos
Civis, sendo um marco nesse sentido o Código Civil Napoleônico (1804),
disseminado pelo mundo.
A teoria crítica é acima de tudo uma perspectiva que desnuda
o viés ideológico das estruturas jurídicas. Alguns dos trabalhos mais
importantes do jurista de Catanduva nesse sentido são “Estado e Forma Política”
(http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/08/estado-e-forma-politica-alysson-leandro.html)
e “Introdução ao Estudo do Direito” (http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2013/11/introducao-ao-estudo-do-direito-alysson.html).
O que talvez poucos saibam, inclusive este resenhador até
pouco tempo, é que o jurista marxista também tem trabalhos escritos dentro da
comunidade espírita. De acordo com o contrapelo da presente obra, é
conferencista e escritor espírita, autor de “Introdução ao Estudo do
Espiritismo”, além de trabalhos assistenciais na S. E. Caminho da Luz.
E aqui abrimos uma discussão que nos parece interessante.
Que tipo de relação do tipo prático e teórico pode se estabelecer entre a
religião (e o espiritismo em particular) e o marxismo? Existe uma contradição
indissolúvel entre cristianismo e marxismo, ou há interfaces entre ambas
perspectivas de mundo?
Um pequeno parênteses
Antes de prosseguirmos, parece-nos importante fazer a
seguinte ponderação. Este resenhador reivindica o ponto de vista do
marxismo-leninismo. Por uma questão de transparência junto ao leitor,
parece-nos necessário que também relatemos muito brevemente a nossa opinião
sobre o problema religioso. Como se sabe, Lênin bem definiu o marxismo como uma
tradição decorrente de três fontes essenciais: o socialismo francês, a
filosofia clássica alemã e a economia política inglesa. Quanto à filosofia
clássica alemã e o socialismo francês, da primeira resgata-se a dialética
hegeliana e do segundo as filosofias materialistas que são elevadas ambas num
estágio superior: o materialismo filosófico e o materialismo dialético. Com
isso queremos dizer que a filosofia marxista é amplamente materialista o que
desde já a afasta das explicações que desde o céu passam às questões terrenas
(o sentido é exatamente o contrário); se afasta de todo idealismo e de toda
metafísica.
Não reivindicamos nenhuma religião e não acreditamos em
deus. Mas nosso ateísmo é diferente daquele propugnado por Paulo Jonas Piva em
seu belo ensaio sobre o padre ateu Meslier (ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/11/ateismo-e-revolta-paulo-jonas-de-lima_12.html).
De acordo com Piva, ateu é aquele que crê piamente na não existência de deus e
nestes termos o ateísmo deste resenhador seria melhor enquadrado num “agnosticismo”.
Mas não pensamos desta forma. Temos notícia de que o Universo adveio do Big
Bang (uma teoria). Mas não temos notícia do que ou de quem criou o Big Bang e
muito menos do que havia antes do Big Bang. Em outros termos, a questão da
existência de deus parece-nos um problema filosófico tão decisivo que a simples
assertiva do tipo “Não acredito em deus” deveria vir acompanhada de argumentos
científicos/filosóficos razoáveis.
O problema da Religião no Marxismo
Já no Jovem Marx há um tratamento radical contra a religião
na “Questão Judaica”, em que contrapõe a emancipação do Judeu à emancipação
humana. Mas seria na “Introdução da Filosofia do Direito” em que haveria uma
das mais belas passagens em que se aborda o problema da religião nos termos da
alienação e da miséria humana:
“Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao
fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica.
A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez
refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo ócio].
O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade
fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a
encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que
busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.
A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a
religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a
autoconsciência e o auto sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que
já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o
mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram
a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo
invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio
enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu
entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de
consolo e de justificação.
É a realização fantástica da essência humana por que
a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra
a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu
aroma espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria
real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente
de espirito. É o ópio do povo”.
É bom desde já fazer constar que boa parte de “Cristianismo
Libertador” não está em contradição com a ideia de que a religião, no passado e
no presente, é um consolo para uma realidade de exploração e miséria, nos
termos supracitados por Marx. Os ensaios reunidos não são especificamente
textos de proselitismo religioso, mas reflexões que abordam a história do
cristianismo, sua diferenciação com o espiritismo (definido pelo autor como “Ciência
do Espírito”) e até um último ensaio bastante interessante, escrito à luz dos
eventos do 11 de setembro, acerca da relação histórica de indiferença e
dominação do ocidente cristão em face das demais culturas dominadas – “O Cristo
do Ocidente”.
O que gostaríamos de destacar são aspectos do que poderia se
remeter a um certo cristianismo primitivo que tem alguma interface, se não com
o marxismo, talvez com tradições antigas do igualitarismo e que podem sim
inspirar as lutas sociais nos dias de hoje. Nesse sentido, uma resposta parcial
as primeiras cogitações é: sim, existe um diálogo possível entre o cristianismo
e o socialismo, mas que encontra impeditivos importantes na teoria marxista, que
é profundamente materialista.
“O amor à humanidade compreende, na sua base, o impulso para
a justiça, o impulso para a transformação. Este parece ser um elemento crucial
no exemplo de Jesus. O impulso pela transformação e não pela conservação. Há em
cristo, latente, o ânimo da contestação, propondo a transformação do dado;
Jesus não era absolutamente, o homem do poder. Todas as religiões que se
reputaram cristãs, no entanto, foram religiões do poder. Se não do poder
político e estatal, do poder econômico certamente. Ao mesmo tempo, do poder de
castrar, do poder de submeter. Poder e libertação são dois antípodas. Nossa
tendência a trabalhar com o mais confortável à nossa conveniência é que faz com
que possamos ver bons poderes e boas submissões. Cristo é a total libertação.
Por isso, ainda hoje, ou se vive um cristianismo totalmente adulterado do qual
de Cristo só tem o nome, ou, se quisermos viver verdadeiramente como cristãos,
devemos ser revolucionários. Os paliativos não bastam; historicamente só
fizeram por manchar os altos ideais de Jesus”.
Sua resenha traduz uma leitura sensível e incisiva desta obra do ilustre prof. Alysson Mascaro. Paulo você aqui inclui uma citação do livro A tranformação humana, também do A.M. Não consigo encontrá-lo em parte alguma. Se você puder me acenar com alguma possibilidade de adquiri-lo, eu, te agradeço imensamente. Um abraço.
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