“Bandidos” – Eric Hobsbawm
Resenha Livro - 233 - “Bandidos” – Eric Hobsbawm – Ed. Paz e Terra
“Ele matava de brincadeira
Por pura perversidade
E alimentava os famintos
Com amor e caridade” (Cordel sobre Lampião)
“Como necessitavam de mais apoio, entre outros motivos, para
atormentar a vida do governador, os irmãos começaram a ir de uma aldeia a
outra, instando os camponeses a não trabalhar nos terrenos atribuídos ao
governador e a reparti-los entre eles. Valendo-se de uma mistura de persuasão e
de coerção, administrada judiciosamente, convenceram várias aldeias a denunciar
os direitos semifeudais, e com isso puseram fim ao direito dos senhores de
dispor de terra e mão de obra grátis no distrito de Mareta Sebene. A partir
desse momento, deixaram de ser vistos como simples bandidos e passaram a ser
considerados bandidos “especiais” ou sociais”. (História dos Irmãos Mesazgi –
Etiópia – Autor Anônimo)
O
historiador britânico Eric Hobsbawm tem uma vasta produção bibliográfica, nos
capítulos da História Geral dos séculos XIX e XX em suas Eras da Revolução
(ciclo das revoluções burguesas na Europa), Do Capital[1]
(fase de expansão do Capital pós 1848), Do Imperialismo[2]
e dos Extremos[3] (o
curto século XX), além de ensaios importantes sobre o Mundo do Trabalho e
Metodologia da História.
Cumpre
destacar o vastíssimo repertório cultural de Hobsbawm e seus pressupostos
teórico-metodológicos.
Quanto ao primeiro, o vasto repertório cultural, seria ele
aqui decisivo: como veremos, o banditismo social é na história um fenômeno universal,
verificado em todos os continentes, e transmitido na forma da história oral, no
folclore, em canções populares, literatura de cordel e outras fontes secundárias
que exigiriam do historiador uma pesquisa muito além de um esforço restrito ao
âmbito de museus e bibliotecas – seu relato se baseia em entrevistas e contatos
pessoais com pessoas em todos os cantos do mundo que desde a sua condição de
conferencista e historiador reconhecido internacionalmente puderam lhe
proporcionar.
Quanto aos seus pressupostos teórico-metodológicos, Hobsbawm
certamente recorre à uma percepção crítica baseada no materialismo histórico e
dialético: não há na sua narrativa uma mera exposição sucessiva de fatos, mas
um esforço de busca de sentido do processo histórico através de uma análise que
busca sempre interpor o tema principal (o banditismo social) com sua
contextualização histórica fundamental (as sociedades camponesas
pré-capitalistas) e suas interfaces econômicas e políticas. Há portanto uma
busca de sentido da história, donde o historiador não faz uma reportagem do
passado, mas busca compreendê-lo através de suas contradições.
Banditismo Social
Hobsbawm
inaugura os estudos de uma nova categoria social, os bandidos sociais. Não são
delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo
social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e
que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades
locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheitas
ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados
Nacionais e a modificação forçada do modos de vida milenares, incluindo a
desintegração familiar. Diante de tais condições objetivas o fenômeno do
banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente
interessante, tal tipo ideal vai aparecendo ao longo da história em todos os
cantos do mundos.
E quais
são os traços subjetivos do bandido ideal? Via de regra podemos ter como ponto
de partida a figura de Robin Hood, aquele que tomava dos ricos e dava para os
pobres, inimigo do xerife de Nottingham e amigo dos camponeses. Ao contrário da
maior parte dos bandidos sociais relatados por Hobsbawm (que de fato
existiram), não se sabe ao certo se Robin Hood fora real ou uma ficção. O que se
sabe é que sua primeira menção sob a forma escrita remonta ao Séc. XIV e desde
a história oral, a memória e o folclore em torno de sua figura, sua lenda
progrediu até um primeiro filme norte-americano “As Aventuras de Robin Hood”
(1938). Hoje é conhecido por todos.
De todo
modo, é possível, segundo Hobsbawm, registrar alguns denominadores comuns do
Bandido Social dentro daquilo que chama da “Imagem do Bandido”.
Em
primeiro lugar o delinquente nobre inicia sua carreira diante de uma reação
legítima a uma ação injusta perpetrada ora pelas autoridades. Ou então é vítima
de uma ação reprovada pela comunidade. É o caso de Pancho Villa, vendeta e
posteriormente revolucionário mexicano, que teve uma mulher de família
estuprada por um fazendeiro local: daí começa sua jornada como bandido social. Em
segundo lugar o bandido social corrige agravos, como dar aos pobres o que toma
dos ricos. Em terceiro lugar, o bandido social “é admirado, ajudado e mantido
por seu povo” – o que envolve duas questões: o bandido social rural se refugia
nas montanhas e costuma estar presente em regiões limítrofes interestatais,
distantes do poder central, se valendo de sua reputação para manter-se oculto;
o bandido social diferencia-se do criminoso comum por não tomar bens de sua
gente, que o protege; o bandido social é itinerante, um salteador que evita as
estradas e busca as matas fechadas e as montanhas para seu abrigo e liberdade.
