O leitor brasileiro pode ter tido notícia da existência deste
importante historiador polonês através de sua notória biografia de L. Trótsky,
publicada em três volumes: o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta
Banido. Escreveu também uma biografia de Stálin e, como jornalista, publicou
diversos ensaios, sobre história, política internacional e também crítica
literária.
“Ironias da História” reúne diversos ensaios publicados pelo autor
entre os anos de 1950 a 1960. Como não poderia deixar de ser, sendo um grande
especialista em Revolução Russa, boa parte dos ensaios de Deutscher versa sobre
os dilemas e impasses da revolução, especificamente nos anos que vão do
stalinismo até o processo contraditório e ambíguo da desestalinização. Este
fato não teve repercussão apenas na Rússia, mas em todo o mundo.
Lança mão, nesse sentido, de uma reflexão acerca dos sentidos da
destalinização na Rússia e na China: na primeira, o fenômeno expressa um certo
esgotamento do regime fortemente centralizado que desenvolveu intensamente a
industrialização, além da instrução de grandes contingentes de cidadãos, que,
cada vez mais, olhavam com desconfiança para a burocracia partidária no poder.
A desestalinização na China assume outras características, especialmente pelo
fato dos chineses ainda se encontrarem num estágio eminentemente
pré-capitalista em sua economia. Assim, certamente houve maior resistência
dentre os chineses em recepcionar as denúncias de Nikita Kruschev dos expurgos
e mortes, além do culto à personalidade de Stálin. Ainda precisavam da mística
do líder para efetuar a sua respectiva modernização. Tanto o é que,
inicialmente, os chineses ainda se apegam à figura de Stálin, mesmo após o XX
Congresso. Os comunistas russos passam a ser observada pelos chineses como revisionistas,
especialmente em função de outros desdobramentos do fim da era stalinista, como
a teoria da co-existência pacífica – teoria encarada pela ortodoxia de Pequim
como uma traição ao internacionalismo.
Uma pequena ironia da história, aqui, é que Stálin, ele próprio,
conspirou intensamente contra a revolução socialista na China, exigindo que
seus partidários chineses se centralizassem por Chiang Kai-shek, líder
nacionalista burguês do Kuomitang. Mao Tsé Tung já observara e provou na
prática o erro da concepção “etapista” de Stálin segundo o qual um país
essencialmente agrária e atrasado como a China deveria primeiro passar pela
etapa da revolução burguesa-democrática, com os comunistas apoiando e se
submetendo à direção da burguesia. Em 1949, Mao Tsé Tung e seus companheiros
provaram a força da tática da revolução permanente, levando a China ao
socialismo, muito provavelmente a contra-gosto de Stálin.
Afinal, alerta Deutscher, tanto a teoria da “co-existência pacífica”
quanto a teoria do “socialismo num só país” reflete a mudança da perspectiva
internacionalista da fase leninista da revolução para a posterior política
chamada pelo historiador de “grão-nacionalismo” e que buscava muito mais atuar
por meio do pragmatismo e da realpolitik
no campo das relações exteriores, do que exercer movimentos mais ousados,
especialmente no contexto da Guerra Fria e da possibilidade iminente de um
confronto entre as duas potências.
Algumas palavras merecem ser mencionadas sobre a era Nikita Kruschev,
observada como momento de conjuntura para Deutscher e personagem a quem mais
faz referência no conjunto de seus ensaios. Isto não se dá certamente pelas
qualidades intelectuais e militantes de Kruschev. Este estava longe de ser o
comunista independente e autônomo que voluntariamente partiu para o projeto da
desestalinização, conforme certa propaganda feita no ocidente. Na verdade, acabar
com o stalinismo foi algo feito a contra-gosto por Kruschev e seus companheiros,
já que todos eles, até por estarem nos cargos em que estavam, estiveram durante
todos os anos stalinistas servindo Stálin subservientemente.
Stálin foi particularmente feroz com os seus adversários ou mesmo com
lideranças que despertavam a desconfiança do georgiano. Os anos de 1936-38
foram os mais expressivos quanto aos expurgos, sendo certo que Stálin tinha
como meta (e o alcançou) fazer do partido um monólito, sob sua direção suprema.
Para isso, o marxismo transformou-se em dogma, qualquer oposição de pensamento
a linha oficial era caçada e foi feito o culto ao líder. A desestalinização foi
um fenômeno feito de cima para baixo antes
que pudesse ser feito de baixo para cima, e certamente as movimentações na
Hungria viriam a sinalizar o potencial explosivo que estava por baixo do fim do
stalinismo.
Há um ensaio específico destinado a retratar a figura de Kruschev. Era
um homem de origem muito simples e que certamente não perdera em seus modos e
trejeitos os aspectos de um camponês típico. Não tinha maiores qualidades
intelectuais e o seu discurso do XX Congresso que o colocou num lugar de
destaque pode enganosamente engrandecer o seu significado. É preciso enfatizar,
diz Deutscher, que a desestalinização é feita de forma, como diríamos, “lenta, gradual e segura”, especialmente por
ser levada a cabo por ex-stalinistas que certamente tinham também
responsabilidades pelos crimes de Stálin. Especialmente por isso, seria necessário
dirigir o processo sob sua direção. Entretanto, dizer que o movimento dos
dirigentes era expediente oportunista é negligenciar justamente a importância
histórica e o impacto da desestalinização.
Para concluir, destacamos a quarta parte do livro, “Ensaios Históricos
e Literários”, correspondente a alguns textos de crítica de arte feitos pelo
historiador. A leitura destes ensaios, bem como de todo o livro, aliás, revelam
um historiador com um vasto repertório cultural e de informações,
principalmente sobre a história, sociedade e cultura da Rússia. Os dados nos
são oferecidas dentro de quadros de interpretação que têm como ponto de apoio o
marxismo, ainda que os textos deste livro em particular, por se tratar de
análises de conjuntura, ter maior relevo o tom jornalístico, com mais exposição
e menos teorização dos fatos. Mas é certo que Deutscher teve responsabilidades
como intelectual e as assume ainda mais quando reivindica em claras letras o
marxismo, restando saber em que medida eventuais preferências políticas do
autor, por exemplo, não subestime a importância de um Stálin e não sobretime a
importância de um Trótsky.
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