sexta-feira, 19 de agosto de 2016

“Bandidos” – Eric Hobsbawm

“Bandidos” – Eric Hobsbawm



Resenha Livro - 233 - “Bandidos” – Eric Hobsbawm – Ed. Paz e Terra

“Ele matava de brincadeira
Por pura perversidade
E alimentava os famintos
Com amor e caridade” (Cordel sobre Lampião)

“Como necessitavam de mais apoio, entre outros motivos, para atormentar a vida do governador, os irmãos começaram a ir de uma aldeia a outra, instando os camponeses a não trabalhar nos terrenos atribuídos ao governador e a reparti-los entre eles. Valendo-se de uma mistura de persuasão e de coerção, administrada judiciosamente, convenceram várias aldeias a denunciar os direitos semifeudais, e com isso puseram fim ao direito dos senhores de dispor de terra e mão de obra grátis no distrito de Mareta Sebene. A partir desse momento, deixaram de ser vistos como simples bandidos e passaram a ser considerados bandidos “especiais” ou sociais”. (História dos Irmãos Mesazgi – Etiópia – Autor Anônimo)
                
O historiador britânico Eric Hobsbawm tem uma vasta produção bibliográfica, nos capítulos da História Geral dos séculos XIX e XX em suas Eras da Revolução (ciclo das revoluções burguesas na Europa), Do Capital[1] (fase de expansão do Capital pós 1848), Do Imperialismo[2] e dos Extremos[3] (o curto século XX), além de ensaios importantes sobre o Mundo do Trabalho e Metodologia da História.
                
Cumpre destacar o vastíssimo repertório cultural de Hobsbawm e seus pressupostos teórico-metodológicos.

Quanto ao primeiro, o vasto repertório cultural, seria ele aqui decisivo: como veremos, o banditismo social é na história um fenômeno universal, verificado em todos os continentes, e transmitido na forma da história oral, no folclore, em canções populares, literatura de cordel e outras fontes secundárias que exigiriam do historiador uma pesquisa muito além de um esforço restrito ao âmbito de museus e bibliotecas – seu relato se baseia em entrevistas e contatos pessoais com pessoas em todos os cantos do mundo que desde a sua condição de conferencista e historiador reconhecido internacionalmente puderam lhe proporcionar.

Quanto aos seus pressupostos teórico-metodológicos, Hobsbawm certamente recorre à uma percepção crítica baseada no materialismo histórico e dialético: não há na sua narrativa uma mera exposição sucessiva de fatos, mas um esforço de busca de sentido do processo histórico através de uma análise que busca sempre interpor o tema principal (o banditismo social) com sua contextualização histórica fundamental (as sociedades camponesas pré-capitalistas) e suas interfaces econômicas e políticas. Há portanto uma busca de sentido da história, donde o historiador não faz uma reportagem do passado, mas busca compreendê-lo através de suas contradições.

Banditismo Social

Hobsbawm inaugura os estudos de uma nova categoria social, os bandidos sociais. Não são delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheitas ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados Nacionais e a modificação forçada do modos de vida milenares, incluindo a desintegração familiar. Diante de tais condições objetivas o fenômeno do banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente interessante, tal tipo ideal vai aparecendo ao longo da história em todos os cantos do mundos.

E quais são os traços subjetivos do bandido ideal? Via de regra podemos ter como ponto de partida a figura de Robin Hood, aquele que tomava dos ricos e dava para os pobres, inimigo do xerife de Nottingham e amigo dos camponeses. Ao contrário da maior parte dos bandidos sociais relatados por Hobsbawm (que de fato existiram), não se sabe ao certo se Robin Hood fora real ou uma ficção. O que se sabe é que sua primeira menção sob a forma escrita remonta ao Séc. XIV e desde a história oral, a memória e o folclore em torno de sua figura, sua lenda progrediu até um primeiro filme norte-americano “As Aventuras de Robin Hood” (1938). Hoje é conhecido por todos.

De todo modo, é possível, segundo Hobsbawm, registrar alguns denominadores comuns do Bandido Social dentro daquilo que chama da “Imagem do Bandido”.

Em primeiro lugar o delinquente nobre inicia sua carreira diante de uma reação legítima a uma ação injusta perpetrada ora pelas autoridades. Ou então é vítima de uma ação reprovada pela comunidade. É o caso de Pancho Villa, vendeta e posteriormente revolucionário mexicano, que teve uma mulher de família estuprada por um fazendeiro local: daí começa sua jornada como bandido social. Em segundo lugar o bandido social corrige agravos, como dar aos pobres o que toma dos ricos. Em terceiro lugar, o bandido social “é admirado, ajudado e mantido por seu povo” – o que envolve duas questões: o bandido social rural se refugia nas montanhas e costuma estar presente em regiões limítrofes interestatais, distantes do poder central, se valendo de sua reputação para manter-se oculto; o bandido social diferencia-se do criminoso comum por não tomar bens de sua gente, que o protege; o bandido social é itinerante, um salteador que evita as estradas e busca as matas fechadas e as montanhas para seu abrigo e liberdade. Boa parte dos salteadores valem-se do assalto justamente de transeuntes das estradas que carregam bens em espécie, ouros e mercadorias que de resto não seriam úteis dentro da economia rural. Seria necessária uma rede de contrabandistas envolvendo pessoas fora do bando para fazer funcionar esta economia do crime. E finalmente, o bandido social, por sua benevolência e reputação, é morto em emboscadas decorrentes de traição, “uma vez que nenhum membro decente da comunidade auxiliaria as autoridades contra ele”.

