domingo, 29 de outubro de 2023

O Tempo e o Vento - Érico Veríssimo

O Tempo e o Vento - Érico Veríssimo





Resenha Livro – “O Tempo e o Vento.  Tomo I. O Continente” – Érico Veríssimo – Ed. Globo.

 

Não seria exagero dizer que o escritor gaúcho Érico Veríssimo foi o mais fiel retratista do povo gaúcho, da sua história e dos seus costumes.

 

Não seria correto, porém, dizer que toda a sua obra, elaborada entre os anos 1930/1970, apenas tivesse tratado e se situado dentro daquilo que ele próprio dizia ser o “Continente”, a antiga Província de São Pedro das Missões, hoje Estado do Rio Grande do Sul.

 

Os seus primeiros livros, situados naquilo que ficou conhecido como “O Ciclo de Porto Alegre”,  não são obras propriamente regionalistas. Ainda que todas as histórias deste conjunto de narrativas se passem na capital gaúcha, a cidade, que tinha então cerca de 300.000,00, era apenas o cenário, o mero pano de fundo dos enredos.

 

Dos primeiros livros, o mais conhecido (e aquele que levou o escritor ao sucesso de público) foi “Olhai os Lírios do Campo” (1932). Esse e os demais foram escritos na juventude de Veríssimo, quando acabara de se mudar do interior gaúcho para a capital riograndense, para trabalhar como jornalista na Editora Globo. A cidade de Porto Alegre, nessas histórias, aparece mais como um detalhe, já que a narrativa tem um conteúdo mais universal, podendo tido as situações se passado em qualquer outro lugar.

 

Nas palavras do próprio escritor: “procurando analisar com imparcialidade os meus romances anteriores ao Tempo e o Vento, eu percebo o quão pouco, na sua essência e na sua existência, eles tinham a ver com o Rio Grande do Sul. Tendiam para um cosmopolitismo sofisticado, que me levava a descrever a provincianíssima Porto Alegre de 1934 como uma metrópole tentacular e turbulenta (...)”. (“Solo de Clarineta”, V. 1).

 

O ponto alto da literatura de Érico Veríssimo dar-se-á depois, na década de 1940, quando começou a escrever a sua obra prima, na verdade, uma triologia chamada “O Tempo e o Vento”. Nesta coletânea, o escritor pretendeu contar a história do Rio Grande do Sul desde 1745 até meados do século XX, na forma de literatura.

 

Há nesses três livros um painel e mosaico das histórias de famílias, grupos e clãs políticos locais que por duzentos anos ocuparam o território, constituíram vilas e cidades, promoveram guerras com os castelhanos pelo domínio da terra e envolveram-se em brutais guerras civis, essas últimas até mais sangrentas que os conflitos com os espanhóis.

 

É, portanto, a partir de o “Tempo e o Vento” que Érico Veríssimo pode ser situado dentro do movimento modernista regionalista dos anos de 1930. Ao lado de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, o escritor gaúcho fez parte da chamada “Geração de 30”, que deu continuidade ao movimento modernista de 1922, responsável por redescobrir o Brasil e situar a literatura brasileira em premissas e formas literárias próprias, especificamente nacionais.

 

No que tange aos escritores regionalistas, essa redescoberta do Brasil se relaciona com a descrição regional do país, os hábitos e costumes do povo das cidades nordestinas, dos camponeses ligados a economia do açúcar, das Usinas, das plantações de cacau do sul da Bahia, dos vaqueiros do interior mineiro até os estancieiros do Sul. Captam com maior particularidade o mosaico de culturas que compõem o país e assim dão uma solução de continuidade ao nacionalismo dos anos 1920, aprofundando as possibilidades de compreensão do Brasil.

 

E, não menos importante, traduzem desde o regional os problemas universais. O drama existencial dos retirantes nordestinos do Vidas Secas de Gaciliano Ramos não são tão diferentes dos dilemas e questões que afligem os criadores de gado, os imigrantes europeus e os agricultores de trigo da vila de Santa Fé, descrita nos livros de Veríssimo. O regional é o universal tal qual o mundo é o sertão, como disse Guimarães Rosa.

