Resenha
Livro #78 “A Esquerda e o Golpe de 64” – Dênis de Moraes – Ed. Expressão Popular 2011
“O perigo que
Jango representava para a direita não era ele, pessoalmente, e sim a
impossibilidade de controlar aquele processo” Theotônio dos Santos
Certamente, após a leitura do rico
panorama da conjuntura política do pré-64, tendo como foco o desempenho das diversas
forças de esquerda daqueles anos, há de se constatar que veio em bom momento a
re-edição desta importante pesquisa histórica, originalmente publicado nos anos
80 e republicado agora já em sua 3ª edição pela Expressão Popular (2011).
Como foi possível observar com o
levante da juventude e as grandes mobilizações que levaram às ruas cerca de 2
milhões de pessoas no Brasil em Junho de 2013, muito do que foi construído e
consolidado na Ditadura Militar continua em plena operação. Com as lutas vieram
a repressão e reviveu-se o terror de um aparato repressivo cujas bases
institucionais remontam à ditadura militar. Na USP, alunos que ocuparam a
reitoria em 2011 foram “eliminados” da universidade com base no regimento
interno da universidade feito em 1973 e que prevê o cerceamento das atividades
políticas e do pensamento. A brutal repressão ao movimento passa livre em Junho
de 2013 culminou não só no levante de significativas parcelas da juventude em
todo país. Expôs claramente o papel da Polícia Militar (entulho da época da
Ditadura) como instrumento de repressão direta por meio da violência, prisões
arbitrárias e forjadas.
Assassinatos e torturas são também
produto de certo esquecimento de nosso passado autoritário. Naturalizou-se
muitos assassinatos até o desaparecimento de Amarildo e a posterior descoberta
que o mesmo havia sido torturado e morto. Ou como um último retrato da
violência do poder econômico sobre o direito de resistência dos trabalhadores e
do povo, a brutal desocupação do Pinheirinho em São José dos Campos, repressão
que não se mostrou sequer intimidada com as câmaras que repercutiram
posteriormente na internet dirigente do movimento social e um morador do bairro
sendo espancados até sangrar antes de levados à prisão, para além de denúncias
de tortura e estupro cometidos por policiais da ROTA.
O fato é que o tema do livro de Dênis
de Morais permanece bastante pertinente nos dias de hoje. Todas as violências
perpetradas pela polícia contra os movimentos sociais nos últimos anos encontra
seu amparo na história, na conformação e estruturação do poderio militar no
poder. E este só foi possível com a consumação do golpe de estado de 1964.
Este livro propõe formular importantes
perguntas sobre o nosso passado. Por que a esquerda foi derrotada com o Golpe
de 1964? Quem foram responsáveis pela derrota? Quais foram os eventos que
levaram ao desdobramento fatídico de 1º de Abril de 1964? Como a esquerda
estava organizada? Qual era a sua base social e parlamentar? Como soube
equacionar a co-relação de forças políticas e militares naqueles anos de forte
polarização e agitação política (1963-64)? Que tipo de iniciativas poderiam ter
sido tomadas para conter os golpistas?
Para responder às questões o livro
serviu-se de um vasto trabalho de pesquisa de livros, jornais e periódicos da
época, além de depoimentos de personagens de destaque durante aqueles anos.
Este vasto esforço de sistematização de informações e opiniões políticas são
confrontados abertamente na pesquisa, quando podemos perceber balanços muito
distintos dos significados do Golpe, de Brizola (ex-governador do RS e RJ) a
Luiz Carlos Prestes (ex-senador e dirigente do PCB) , de Julião Tavares
(dirigente das Ligas Camponesas) a Miguel Arraes (este último, ex-governador de
Pernambuco, que, infelizmente, não atendeu às solicitações de entrevista do
historiador).
Há de se destacar em primeiro lugar que
aqueles anos do pré-64 não foram marcados exclusivamente pela crise política, mas
também por graves problemas na economia. Basta relatar que em 1963 o índice de
custo de vida (inflação) atingia 81% e o déficit orçamentário correspondente a
mais de um terço dos gastos totais, contabilizando um crescimento de 1,5%.