De qualquer forma, um dos aspectos mais fascinantes do tema do banditismo social é a sua universalidade. Um rápido inventário demonstra bandoleiros reputados em cada canto do mundo. Louise Domenique Cartouche (1693-1791) foi o mais famoso bandido social francês. Salvatore Giuliano (1922-1950) é apenas um dos muitos bandidos sociais italianos, este com uma certa vaidade ao ponto de gostar deixar-se fotografar por jornalistas. No Brasil temos dois grandes expoentes do banditismo. Lampião (1898-1938) é o mais famoso cangaceiro do país. Dizia não respeitar ninguém, a não ser o Padre Cícero, de quem recebeu uma condecoração oficial militar com o objetivo de mobilizá-lo para combater a Coluna Prestes. Outro cangaceiro um pouco menos conhecido chamava-se Antônio Silvino. Payot Hitov representa o banditismo social da Bulgária (Haiduk) e como Pancho Villa, também evoluiria num sentido da luta política, participando do levante nacional búlgaro de 1867. Como já mencionado, o melhor exemplo de uma evolução do banditismo social para a revolução foi Pancho Villa (1872-1923):  de ladrão de gado no norte do México durante dos anos de Porfírio Días, foi recrutado pelos homens de Mederos e adquire status de general a partir de Dezembro de 1913. Consta que ao cabo da Revolução Mexicana, abandona qualquer tipo de atividade política e busca uma vida tranquila como fazendeiro.

Banditismo e Revolução

Pode ser tentador numa primeira leitura fazer uma interpretação segundo a qual o banditismo social seria um embrião de um movimento revolucionário, mesmo camponês. Hobsbawm, com base na história, faz bastante reservas quanto à esta tese.

Em primeiro lugar, constata-se que o bandido social é um elemento anti-social: sua sobrevivência depende de acordos de conveniência, frequentemente com poderes locais, tirando não rara vezes, proveito de disputas e rivalidades regionais, independentes de cogitações políticas. Outras vezes, os bandidos sociais são mesmo recrutados por forças políticas locais para a execução de tarefas militares – se os bandidos sociais serão ou não leias, irá depender muito das circunstâncias, mas o que se observa é uma insubordinação à disciplina, até pelo amor à liberdade que está associada ao estilo de vida dos salteadores.

Ainda assim, existem sim interfaces importantes entre o banditismo social e a revolução. A China foi país com uma cultura quase que milenar do banditismo social. Ao que tudo indica, Mao não só teve clareza deste elemento como realmente acreditava na possibilidade de incorporar os bandidos sociais ao Exército Vermelho mediante uma intensa educação socialista.

Na Rússia, a tradição do banditismo social relaciona-se também há muito tempo desde os cossacos – e desde o séc. XIX com as práticas terroristas narodinkis (populistas) que propugnavam a eliminação física de autoridades bem como as expropriações de bens para as organizações, há uma linha pouco identificável entre banditismo social e movimentos políticos. Quanto às expropriações, Hobsbawm dedica todo um capítulo ao tema. Após a Revolução de 1905, mesmo os bolcheviques, dentro do partido social democrata, defendiam a expropriação, com reservas – Lênin dizia que todo dinheiro deveria ser revertido para o partido e dentro de um quadro de educação e ideologia socialistas, para se diferenciar da mera criminalidade comum. E sabe-se que o Jovem Stálin praticamente iniciou sua carreira menos como um intelectual e mais como um homem de ação, expropriando bens e rublos na região do Cáucaso,  serem revertidos para o partido.

A guisa de conclusão, assim preleciona o historiador sobre o problema do banditismo social e da revolução:

“Assim, a contribuição dos bandidos para as revoluções modernas foi ambígua, duvidosa e breve. Esta foi sua tragédia. Como bandidos, puderam, na melhor das hipóteses, como Moisés, divisar a terra prometida. Não puderam alcançá-la. Quase como se poderia esperar, a guerra de libertação na Argélia começou nas montanhas inóspitas de Aurés, tradicional território de bandidos, mas foi o Exército de Libertação Nacional, que nada tinha em comum com eles, que finalmente conquistou a independência. Na China, o Exército Vermelho logo deixou de ser uma formação baseada em organizações de bandidos. E há mais o que dizer. Houve na revolução mexicana duas grandes formações camponesas: o típico movimento de rebeldes salteadores de Pancho Villa desempenhou um papel incomensuravelmente mais importante no cenário nacional, mas que não modificou nem a configuração física do México, nem a do próprio território norte ocidental de Villa. O movimento de Zapata foi inteiramente regional, seu líder foi morto em 1919, suas forças militares não tinham peso. No entanto foi esse movimento que injetou o elemento da reforma agrária na revolução mexicana”.  
    

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