Resenha Livro #81 “Brasil: De
Getúlio A Castelo” – Thomas Skidmore – Ed. Paz e Terra
O historiador norte-americano Thomas Skidmore certamente é o mais
conhecido e lido brasilianista no país, tendo sido considerado pelo periódico
inglês The Economist como o maior contribuidor estrangeiro para os esforços de
analisar e interpretar a realidade brasileira. O brasilianismo corresponde a um
movimento de produção acadêmica voltado ao estudo da realidade política, social
e econômica do Brasil e seu surgimento coincide mesmo com o início do esforço
de historiadores brasileiros voltarem-se à mesma temática – a partir da década
de 1930, tendo dentre os brasileiros os expoentes Gylberto Freire, Sérgio
Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. No caso dos brasilianistas, a
esmagadora maioria era norte-americana, contava com relevante suporte
financeiro provindos dos EUA e, acredita-se, tiveram mesmo mais facilidade de
acesso a documentos oficiais do que seus colegas pesquisadores brasileiros.
Chega a ser assombroso o vasto conhecimento da história
política brasileira acumulado por Skidmore. Quando redigiu o seu “De Getúlio à
Castelo”, havia dedicado algo em torno de 10 anos de estudos sobre o Brasil e,
por meio do exame das notas e da bibliografia, percebe-se como o historiador
agregara um vastíssimo acervo, envolvendo livros, revistas acadêmicas,
pesquisas universitárias, relatórios e documentos oficiais, de forma a poder
construir uma interpretação da história política brasileira extremamente sólida
e embasada.
Entretanto, como sabemos, a teoria da história evoluiu, surgindo como
disciplina inicialmente com pretenções de cientificidade e imparcialidade (vide
Leopold Von Ranke na Alemanha e Verhagen no Brasil) e posteriormente se
consolidando como uma matéria relativamente aberta às distintas interpretações.
Isto significa que mesmo reportando-se a documentos oficiais e notórios fatos
históricos, o historiador necessariamente cria uma narrativa do passado. A
própria seleção dos fatos históricos a serem narrados, a sua hierarquização
quanto à importância dos fatos, bem como a interpretação resultante do
historiador revelam escolhas deliberadas que irão delimitar tanto a metodologia
de pesquisa do pesquisador quanto a sua visão social de mundo.
Nesta perspectiva, Thomas Skidmore revela-se como um historiador de
orientação conservadora, ainda que não sectária, por exemplo, junto a pensadores
marxistas que são citados em suas notas de rodapé, como o general comunista
Nelson Weneck Sodré e o também marxista Leôncio Basbaum. Entretanto, a suas
propostas de delimitação das forças políticas operantes, por exemplo, nos anos
de João Goulart, certamente revelariam um pouco do seu posicionamento político
contrário ao marxismo e comunismo. Segundo Thomas Skidmore, havia junto a Jango
uma esquerda “positiva” e uma esquerda “negativa”. A primeira era representada
por homens como o advogado e deputado Santiago Dantas ou o eminente economista
Celso Furtado. Era uma esquerda “positiva” certamente porque tinha um papel
muito mais moderador e conciliatório do que Skidmore chama ora de esquerda “negativa”
ou de “nacionalistas radicais”. Neste último grupo surgem figuras como Brizola,
pintado pelo historiador como um homem temperamental, compulsivo e demagogo.
Igualmente estavam neste bloco todo o setor de esquerda, que não é analisado com
rigor em suas especificidades, colocando no mesmo saco os sindicalistas do CTB,
os estudantes da UNE, a Ação Popular (que era um grupo egresso da juventude
universitária católica), o PCB, o PCdoB, Francisco Julião e suas Ligas
Camponesas e a frente parlamentar nacionalista.
Skidmore considera basicamente este bloco como um setor que mantém a
sua unidade em torno de um nacionalismo “radical”, “anti-americano” e
não-democrático. Ainda que não chegue aos tons de um Carlos Lacerda, em algumas
passagens é possível perceber a associação ideológica feita pelo historiador
entre “esquerda negativa” e “ruptura democrática”. O que é mais importante de
frisar aqui é que esta percepção segundo a qual o modelo
democrático-constitucional liberal seria o regime ideal e consensual na
sociedade, apesar de “radicais de esquerda” (e “de direita” também), faz como
que Skidmore dê pouca importância à importante radicalização política e
mobilização da esquerda nos anos do pré-64, com todas as suas dificuldades e
divisões internas. O historiador faz-nos crer que João Goulart inicialmente
apoiara-se na esquerda positiva, mas com o fracasso do projeto de estabilização
econômica e inflacionária, o presidente voltara-se para a esquerda “negativa” o
que, em si só, seria um “erro político”.