 

História do Rio Grande do Sul

 

Se há um fio condutor, um elemento geral que conduz a história do “Continente”, esse certamente é o da Guerra.

 

O ponto de partida da História do Rio Grande do Sul deu-se inclusive através da Guerra das Missões (1753/1756) que opuseram as Coroas de Portugal e Espanha e os jesuítas e índios ligados aos aldeamentos religiosos.

 

Os primeiros contatos entre índios do sul e a civilização europeia deu-se através das missões jesuíticas, que agrupavam índios em grandes aldeias onde lhes eram ensinadas a doutrina católica e organizado um trabalho de tipo comunal. Se a colonização da América fundamentalmente se deu por motivos econômicos, relacionados inicialmente à abertura de novas rotas marítimas, não é menos verdade que o empreendimento europeu também tinha objetivos religiosos. Os Jesuítas operavam, neste sentido, como agentes da colonização no que toca à conversão religiosa dos índios. Ensinavam-nos a doutrina através da música, da dança e do teatro. Ensinavam ofícios aos índios. Buscavam, na medida de suas forças, desconstituir atividades bárbaras praticadas pelos nativos, nitidamente a antropofagia.

 

Contudo, já desde os fins do século XVI, as missões passariam a ser alvos das bandeiras paulistas, que nela viam a oportunidade de capturar índios já agrupados coletivamente (e não dispersos na floresta) e disciplinados ao trabalho, como forma mais prática de raptá-los para depois vende-los como escravos.

 

O fato de os paulistas terem expandido os seus domínios através do aniquilamento das missões criou, por outro lado, as condições para o estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste, dentro do princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).

 

As Guerras Guaraníticas, que correspondem à certidão de nascimento do “Continente”, deu-se nos marcos do Tratado de Madrid, quando espanhóis e portugueses reestabeleceram os limites de suas fronteiras. O limite estabelecido entre as duas nações foi remarcado pelo rio Uruguai, com Portugal possuindo o território a leste do rio e a Espanha a oeste. No acordo, os portugueses entregam aos espanhóis a Colônia do Sacramento (atual Uruguai) e em troca recebem todo o território dos chamados “Sete Povos das Missões”.

 

Isso fez com que as sete missões jesuítas a leste do rio Uruguai, conhecidas como Missões Orientais, deveriam ser desmanteladas e deslocadas para o lado oeste espanhol do rio. Estima-se que havia até 30.000,00 índios e jesuítas vivendo nessas missões, que deveriam ser entregues ao governo português, devendo os missionários imediatamente cumprir ordem de mudança para os novos domínios espanhóis. E da resistência às ordens emanadas das coroas europeias adveio as Guerras Guaraníticas, da qual participaram índios e a parcela mais corajosa e militante dos jesuítas.

 

As guerras envolvendo índios, jesuítas, bandeirantes paulistas e as coroas portuguesa e espanhola são o ponto de partida da história do “Continente”, que segue sempre a linha condutora do conflito e de tragédias sanguinárias.

 

Nos capítulos da triologia, são descritas como foram constituídas as primeiras vilas e cidades do sul, a conformação política em torno de estancieiros e oligarcas locais, que se organizavam através de líderes familiares que impunham a lei e a ordem e estruturavam a defesa militar do território, seja em tempos de guerra, seja em face de bandoleiros e piratas da terra, que invadiam as cidades, roubavam o gado, destruíam as plantações, matavam os homens e estupravam as mulheres.

 

Cria-se uma espécie de cultura de guerra da qual o conhecido personagem do livro, capitão Rodrigo Cambará, seja talvez a sua expressão mais verdadeira.

 

Para o povo do sul, ou mais especialmente para o homem gaúcho, a guerra é o momento de se romper com o tédio do cotidiano, resolver animosidades acumuladas ao longo do tempo, expulsar estrangeiros e garantir o domínio territorial. E, no caso de guerras civis, notadamente a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista, trata-se do momento de se opor  clãs e grupos familiares em torno da luta pelo poder, conflitos que se exteriorizam em guerras entre liberais e conservadores, farrapos e caramurus, maragatos e pica paus.

