quarta-feira, 30 de outubro de 2013

“Brasil: De Getúlio a Castelo” – Thomas Skidmore


Resenha Livro #81 “Brasil: De Getúlio A Castelo” – Thomas Skidmore – Ed. Paz e Terra
 
 

O historiador norte-americano Thomas Skidmore certamente é o mais conhecido e lido brasilianista no país, tendo sido considerado pelo periódico inglês The Economist como o maior contribuidor estrangeiro para os esforços de analisar e interpretar a realidade brasileira. O brasilianismo corresponde a um movimento de produção acadêmica voltado ao estudo da realidade política, social e econômica do Brasil e seu surgimento coincide mesmo com o início do esforço de historiadores brasileiros voltarem-se à mesma temática – a partir da década de 1930, tendo dentre os brasileiros os expoentes Gylberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. No caso dos brasilianistas, a esmagadora maioria era norte-americana, contava com relevante suporte financeiro provindos dos EUA e, acredita-se, tiveram mesmo mais facilidade de acesso a documentos oficiais do que seus colegas pesquisadores brasileiros.

Chega a ser assombroso o vasto conhecimento da história política brasileira acumulado por Skidmore. Quando redigiu o seu “De Getúlio à Castelo”, havia dedicado algo em torno de 10 anos de estudos sobre o Brasil e, por meio do exame das notas e da bibliografia, percebe-se como o historiador agregara um vastíssimo acervo, envolvendo livros, revistas acadêmicas, pesquisas universitárias, relatórios e documentos oficiais, de forma a poder construir uma interpretação da história política brasileira extremamente sólida e embasada.

Entretanto, como sabemos, a teoria da história evoluiu, surgindo como disciplina inicialmente com pretenções de cientificidade e imparcialidade (vide Leopold Von Ranke na Alemanha e Verhagen no Brasil) e posteriormente se consolidando como uma matéria relativamente aberta às distintas interpretações. Isto significa que mesmo reportando-se a documentos oficiais e notórios fatos históricos, o historiador necessariamente cria uma narrativa do passado. A própria seleção dos fatos históricos a serem narrados, a sua hierarquização quanto à importância dos fatos, bem como a interpretação resultante do historiador revelam escolhas deliberadas que irão delimitar tanto a metodologia de pesquisa do pesquisador quanto a sua visão social de mundo.

Nesta perspectiva, Thomas Skidmore revela-se como um historiador de orientação conservadora, ainda que não sectária, por exemplo, junto a pensadores marxistas que são citados em suas notas de rodapé, como o general comunista Nelson Weneck Sodré e o também marxista Leôncio Basbaum. Entretanto, a suas propostas de delimitação das forças políticas operantes, por exemplo, nos anos de João Goulart, certamente revelariam um pouco do seu posicionamento político contrário ao marxismo e comunismo. Segundo Thomas Skidmore, havia junto a Jango uma esquerda “positiva” e uma esquerda “negativa”. A primeira era representada por homens como o advogado e deputado Santiago Dantas ou o eminente economista Celso Furtado. Era uma esquerda “positiva” certamente porque tinha um papel muito mais moderador e conciliatório do que Skidmore chama ora de esquerda “negativa” ou de “nacionalistas radicais”. Neste último grupo surgem figuras como Brizola, pintado pelo historiador como um homem temperamental, compulsivo e demagogo. Igualmente estavam neste bloco todo o setor de esquerda, que não é analisado com rigor em suas especificidades, colocando no mesmo saco os sindicalistas do CTB, os estudantes da UNE, a Ação Popular (que era um grupo egresso da juventude universitária católica), o PCB, o PCdoB, Francisco Julião e suas Ligas Camponesas e a frente parlamentar nacionalista.

Skidmore considera basicamente este bloco como um setor que mantém a sua unidade em torno de um nacionalismo “radical”, “anti-americano” e não-democrático. Ainda que não chegue aos tons de um Carlos Lacerda, em algumas passagens é possível perceber a associação ideológica feita pelo historiador entre “esquerda negativa” e “ruptura democrática”. O que é mais importante de frisar aqui é que esta percepção segundo a qual o modelo democrático-constitucional liberal seria o regime ideal e consensual na sociedade, apesar de “radicais de esquerda” (e “de direita” também), faz como que Skidmore dê pouca importância à importante radicalização política e mobilização da esquerda nos anos do pré-64, com todas as suas dificuldades e divisões internas. O historiador faz-nos crer que João Goulart inicialmente apoiara-se na esquerda positiva, mas com o fracasso do projeto de estabilização econômica e inflacionária, o presidente voltara-se para a esquerda “negativa” o que, em si só, seria um “erro político”.