Ocorre que João Goulart também estava pressionado pela conjuntura de
radicalização política, com o crescimento de ocupações no campo lideradas pelas
Ligas Camponeas, ameaças de greves gerais (que, como instrumento político,
fracassou para conter os golpistas) e mobilização dentre os marinheiros,
ferindo o sagrado dogma militar de disciplina e respeito à hierarquia.
Mas, certamente, a passagem em que é possível uma maior percepção da
parcialidade de Skidmore está no capítulo dedicado à participação dos Estados Unidos
no golpe militar de 1º de Abril de 1964. Talvez, aqui, Skidmore tenha
capitulado aos interesses de seu país que prontamente foi acusado de participação
no golpe. Vejamos qual é a resposta dada pelo historiador norte-americano à
pergunta sobre a participação dos EUA no golpe civil-militar:
“E quanto ao papel
norte-americano na época da própria revolta militar? Foi o governo dos Estados
Unidos um patrocinador direto dos rebeldes militares, como tinha sido na
Guatemala em 1954, ou na Baía dos Porcos em 1961? A resposta é, sem dúvida,
negativa. Não existe prova para apoiar a alegação de que os conspiradores
militares teriam sido subsidiados ou dirigidos pelo governo dos EUA. Em
princípio, a intervenção dos militares brasileiros em 1964 em nada diferiu das
anteriores, de 1955 (garantia da posse de Juscelino); 1954 (deposição de Vargas seguida do suicídio do presidente) ou 1945 (deposição de Vargas)”
O que é interessante notar aqui é que talvez movido por algum
sentimento de lealdade intelectual, Skidmore prossegue este capítulo
sinalizando justamente o contrário, qual seja, a participação dos EUA no golpe.
Se, como dizíamos, a história é uma narrativa possível do passado, isto não
autoriza o historiador a brigar com os fatos. E o próprio brasilianista lembra
assim da Escola Superior de Guerra, modelada a partir da National War College
de Washington. Grande parte dos golpistas fora egressa daquele instituto que
disseminava as teses políticas norte-americanas anti-comunistas correspondentes
ao período da Guerra Fria. O próprio Skidmore, ademais, menciona o curioso fato
do embaixador norte-americano ter prontamente reconhecido o poder dos
golpistas, mesmo havendo indefinição da situação política e jurídica de Jango,
antes deste sair do país, reconhecendo como constitucional a posse do
presidente da câmara dos deputados. (Lembrando que João Goulart havia sido
vice-presidente da Jânio Quadros, que renunciara. Não havendo vice-presidente,
o próximo para sucessão era Ranieri Mazzilli).
De qualquer
forma, uma leitura crítica do trabalho de Skidmore é importante, dada em
particular as enormes transformações estruturais pelas quais o Brasil passou
entre 1930 até 1964. A industrialização e urbanização do país engendraram uma
nova sociedade, uma nova dinâmica eleitoral e pressionava por mudanças político-institucionais.
Certamente, Skidmore tem razão quando afirma que o descompasso entre as novas
exigências de um país em rápida transformação combinada com uma estrutura
política e administrativa arcaicas e que mal delimitava o público do privado, bem
como partidos políticos sem bases sociais acabariam resultando (como de fato
resultaram) em inúmeras crises, sendo de maior importância os golpes e
contra-golpes dos militares. Provavelmente, foi um momento da história do
Brasil em que as forças armadas desempenhavam um papel que não mais desempenham
no presente, qual seja, a posição de árbitros supremos da política nacional,
prontos a intervir em casos de possibilidades de rupturas políticas, papel que
o exército já exercitava desde os tempos da República Velha.
Como todo
livro de história, mesmo não se concordando com a orientação política do autor,
o panorama desenhado do passado serve-nos como meio de ajudar a compreender de
onde viemos e para onde vamos.
* Notas de rodapé apenas lidas do 1º e
2º capítulos
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