 

A tradução literária da história do Rio Grande do Sul em “O Tempo e o Vento” significa dizer que temos aqui não apenas um romance ficcional, mas um típico “romance social” dos escritores da Geração de 1930, com uma dose maior de realismo, já que se baseia na história do país. E, no caso de Veríssimo, de uma literatura mais horizontal e menos vertical, mais sociológica e menos psicológica, mais voltada a coletivos, famílias, grupos e clãs e menos aos indivíduos.

sábado, 30 de setembro de 2023

A LITERATURA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

 Resenha livro – “A Falência” – Júlia Lopes de Almeida – Iba Mendes Editor Digital




 

São muitos os exemplos de grandes escritores que não granjearam o devido reconhecimento ao seu tempo.

 

O exemplo mais conhecido da literatura nacional é o de Lima Barreto. O grande cronista do subúrbio carioca, sátiro da sociedade brasileira da Velha República, não teve o devido reconhecimento do público de seu tempo.

 

Hoje, por outro lado, sabe-se que o seu Policarpo Quaresma tem a mesma relevância nacional (e até um evidente paralelo) com o Dom Quixote de Cervantes. Cada qual sintetizava, ainda que de forma irônica, a cultura nacional, respectivamente brasileira e ibérica. Transcorreram, contudo, muitos anos até que Lima Barreto fosse alçado a um dos mais importantes escritores brasileiros.

 

O caso de Júlia Lopes de Almeida vai em sentido contrário. Foi a mulher mais lida no Brasil da Primeira República. Contemporânea de Machado de Assis e Aluízio de Azevedo, foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, principal instância de consagração literária do Brasil.

 

Por outro lado, assim como Lima Barreto, a nossa escritora teve de lidar com as terríveis vicissitudes relacionadas aos preconceitos da época. Barreto por ser negro, lidou e descreveu em seus livros o desprezo e a discriminação seculares relacionados a um país recém egresso da escravidão. E Júlia Lopes, por ser mulher, teve que arcar com dificuldades relacionadas a momento histórico em que a literatura era uma atividade exclusivamente masculina.

 

Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida nasceu em 24 de setembro de 1862 no Rio de Janeiro, ou mais exatamente num casarão na Rua do Lavradio, onde se localizava o Colégio de Humanidades, então presidido por seu pai.

 

Entre os sete e os vinte e três anos vive em Campinas, no interior de São Paulo, onde se inicia o seu interesse pela literatura.

Numa entrevista concedida a João do Rio em 1905, Lopes conta que na adolescência fazia versos escondida: fechava-se num quarto, abria a secretária, escrevia seus poemas e silenciosamente os guardava na gaveta fechada à chave.

 

Esta experiência irá posteriormente se expressar nos seus livros, marcados por um estilo intimista. Sua literatura tem sempre uma atmosfera de interiorização, como se ela escrevesse voltada para dentro. Tal qual a adolescente trancada num quarto, fazendo algo que àquela época era inadmissível a uma mulher.

 

Ainda em Campinas, Lopes começa a escrever para jornais. Seu primeiro artigo tratou de uma peça teatral que se passou na cidade do interior paulista. Seu pai, também escritor, foi inicialmente convidado a resenhar o espetáculo. Alegando não ter tempo, incumbiu sua filha de elaborar o texto. E aos 19 anos, Júlia começaria uma carreira literária que envolveria a publicação de mais de trinta livros, além de ampla participação no jornalismo carioca.

 

Influenciada por escritores realistas e naturalistas dos fins de XIX, Lopes ocupou-se de retratar o Brasil do início dos anos 1900. É próxima das ideias abolicionistas e republicanas, a despeito de seus livros apenas muito remotamente ter conteúdo mais explicitamente político.

 

Ela descreve os primeiros anos da República Velha, a ascensão de uma burguesia citadina ligada ao comércio do café e a transição da economia escravocrata para a sociabilidade capitalista. Mas o faz com um olhar feminino, atenta aos detalhes, focada nas emoções e nos influxos de pensamento no bojo dos quais os seus personagens agem. Pensamento, sentimento, hesitações, as ambiguidades da alma têm igual ou maior importância do que os atos dos seus personagens. Uma extrema delicadeza, sensibilidade e lirismo denotam um estilo que podemos chamar de “feminino.”.  

