quinta-feira, 17 de outubro de 2013

“A Esquerda e o Golpe de 64” – Dênis de Moraes


Resenha Livro #78 “A Esquerda e o Golpe de 64” – Dênis de Moraes – Ed. Expressão Popular 2011
 
 

 

“O perigo que Jango representava para a direita não era ele, pessoalmente, e sim a impossibilidade de controlar aquele processo” Theotônio dos Santos

 

Certamente, após a leitura do rico panorama da conjuntura política do pré-64, tendo como foco o desempenho das diversas forças de esquerda daqueles anos, há de se constatar que veio em bom momento a re-edição desta importante pesquisa histórica, originalmente publicado nos anos 80 e republicado agora já em sua 3ª edição pela Expressão Popular (2011).

Como foi possível observar com o levante da juventude e as grandes mobilizações que levaram às ruas cerca de 2 milhões de pessoas no Brasil em Junho de 2013, muito do que foi construído e consolidado na Ditadura Militar continua em plena operação. Com as lutas vieram a repressão e reviveu-se o terror de um aparato repressivo cujas bases institucionais remontam à ditadura militar. Na USP, alunos que ocuparam a reitoria em 2011 foram “eliminados” da universidade com base no regimento interno da universidade feito em 1973 e que prevê o cerceamento das atividades políticas e do pensamento. A brutal repressão ao movimento passa livre em Junho de 2013 culminou não só no levante de significativas parcelas da juventude em todo país. Expôs claramente o papel da Polícia Militar (entulho da época da Ditadura) como instrumento de repressão direta por meio da violência, prisões arbitrárias e forjadas.

Assassinatos e torturas são também produto de certo esquecimento de nosso passado autoritário. Naturalizou-se muitos assassinatos até o desaparecimento de Amarildo e a posterior descoberta que o mesmo havia sido torturado e morto. Ou como um último retrato da violência do poder econômico sobre o direito de resistência dos trabalhadores e do povo, a brutal desocupação do Pinheirinho em São José dos Campos, repressão que não se mostrou sequer intimidada com as câmaras que repercutiram posteriormente na internet dirigente do movimento social e um morador do bairro sendo espancados até sangrar antes de levados à prisão, para além de denúncias de tortura e estupro cometidos por policiais da ROTA.

O fato é que o tema do livro de Dênis de Morais permanece bastante pertinente nos dias de hoje. Todas as violências perpetradas pela polícia contra os movimentos sociais nos últimos anos encontra seu amparo na história, na conformação e estruturação do poderio militar no poder. E este só foi possível com a consumação do golpe de estado de 1964.

Este livro propõe formular importantes perguntas sobre o nosso passado. Por que a esquerda foi derrotada com o Golpe de 1964? Quem foram responsáveis pela derrota? Quais foram os eventos que levaram ao desdobramento fatídico de 1º de Abril de 1964? Como a esquerda estava organizada? Qual era a sua base social e parlamentar? Como soube equacionar a co-relação de forças políticas e militares naqueles anos de forte polarização e agitação política (1963-64)? Que tipo de iniciativas poderiam ter sido tomadas para conter os golpistas?

Para responder às questões o livro serviu-se de um vasto trabalho de pesquisa de livros, jornais e periódicos da época, além de depoimentos de personagens de destaque durante aqueles anos. Este vasto esforço de sistematização de informações e opiniões políticas são confrontados abertamente na pesquisa, quando podemos perceber balanços muito distintos dos significados do Golpe, de Brizola (ex-governador do RS e RJ) a Luiz Carlos Prestes (ex-senador e dirigente do PCB) , de Julião Tavares (dirigente das Ligas Camponesas) a Miguel Arraes (este último, ex-governador de Pernambuco, que, infelizmente, não atendeu às solicitações de entrevista do historiador).