Boa parte dos salteadores valem-se do assalto justamente de transeuntes das
estradas que carregam bens em espécie, ouros e mercadorias que de resto não
seriam úteis dentro da economia rural. Seria necessária uma rede de
contrabandistas envolvendo pessoas fora do bando para fazer funcionar esta
economia do crime. E finalmente, o bandido social, por sua benevolência e
reputação, é morto em emboscadas decorrentes de traição, “uma vez que nenhum
membro decente da comunidade auxiliaria as autoridades contra ele”.
De
qualquer forma, um dos aspectos mais fascinantes do tema do banditismo social é
a sua universalidade. Um rápido inventário demonstra bandoleiros reputados em
cada canto do mundo. Louise Domenique Cartouche (1693-1791) foi o mais famoso
bandido social francês. Salvatore Giuliano (1922-1950) é apenas um dos muitos
bandidos sociais italianos, este com uma certa vaidade ao ponto de gostar
deixar-se fotografar por jornalistas. No Brasil temos dois grandes expoentes do
banditismo. Lampião (1898-1938) é o mais famoso cangaceiro do país. Dizia não
respeitar ninguém, a não ser o Padre Cícero, de quem recebeu uma condecoração
oficial militar com o objetivo de mobilizá-lo para combater a Coluna Prestes. Outro
cangaceiro um pouco menos conhecido chamava-se Antônio Silvino. Payot Hitov
representa o banditismo social da Bulgária (Haiduk) e como Pancho Villa, também
evoluiria num sentido da luta política, participando do levante nacional
búlgaro de 1867. Como já mencionado, o melhor exemplo de uma evolução do banditismo
social para a revolução foi Pancho Villa (1872-1923): de ladrão de gado no norte do México durante
dos anos de Porfírio Días, foi recrutado pelos homens de Mederos e adquire
status de general a partir de Dezembro de 1913. Consta que ao cabo da Revolução
Mexicana, abandona qualquer tipo de atividade política e busca uma vida
tranquila como fazendeiro.
Banditismo e Revolução
Pode ser tentador numa primeira leitura fazer uma
interpretação segundo a qual o banditismo social seria um embrião de um movimento
revolucionário, mesmo camponês. Hobsbawm, com base na história, faz bastante
reservas quanto à esta tese.
Em primeiro lugar, constata-se que o bandido social é um
elemento anti-social: sua sobrevivência depende de acordos de conveniência,
frequentemente com poderes locais, tirando não rara vezes, proveito de disputas
e rivalidades regionais, independentes de cogitações políticas. Outras vezes,
os bandidos sociais são mesmo recrutados por forças políticas locais para a execução
de tarefas militares – se os bandidos sociais serão ou não leias, irá depender
muito das circunstâncias, mas o que se observa é uma insubordinação à
disciplina, até pelo amor à liberdade que está associada ao estilo de vida dos
salteadores.
Ainda assim, existem sim interfaces importantes entre o
banditismo social e a revolução. A China foi país com uma cultura quase que
milenar do banditismo social. Ao que tudo indica, Mao não só teve clareza deste
elemento como realmente acreditava na possibilidade de incorporar os bandidos
sociais ao Exército Vermelho mediante uma intensa educação socialista.
Na Rússia, a tradição do banditismo social relaciona-se
também há muito tempo desde os cossacos – e desde o séc. XIX com as práticas
terroristas narodinkis (populistas) que propugnavam a eliminação física de
autoridades bem como as expropriações de bens para as organizações, há uma
linha pouco identificável entre banditismo social e movimentos políticos.
Quanto às expropriações, Hobsbawm dedica todo um capítulo ao tema. Após a Revolução
de 1905, mesmo os bolcheviques, dentro do partido social democrata, defendiam a
expropriação, com reservas – Lênin dizia que todo dinheiro deveria ser
revertido para o partido e dentro de um quadro de educação e ideologia
socialistas, para se diferenciar da mera criminalidade comum. E sabe-se que o
Jovem Stálin praticamente iniciou sua carreira menos como um intelectual e mais
como um homem de ação, expropriando bens e rublos na região do Cáucaso, serem revertidos para o partido.
A guisa de conclusão, assim preleciona o historiador sobre o
problema do banditismo social e da revolução:
“Assim, a contribuição dos bandidos para as revoluções
modernas foi ambígua, duvidosa e breve. Esta foi sua tragédia. Como bandidos,
puderam, na melhor das hipóteses, como Moisés, divisar a terra prometida. Não
puderam alcançá-la. Quase como se poderia esperar, a guerra de libertação na
Argélia começou nas montanhas inóspitas de Aurés, tradicional território de
bandidos, mas foi o Exército de Libertação Nacional, que nada tinha em comum
com eles, que finalmente conquistou a independência. Na China, o Exército
Vermelho logo deixou de ser uma formação baseada em organizações de bandidos. E
há mais o que dizer. Houve na revolução mexicana duas grandes formações
camponesas: o típico movimento de rebeldes salteadores de Pancho Villa
desempenhou um papel incomensuravelmente mais importante no cenário nacional,
mas que não modificou nem a configuração física do México, nem a do próprio
território norte ocidental de Villa. O movimento de Zapata foi inteiramente
regional, seu líder foi morto em 1919, suas forças militares não tinham peso. No
entanto foi esse movimento que injetou o elemento da reforma agrária na
revolução mexicana”.
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