 

Não se tratava, por outro lado, de uma literatura propriamente “feminista”, epíteto que não era utilizado à época, mas, se fosse, certamente não seria reivindicado por nossa escritora.

 

No seu livro mais conhecido, “A Falência” (1915) a escritora de certa forma confronta alguns preconceitos da época, ao alçar como protagonista da história uma mulher que trai o marido.

 

Camila, esposa de um capitalista ligado ao comércio do café, mantém por seu marido um amor de amizade e respeito, mas ama maritalmente o Dr. Gérvasio, com quem mantém a tal relação extraconjugal, que é de conhecimento de todos, menos do seu distraído marido.

 

Contudo, poderíamos dizer que o seu “feminismo” para por aqui.

 

Não há propriamente uma insurgência em face dos papeis tradicionais reservados à mulher, uma oposição às tarefas de educação dos filhos e cuidados domésticos atribuídos à dona de casa.

Júlia Lopes ela própria soube bem conciliar (sem qualquer manifestação de “revolta”) o seu papel de escritora, esposa, mãe e dona de casa.

 

O que ela postulava basicamente era a educação moral da mulher e alguma compaixão da mulher infiel, sempre apontando que o mesmo dever de fidelidade não era socialmente cobrado dos homens.

 

Defendia a capacitação profissional da mulher para o trabalho remunerado dentro ou fora de casa.

 

É o que consta do seu livro “A mensageira”:

 

“Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num dia de luta, e uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as qualidades morais. Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus deveres, marcará, funda, indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento de ordem, de estudo e do trabalho de que tanto carecemos...” (1897).

 

No que toca ao seu citado romance “A Falência”, a realidade social da família burguesa citadina, enriquecida pela até então pujante economia do café, enseja personagens mulheres que se dedicam aos cuidados da casa, às leituras e ao ócio. As visitas da casa de Camila dedicam-se à troca de informações sobre a vida alheia: as fofocas são disseminadas como o vento, são amplamente propagadas em conversas de bonde.

 

Tal realidade   vê-se abruptamente transformada com a crise do comércio. O capitalista Francisco Teodoro faz um investimento arriscado e põe toda sua riqueza a perder, levando-o depois ao suicídio. Sua família, desmantelada, passa a depender da ajuda de parentes. E a protagonista Camila, agora viúva e empobrecida, vê-se obrigada a começar uma nova vida no trabalho, a despeito de não ter qualquer capacitação e experiência no labor.

 

O triste fim da protagonista dá margem à “crítica social” da escritora carioca. Uma crítica lírica, resignada, conciliadora e, por isso, aclimatada ao espírito do seu tempo. Fosse talvez um pouco diferente, e Lopes teria tido a mesma triste sorte de Lima Barreto.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

O CICLO DA CANA DE AÇÚCAR POR JOSÉ LINS DO REGO

O CICLO DA CANA DE AÇÚCAR POR JOSÉ LINS DO REGO



  


“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária.

Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.


Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).


Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.


Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.


Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).  


Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.


Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.


A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).


Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.


Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

  

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.  

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

USINA

 

Usina é o quarto e último livro do ciclo da cana de açúcar. Foi publicado no ano de 1936 e dedicado ao mencionado Graciliano Ramos e ao editor José Olympio. Ambos plenamente relacionados àquele conjunto de escritores da chamada geração modernista de 1930, cujas histórias descrevem questões existenciais e atemporais aclimatadas na região nordestina.

 

O livro dá continuidade à história da Fazenda Santa Rosa que passa à direção de Dr. Juca, filho do velho senhor de engenho José Paulino e tio de Carlos Melo, o bacharel que fracassara no seu intento de presidir os trabalhos.

 

Neste volume vê-se a consolidação de um movimento histórico já sinalizado em “Banguê”: a decadência do engenho de açúcar e do mundo patriarcal a ele vinculado e a constituição da “Usina”, construída pelo Dr. Juca e que enseja um novo ritmo de trabalho ditado pelas máquinas.

 

Na usina a terra é tomada meramente como capital ao passo que no engenho a terra é um bem simbólico imobilizado por grupos familiares por gerações.