Há de se destacar em primeiro lugar que aqueles anos do pré-64 não foram marcados exclusivamente pela crise política, mas também por graves problemas na economia. Basta relatar que em 1963 o índice de custo de vida (inflação) atingia 81% e o déficit orçamentário correspondente a mais de um terço dos gastos totais, contabilizando um crescimento de 1,5%. Outro grande problema então era o problema da divida externa que então estava na escala de 3,8 bilhões de dólares. Há de se constatar que a demissão do ministro da fazenda Carvalho Pinto foi um dos elementos de desestabilização e perda de apoio parlamentar de João Goulart. Isso porque Carvalho Pinto era político da classe dominante paulista, um homem de confiança da elite – poderíamos comparar com um “Henrique Meirelles” do governo Lula, com a ressalva de que este último ocupou não a chefia da pasta da fazenda, mas do Banco Central.

O fato é que a saída de Carvalho Pinto abriu uma disputa por um ministério estratégico. Afinal, por trás das reformas de base haveria de ter um plano econômico que viabilizasse a reforma agrária, taxasse os lucros que saíssem do país (algo que Jango efetivamente alcançou por meio de projeto de lei) e enfrentasse o problema da dívida externa e da tutela do FMI. Ninguém menos do que Brizola passou a postular o cargo, um político com alguma expressão eleitoral e popular e que era e foi até a morte odiado pela classe dominante brasileira.

Certamente Brizola tinha uma política menos conciliatória do que a de João Goulart, tendo importante papel na garantia da posse do presidente em 1961, quando houve já uma tentativa de golpe buscando evitar que o vice assumisse após a renúncia de Jânio Quadros. Após o triunfo da revolução cubana, Brizola tinha expectativa de que o Brasil poderia trilhar caminho semelhante. Quanto ao cargo da fazenda, no final, prevaleceu o temperamento moderador de Goulart e assumiu a pasta da fazenda um outro político de menor importância. Entretanto, Brizola de um lado e Miguel Arraes de outra se lançariam posteriormente numa disputa interna pela sucessão nas eleições presidenciais que ocorreriam em 1965.  

Mas como dizíamos, havia nos anos anteriores ao golpe uma crise econômica e uma crise e polarização políticas. Estas estavam relacionadas fundamentalmente às tensões da Guerra Fria, que opunham dois polos antagônicos no plano nacional. De um lado, nacionalistas, reformistas, brizolistas e comunistas dentro de um Bloco Nacional-Popular dirigido por Jango e contando com importante participação dos sindicalistas da CGT, do incipiente mas combativo movimento estudantil organizado na UNE e no CPC (Centro Popular de Cultura), do ISEB, instituto de estudos da realidade brasileira então chefiado pelo general comunista Nelson Werneck Sodré, os camponeses ligados às Ligas, os “clube dos onzes” brizolistas e, no plano partidário, o PTB de Jango, o pequeno Partido Socialista, o PCB (soviético), o PCdoB (“racha” do PCB, mais esquerdista e influenciado pelo maoismo), a Ação Popular (derivada da antiga e também massiva Juventude Universitária Católica), e, mais à esquerda, o Polop e o Por (trotskysta); do outro lado da trincheira havia os golpistas, militares e civis.

É interessante notar aqui que a própria esquerda cometia erros na própria delimitação de seu adversário. Particularmente os comunistas, presos a uma estratégia etapista e com uma análise errada acerca do papel da burguesia nacional, entendiam que a reação fosse obra do “latifúndio feudal” e velhas oligarquias políticas, enquanto a burguesia nacional só poderia pender para o projeto reformista/revolucionário da frente popular. O fato é que o golpe contava com forte apoio político e militar dos estados unidos e, ademais, das elites econômicas mais modernas, incluindo o empresariado da imprensa (Roberto Marinho, Assis Chauteaubriand e Samuel Weiner). Havia o partido direitista da UDN (do ex-governador fluminense Carlos Lacerda) e o Ipes, instituto voltado à difusão das bases teóricas/políticas dos golpistas. Ou seja, foi um golpe não só militar, mas civil, apoiado pela elite do empresariado brasileiro que, contando com o apoio praticamente unânime da imprensa, soube conquistar as classes médias e as forças armadas com seus discursos de “terror”, falando do perigo comunista e ateu, da suposta “república sindicalista” de Jango. Combatendo nas ruas, inclusive, a partir de uma massiva marcha pela família em São Paulo, agregando carolas, padres e uniões cívicas de mulheres, unidos numa espécie de reação “patriótica” contra o avanço das esquerdas, em defesa da família e da religião.