Outro grande problema então era o problema da divida externa que então estava
na escala de 3,8 bilhões de dólares. Há de se constatar que a demissão do ministro da fazenda Carvalho
Pinto foi um dos elementos de desestabilização e perda de apoio parlamentar de
João Goulart. Isso porque Carvalho Pinto era político da classe dominante
paulista, um homem de confiança da elite – poderíamos comparar com um “Henrique
Meirelles” do governo Lula, com a ressalva de que este último ocupou não a
chefia da pasta da fazenda, mas do Banco Central.
O fato é que a saída de Carvalho Pinto
abriu uma disputa por um ministério estratégico. Afinal, por trás das reformas
de base haveria de ter um plano econômico que viabilizasse a reforma agrária,
taxasse os lucros que saíssem do país (algo que Jango efetivamente alcançou por
meio de projeto de lei) e enfrentasse o problema da dívida externa e da tutela
do FMI. Ninguém menos do que Brizola passou a postular o cargo, um político com
alguma expressão eleitoral e popular e que era e foi até a morte odiado pela
classe dominante brasileira.
Certamente Brizola tinha uma política
menos conciliatória do que a de João Goulart, tendo importante papel na
garantia da posse do presidente em 1961, quando houve já uma tentativa de golpe
buscando evitar que o vice assumisse após a renúncia de Jânio Quadros. Após o
triunfo da revolução cubana, Brizola tinha expectativa de que o Brasil poderia
trilhar caminho semelhante. Quanto ao cargo da fazenda, no final, prevaleceu o
temperamento moderador de Goulart e assumiu a pasta da fazenda um outro
político de menor importância. Entretanto, Brizola de um lado e Miguel Arraes
de outra se lançariam posteriormente numa disputa interna pela sucessão nas
eleições presidenciais que ocorreriam em 1965.
Mas como dizíamos, havia nos anos
anteriores ao golpe uma crise econômica e uma crise e polarização políticas.
Estas estavam relacionadas fundamentalmente às tensões da Guerra Fria, que
opunham dois polos antagônicos no plano nacional. De um lado, nacionalistas,
reformistas, brizolistas e comunistas dentro de um Bloco Nacional-Popular
dirigido por Jango e contando com importante participação dos sindicalistas da
CGT, do incipiente mas combativo movimento estudantil organizado na UNE e no
CPC (Centro Popular de Cultura), do ISEB, instituto de estudos da realidade
brasileira então chefiado pelo general comunista Nelson Werneck Sodré, os
camponeses ligados às Ligas, os “clube dos onzes” brizolistas e, no plano
partidário, o PTB de Jango, o pequeno Partido Socialista, o PCB (soviético), o
PCdoB (“racha” do PCB, mais esquerdista e influenciado pelo maoismo), a Ação
Popular (derivada da antiga e também massiva Juventude Universitária Católica),
e, mais à esquerda, o Polop e o Por (trotskysta); do outro lado da trincheira
havia os golpistas, militares e civis.
É interessante notar aqui que a própria
esquerda cometia erros na própria delimitação de seu adversário.
Particularmente os comunistas, presos a uma estratégia etapista e com uma
análise errada acerca do papel da burguesia nacional, entendiam que a reação
fosse obra do “latifúndio feudal” e velhas oligarquias políticas, enquanto a
burguesia nacional só poderia pender para o projeto reformista/revolucionário
da frente popular. O fato é que o golpe contava com forte apoio político e
militar dos estados unidos e, ademais, das elites econômicas mais modernas,
incluindo o empresariado da imprensa (Roberto Marinho, Assis Chauteaubriand e
Samuel Weiner). Havia o partido direitista da UDN (do ex-governador fluminense
Carlos Lacerda) e o Ipes, instituto voltado à difusão das bases teóricas/políticas
dos golpistas. Ou seja, foi um golpe não só militar, mas civil, apoiado pela
elite do empresariado brasileiro que, contando com o apoio praticamente unânime
da imprensa, soube conquistar as classes médias e as forças armadas com seus
discursos de “terror”, falando do perigo comunista e ateu, da suposta “república
sindicalista” de Jango. Combatendo nas ruas, inclusive, a partir de uma massiva
marcha pela família em São Paulo, agregando carolas, padres e uniões cívicas de
mulheres, unidos numa espécie de reação “patriótica” contra o avanço das
esquerdas, em defesa da família e da religião.