 

A nova organização do trabalho dá-se em bases capitalistas substituindo o anterior modo de produção que alguns estudiosos da História do Brasil caracterizaram como feudalismo. Sai de cena o Senhor de Engenho que preside os trabalhos, administra a jurisdição, impõe castigos, concede o perdão e dá a benção. Entra em cena o Capitalista, o dirigente impessoal e frio como suas máquinas, que descarta famílias que lá viviam por gerações como meras peças sem serventia de uma gigante engrenagem.     

 

A reestruturação produtiva envolve a conversão dos roçados de alimentos dos trabalhadores em vastas extensões de plantação de cana. Tudo o que era terra agricultável, nos tempos da usina, devem ser aproveitadas exclusivamente para o plantio de cana. Há mesmo o desvio dos rios onde os camponeses pobres irrigavam sua terra para subsistência para incrementar a produção industrial do açúcar. Antes o pobre tinha água para beber e agora passam fome e sede na caatinga. E é mesmo comum o sentimento de nostalgia dos tempos de José Paulino, especialmente dentre os trabalhadores do eito. Um desejo de retorno a um mundo perdido para sempre.

 

A remuneração passa a ser feita por meio de vales que são trocados por alimentos junto a um barracão controlado pelo usineiro, num regime de servidão por dívidas que mantém situação de exploração em certos aspectos ainda pior do que o dos tempos da escravidão.

 

Num primeiro momento, Dr. Juca alcança um grande êxito comercial ao transformar o banguê de seu avô José Paulino na Usina Bom Jesus. Nessa bonança, o capitalista leva uma vida de  pouca sobriedade e moderação nos seus gastos, direcionados a futilidades. Frequenta uma casa de prostitutas em Recife onde se relaciona com mulher com quem gasta uma fortuna com presentes e viagens. Adquire veículos de luxo e gasta muito contos de réis só com gasolina.

 

Ambicioso, Dr. Juca toma uma iniciativa arriscada: aceita hipotecar suas terras em troca de empréstimo para aquisição de máquinas e tecnologia para a expansão da produção. Para tanto, faz negócio com um americano que alega ter colhido bons frutos com a restruturação tecnológica em plantações de açúcar de Cuba.

Os planos de Dr. Juca fracassam, as máquinas não funcionam como o esperado, torna-se necessário contratar especialistas mediante caríssima remuneração sem qualquer resultado.

Situação que se agrava e leva à queda da Usina após a crise dos preços do açúcar.  


Na história, a usina figura como um ser vivo, com vida própria e que vai desmantelando todo um mundo constituído através da tradição. Esse ser vivo encontra paralelo com a história de seu dono, o Sr. Juca. Ambos passam por um processo rápido (cerca de três anos) de ascensão e queda abrupta. No caso da Usina de Bom Jesus, o seu abandono após o endividamento e a queda dos preços no mercado. E o Dr. Juca após uma doença e a frustração pessoal decorrente do fracasso do seu empreendimento. Usina e Dr. Juca caminham paralelamente do ápice à queda, gradativamente caminham em direção a uma morte lenta e dolorosa.

 

Ao mesmo tempo, a Usina se impõe como uma força natural parecida com uma grande tempestade, que destrói casas, igrejas, roçados e rios para impor a monocultura industrial do açúcar.


BIBLIOGRAFIA 


"Banguê" - José Lins do Rego - Ed. Global 

"Usina" - José Lins do Rego - Ed. Global 


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

“A Pena e a Lei” - Ariano Suassuna

 Resenha Livro - “A Pena e a Lei” – Ariano Suassuna – Editora Nova Fronteira


 

“Se cada qual tem seu crime,

Seu proveito, perda e dano,

Cada qual seu testemunho,

Se cada qual tem seu plano,

A marca, mesmo da peça

Devia ter sido essa

De Justiça por Engano!”.

 

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

 

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

 

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

 

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro. O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

 

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular.