O fato é que no decorrer dos anos de 1963-64, o governo João Goulart foi perdendo aquilo que poderíamos chamar de “opinião pública”, com uma importante inflexão dos setores médios dos centros industriais contra Jango, além da divisão e desarticulação do bloco popular.

Várias teorizações são feitas ao longo do livro, em especial nos depoimentos pessoais, das origens da derrota das esquerdas em 1964. Em primeiro lugar, uma opinião bastante reiterada pelos depoentes era a falta de um trabalho político mais intenso junto às forças armadas. O que havia era um falso sentimento de que, no caso de algum movimento golpista, a maior parte das forças armadas ficaria do lado dos legalistas. Certamente, João Goulart cometeu erros políticos importantes. Era assessorado por Assis Brasil, chefe da Casa Militar que não tinha a autoridade e a firmeza de um Marechal Lott, capaz de detectar a tempo as movimentações golpistas e agir com firmeza.

Ademais, praticamente todos os relatos são unânimes no sentido de apontar não só a franca participação dos EUA no golpe, mas o fato deles mesmos (a esquerda) não terem àquela noção real do tamanho do aparto militar e de inteligência montado pelo imperialismo para derrotar Jango, suas Reformas de Base e garantir os interesses dos monopólios e do empresariado nacional e internacional. A revolução cubana de 1959 e sua adesão ao bloco soviético em 1961 ainda eram eventos muito recentes ao ponto de causar enormes preocupações no sentido de que o coração da América Latina, o seu maior e mais central país aderisse ao bloco soviético.

Certamente, o reformismo de João Goulart não tinha como horizonte estratégico (ao menos na sua intencionalidade política) o marxismo-leninismo. Jango era um político progressista e nacionalista, mas com tendências moderadoras, como ficava sinalizado nos seus vai e vens políticos. Ele próprio era um latifundiário do Rio Grande do Sul e seu projeto de reforma agrária era bastante criticado pelos movimentos camponeses por sua timidez. Na verdade, o que a classe dominante mais temia era que as reformas e a agitação popular pudessem fugir de seu controle viabilizando uma ruptura revolucionária – esta era, aliás, a expectativa dos setores mais esquerdistas, como Polop.

Em síntese, a suposição de que a direita não constitua um efetivo perigo para a legalidade e as instituições foi o fator central para a vitória dos golpistas. Ao não perceber o perigo, deixava-se o campo popular ser levado pelas bravatas de Brizola ou movimentos potencialmente explosivos, como a rebelião dos marinheiros no RJ e de sargentos em Brasília, uma quebra da hierarquia militar que, como dogma que é, isolaria cada vez mais o presidente das forças armadas.

Faltaram certamente algumas perguntas que não foram formuladas então e só puderam ser pensadas à luz dos acontecimentos históricos subsequentes:

“E se por acaso nos enganássemos em nossas avaliações superotimistas, distanciadas do quadro real, em que as forças de esquerda se encontravam intrinsecamente divididas ou mergulhadas em visões de uma revolução armada tão improvável? E se nos enganássemos quando sonhávamos em marchar no dia D de braços dados com a burguesia nacional?

E se não poupássemos munição na luta anti-imperialista para enfrentar o arsenal do Ipes, dos militares não legalistas e do embaixador Gordon? E se nos enganássemos perdendo fôlego numa sangria verbal que nos empurrava para longe de um projeto estratégico de transformações sociais?

(...)

Se nos enganássemos, pelo menos não cairíamos sozinhos.

Porque até o embaixado da URRS no Brasil, André Fomin – segundo informe secreto enviado pela embaixada americana ao Departamento de Estado em 25 de setembro de 1863 -, supunha que “os direitistas não constituíam perigo para Goulart”.

O Diplomata soviético, tempos depois, foi transferido para o Paquistão Oriental, atual Bangladesh”.

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