O fato é que no decorrer dos anos de
1963-64, o governo João Goulart foi perdendo aquilo que poderíamos chamar de “opinião
pública”, com uma importante inflexão dos setores médios dos centros
industriais contra Jango, além da divisão e desarticulação do bloco popular.
Várias teorizações são feitas ao longo
do livro, em especial nos depoimentos pessoais, das origens da derrota das
esquerdas em 1964. Em primeiro lugar, uma opinião bastante reiterada pelos
depoentes era a falta de um trabalho político mais intenso junto às forças
armadas. O que havia era um falso sentimento de que, no caso de algum movimento
golpista, a maior parte das forças armadas ficaria do lado dos legalistas.
Certamente, João Goulart cometeu erros políticos importantes. Era assessorado
por Assis Brasil, chefe da Casa Militar que não tinha a autoridade e a firmeza de
um Marechal Lott, capaz de detectar a tempo as movimentações golpistas e agir
com firmeza.
Ademais, praticamente todos os relatos
são unânimes no sentido de apontar não só a franca participação dos EUA no
golpe, mas o fato deles mesmos (a esquerda) não terem àquela noção real do
tamanho do aparto militar e de inteligência montado pelo imperialismo para
derrotar Jango, suas Reformas de Base e garantir os interesses dos monopólios e
do empresariado nacional e internacional. A revolução cubana de 1959 e sua
adesão ao bloco soviético em 1961 ainda eram eventos muito recentes ao ponto de
causar enormes preocupações no sentido de que o coração da América Latina, o
seu maior e mais central país aderisse ao bloco soviético.
Certamente, o reformismo de João
Goulart não tinha como horizonte estratégico (ao menos na sua intencionalidade
política) o marxismo-leninismo. Jango era um político progressista e
nacionalista, mas com tendências moderadoras, como ficava sinalizado nos seus
vai e vens políticos. Ele próprio era um latifundiário do Rio Grande do Sul e
seu projeto de reforma agrária era bastante criticado pelos movimentos camponeses
por sua timidez. Na verdade, o que a classe dominante mais temia era que as
reformas e a agitação popular pudessem fugir de seu controle viabilizando uma
ruptura revolucionária – esta era, aliás, a expectativa dos setores mais
esquerdistas, como Polop.
Em síntese, a suposição de que a
direita não constitua um efetivo perigo para a legalidade e as instituições foi
o fator central para a vitória dos golpistas. Ao não perceber o perigo,
deixava-se o campo popular ser levado pelas bravatas de Brizola ou movimentos
potencialmente explosivos, como a rebelião dos marinheiros no RJ e de sargentos
em Brasília, uma quebra da hierarquia militar que, como dogma que é, isolaria
cada vez mais o presidente das forças armadas.
Faltaram certamente algumas perguntas
que não foram formuladas então e só puderam ser pensadas à luz dos
acontecimentos históricos subsequentes:
“E
se por acaso nos enganássemos em nossas avaliações superotimistas, distanciadas
do quadro real, em que as forças de esquerda se encontravam intrinsecamente
divididas ou mergulhadas em visões de uma revolução armada tão improvável? E se
nos enganássemos quando sonhávamos em marchar no dia D de braços dados com a
burguesia nacional?
E
se não poupássemos munição na luta anti-imperialista para enfrentar o arsenal
do Ipes, dos militares não legalistas e do embaixador Gordon? E se nos
enganássemos perdendo fôlego numa sangria verbal que nos empurrava para longe
de um projeto estratégico de transformações sociais?
(...)
Se
nos enganássemos, pelo menos não cairíamos sozinhos.
Porque
até o embaixado da URRS no Brasil, André Fomin – segundo informe secreto
enviado pela embaixada americana ao Departamento de Estado em 25 de setembro de
1863 -, supunha que “os direitistas não constituíam perigo para Goulart”.
O
Diplomata soviético, tempos depois, foi transferido para o Paquistão Oriental,
atual Bangladesh”.
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