 

A peça “A Pena e a Lei” (1957) retoma o fio condutor do “Auto da Compadecida” e suscita a ligação entre o humano e o divino novamente através do cômico. Nas palavras do escritor paraibano, trata-se uma “Tragico-comédia-lírico-pastoril”, qualificação que pode ser estendida para outros trabalhos de Suassuna. E, nessa peça em particular, a descrição de personagens que enfrentam num momento a justiça dos homens para, depois, confrontarem-na com a justiça divina.

 

“A Pena e a Lei” foi concebida para ser apresentada como os espetáculos de mamulengo nordestinos: são aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos.

 

Como se trata de uma espécie de ventrículo, consta que o nome “mamulengo” foi uma adaptação da expressão “mão mole”.

 

O primeiro ato da peça dá-se com os atores de mamulengo: é a fase propriamente terrena da peça em que os personagens são apresentados em suas relações puramente humanas. Surge-nos um triângulo amoroso envolvendo Marieta, o delegado Rosinha e o fazendeiro Vicentão. Ambos prometem travar um duelo em nome do coração da mulher desejada. Ocorre que o subtítulo da peça é “a inconveniência de ter coragem”: ambos se arvoravam como os mais valentes e corajosos da vila de Taperoá mas, estimulados e manipulados pelo negro Benedito (que também ama Marieta), são desmascarados na frente da dama já que ambos fogem do combate pelo medo da morte. E Benedito, pouco antes de tomar a mão da donzela pela sua esperteza, se vê preterido por Pedro, indicado que a sua mesma vivacidade derrotou o oponente mas foi derrotada pelo acaso.

 

O segundo ato da peça propõe ser uma espécie intermediária entre o mamulengo e o teatro ordinário feito por homens de carne e osso. Agora, os personagens representarão como gente, mas imitando bonecos, para indicar que aqui na terra somos seres grosseiros, mas com algo de divino dentro de si.

 

Neste ato vê-se o julgamento de um roubo (ou melhor diria ser um furto) de um novilho. A denúncia do crime foi feita pelo fazendeiro Vicentão que acusa um cabra seu chamado Joaquim de ter-lhe tomado o animal. Na delegacia, acusação e defesa formulam suas alegações e suscitam testemunhas. O julgamento do delegado, conforme a justiça dos homens, é comicamente corrupto: a opinião do juiz Rosinha varia de acordo com agrados em dinheiro e bens que lhe são concedidos pelas partes litigiosas.    

 

E o terceiro ato da peça corresponde ao momento do julgamento dos homens perante Deus, de forma muito parecida com os últimos instantes do “Auto da Compadecida.”. Todos os personagens estão mortos e se vêm na presença do filho de Deus, que no caso é ninguém menos do que o dono do mamulengo. Por outro lado, nesta parte os atores deixam de ser bonecos e comportam-se totalmente como pessoas. E ao invés de serem julgados, em seu desespero diante da notícia da morte, acusam Deus por todos os maus que passaram em vida.

 

Novamente a temática da justiça aparece, agora não mais institucionalizada na sociedade dos homens mas  em sua dimensão atemporal e perfeita. Deus é acusado pelos homens e aceita ser colocado na condição de acusado em um processo judicial celeste.

 

E para resolver a lide, formula perguntas aos homens na condição do seu próprio acusador:

 

- Vale a pena fazer parte da vida, sabendo que a morte é inevitável?

- Vale a pena ser mergulhado nesse espetáculo turvo e selvagem, sabendo que o mal assim marca o sol do mundo?

- Vale a pena viver, sabendo que a vida é um dom obscuro, que nunca será inteiramente entendido e captado em seu sentido enigmático?

 

E, por fim, Deus questiona a todos: se pudessem viver viveriam novamente? Pergunta a que todos respondem afirmativamente acarretando a sumária absolvição de Deus.

domingo, 30 de julho de 2023

A GUERRA DOS EMBOABAS

A GUERRA DOS EMBOABAS 





Resenha livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del Rei -  Insurreição” – Bernardo Guimarães – Ed. Itatiaia.