Ocorre que João Goulart também estava pressionado pela conjuntura de radicalização política, com o crescimento de ocupações no campo lideradas pelas Ligas Camponeas, ameaças de greves gerais (que, como instrumento político, fracassou para conter os golpistas) e mobilização dentre os marinheiros, ferindo o sagrado dogma militar de disciplina e respeito à hierarquia.

Mas, certamente, a passagem em que é possível uma maior percepção da parcialidade de Skidmore está no capítulo dedicado à participação dos Estados Unidos no golpe militar de 1º de Abril de 1964. Talvez, aqui, Skidmore tenha capitulado aos interesses de seu país que prontamente foi acusado de participação no golpe. Vejamos qual é a resposta dada pelo historiador norte-americano à pergunta sobre a participação dos EUA no golpe civil-militar:

“E quanto ao papel norte-americano na época da própria revolta militar? Foi o governo dos Estados Unidos um patrocinador direto dos rebeldes militares, como tinha sido na Guatemala em 1954, ou na Baía dos Porcos em 1961? A resposta é, sem dúvida, negativa. Não existe prova para apoiar a alegação de que os conspiradores militares teriam sido subsidiados ou dirigidos pelo governo dos EUA. Em princípio, a intervenção dos militares brasileiros em 1964 em nada diferiu das anteriores, de 1955 (garantia da posse de Juscelino); 1954 (deposição de Vargas seguida do suicídio do presidente) ou 1945 (deposição de Vargas)”

O que é interessante notar aqui é que talvez movido por algum sentimento de lealdade intelectual, Skidmore prossegue este capítulo sinalizando justamente o contrário, qual seja, a participação dos EUA no golpe. Se, como dizíamos, a história é uma narrativa possível do passado, isto não autoriza o historiador a brigar com os fatos. E o próprio brasilianista lembra assim da Escola Superior de Guerra, modelada a partir da National War College de Washington. Grande parte dos golpistas fora egressa daquele instituto que disseminava as teses políticas norte-americanas anti-comunistas correspondentes ao período da Guerra Fria. O próprio Skidmore, ademais, menciona o curioso fato do embaixador norte-americano ter prontamente reconhecido o poder dos golpistas, mesmo havendo indefinição da situação política e jurídica de Jango, antes deste sair do país, reconhecendo como constitucional a posse do presidente da câmara dos deputados. (Lembrando que João Goulart havia sido vice-presidente da Jânio Quadros, que renunciara. Não havendo vice-presidente, o próximo para sucessão era Ranieri Mazzilli).

De qualquer forma, uma leitura crítica do trabalho de Skidmore é importante, dada em particular as enormes transformações estruturais pelas quais o Brasil passou entre 1930 até 1964. A industrialização e urbanização do país engendraram uma nova sociedade, uma nova dinâmica eleitoral e pressionava por mudanças político-institucionais. Certamente, Skidmore tem razão quando afirma que o descompasso entre as novas exigências de um país em rápida transformação combinada com uma estrutura política e administrativa arcaicas e que mal delimitava o público do privado, bem como partidos políticos sem bases sociais acabariam resultando (como de fato resultaram) em inúmeras crises, sendo de maior importância os golpes e contra-golpes dos militares. Provavelmente, foi um momento da história do Brasil em que as forças armadas desempenhavam um papel que não mais desempenham no presente, qual seja, a posição de árbitros supremos da política nacional, prontos a intervir em casos de possibilidades de rupturas políticas, papel que o exército já exercitava desde os tempos da República Velha.

Como todo livro de história, mesmo não se concordando com a orientação política do autor, o panorama desenhado do passado serve-nos como meio de ajudar a compreender de onde viemos e para onde vamos.    

* Notas de rodapé apenas lidas do 1º e 2º capítulos

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