 

“Dos índios poucos tinham injúrias pessoais a vingar, mas fervia-lhes na alma o ódio instintivo, que os açulava contra os europeus, que lhes queriam roubar a liberdade e a terra, que Tupã lhes tinha dado. Os negros, todos escravos fugidos, queriam vingar-se dos golpes de azorrague desumano, que ainda lhes ardia nas carnes, e ao mesmo tempo quebrar os ferros da escravidão. Dos paulistas não havia um só que não trouxesse altamente gravada no coração uma cruel afronta, um esbulho o mais iníquo, a mais clamorosa injustiça.”.  (Bernardo Guimarães - “Maurício ou os Paulistas em São João Del Rei -  Insurreição”).

 

A Guerra dos Emboabas foi um conflito armado que ocorreu entre 1707 e 1710 no recém-descoberto território das Minas Gerais. Mais especificamente no território onde hoje se situam as cidades de Sabará, Ouro Preto e São João Del Rei da região centro-sul estado mineiro

 

Trata-se de uma insurreição de sertanistas paulistas em oposição aos “emboabas”, palavra que significa “forasteiros” ou “estrangeiros”, no caso, basicamente portugueses (chamados de fidalgos) e baianos, que chegaram posteriormente à região aurífera, colocando fim à atividade mineradora até então exclusivamente exercida pelos homens vindo de São Paulo.

 

Para se conhecer melhor esta Guerra é necessário retomar o fio dos acontecimentos desde a época do bandeirantismo, já em sua segunda fase, quando passam da atividade de captura e escravização de índios para o estabelecimento de bandeiras em busca das esmeraldas.

 

Esta dita segunda fase do bandeirantismo pode se situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais preciosos.

 

Esta diretriz se explica pela situação de decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político, exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos do empreendimento colonial.

 

Como veremos, é justamente o incremento deste controle da Coroa Portuguesa sobre a atividade mineradora o ponto de partida da insurreição dos pioneiros mineradores sertanistas de Minas Gerais.

 

As primeiras jazidas de metais preciosos daquela região foram descobertas em 1693 pelos bandeirantes paulistas. Estima-se que nos dez anos subsequentes ao achamento do ouro, cerca de 30.000,00 pessoas, em sua maioria aventureiros, se dirigiram à região movidos pela ambiciosa conquista de riquezas indescritíveis, “rios de esmeraldas” e “montanhas de ouro”, cuja existência era relatada há tempos por índios aos colonizadores,  marcando nitidamente o imaginário da época.

 

Um grande problema objetivo que surgiu deste êxodo de paulistas para as Minas Gerais (e que também seria um dos pontos de partida da Guerra) foi a grave crise de abastecimento e falta de alimentos em torno dos pequenos arraiais constituídos em paralelo à expansão das bandeiras.

 

Os caminhos até as jazidas de ouro davam-se através de vastas trilhas no meio de densas florestas, cercadas pela ameaça de ataques de índios, animais ferozes e doenças. Durante a maior parte do tempo, o acesso à região se dava exclusivamente através destes estreitos caminhos no meio do mato abertos pelos índios desde o tempos da pré história do Brasil, provavelmente milhares de anos antes da chegada dos Portugueses. O abastecimento tornava-se inviável pelo percurso, o que se agravada pela própria natureza econômica da mineração. A busca pelo ouro envolvia constantes deslocamentos territoriais, não havendo a sedentarização necessária para o estabelecimento de uma agricultura de subsistência, com criação de animais e constituição de cidades minimamente estruturadas.

 

Em pouco tempo, as fontes naturais de alimentação, incluindo animais para caça, foram se extinguindo. Sem o abastecimento dada a distância das minas em relação a São Paulo, muitos morriam de fome ou até mesmo envenenados ao comerem fungos e animais imundos, dada a situação desesperada em que se encontravam.

 

Este pioneirismo destes bandeirantes paulistas que com esforço e luta conseguiram vencer guerras contra índios, a doença e a fome, além marchar sobre um vasto território inóspito, seria abalado pela posterior vinda dos forasteiros, chamados de “emboabas”.

 

Apareceram, depois dos bandeirantes paulistas, comerciantes oriundos da Bahia interessados no comércio de gado e alimentos e também na exploração do Ouro. Quando era basicamente impossível transportar mantimentos de São Paulo às Minas, os Baianos desenvolveram uma rota comercial pelo norte, através do Rio São Francisco, atingindo as vilas e arraias sertanistas. Dada a escassez de alimentos, vendiam o gado a preços cem vezes maior do que transacionavam no litoral.

 

Outros forasteiros (ou emboabas) eram os portugueses de sangue, fidalgos enviados pela Coroa, para serem constituídos como autoridades públicas responsáveis pela administração política e judiciária das vilas e, especialmente, para fiscalizar e arrecadar, por meio de impostos exorbitantes, os diamantes encontrados pelos paulistas.

 

A Guerra dos Emboabas, um conflito que colocou especialmente em oposição sertanistas brasileiros e portugueses a mando da Coroa, pode ser entendida como um prelúdio da luta pela independência, que se concretizaria mais de cem anos depois do conflito.

 

De um lado, os paulistas, que eram como os bandeirantes eram chamados àquele tempo. Queixavam-se que os forasteiros não só lhes roubaram o ouro, mas a liberdade, impondo o direito de requestar suas casas, suas mulheres e filhas. E ao menor sinal de descontentamento, os portugueses castigavam os paulistas com prisões e com o tronco de tortura.

 

Ao lado dos sertanistas de São Paulo ficaram índios e quilombolas, ambos igualmente esmagados pelos emboabas, que também eram vistos como forasteiros que espoliaram-nos da atividade mineradora. Os sertanistas, bugres e os negros devotam ódio e sede  de vingança em face dos portugueses, apenas faltando um ou outro episódio detonador para a eclosão da Guerra Civil.

 

De outro lado da guerra estavam os emboabas, muitos portugueses de nascimento, que viam os paulistas como aventureiros e bandidos, acompanhados de índios e negros indomáveis, formando um exército furioso, ainda que insubordinado. Na guerra, apenas podiam contar com os seus escravos, a quem armavam para se defender dos paulistas. O que não parecia ser eficiente, por razões mais ou menos óbvias. Qual seria o sentido de o negro cativo pegar em armas para defender o emboaba (seu proprietário e algoz) ? E ainda lutar não só contra os paulistas, para atacar e matar seus companheiros de escravidão evadidos e transformados em quilombolas?

  

A GUERRA DESCRITA PELA LITERATURA: BERNARDO GUIMARÃES


Todo este cenário é o pano de fundo do pouco conhecimento romance “Maurício ou Os Paulistas Em São João Del Rei” (1877) do escritor mineiro Bernardo Guimarães.

 

O livro se situa dentre outras histórias de escritores ligados ao romantismo brasileiro, que descrevem grandes e heroicos eventos da História Nacional. É o que aparece por exemplo em algumas obras de José de Alencar e Franklin Távora: uma inequívoca literatura nacionalista, criada a luz e ao tempo dos próprios acontecimentos que ensejaram emancipação brasileira de 1822.   

 

No romance de Guimarães, dentro do estilo literário romântico, a Guerra dos Emboabas se contextualiza no quadro histórico supracitado, mas é desencadeada por conflitos de natureza sentimental.

 

A história se passa em São João Del Rei logo após a chegada do Capitão Mor Diogo Mendes, que cumpria a função de representante institucional da Coroa no território das Minas. Decidia os conflitos do lugar sem direito a agravo e apelação. Representava em pessoa a figura do Rei de Portugal.

 

A filha do juiz de fora se chamava Leonor, cujo casamento é ambicionado pelo Fidalgo Fernando (sobrinho de Diogo Mendes) e por Maurício, um paulista de coração nobre e espírito altivo. Paralelamente, o jovem filho do Capitão Mor deseja a bela paulista Helena, que é ama e é amada pelo artesão paulista Calixto.

 

É em torno dos triângulos amorosos que a Guerra tem o seu ponto de partida: Calixto agride o filho do Capitão Mor em defesa de Helena, acarretando um ato de violência contra toda população emboaba, cuja punição severa repercutiu sobre toda a população sertanista. Fernando, por seu lado, atiça os ânimos de guerra, buscando assim desmoralizar e até matar o paulista Maurício, tirando-o de perto da filha do juiz de fora.

 

Era o estopim de uma guerra cujas condições estavam dadas desde a chegada dos forasteiros no território das minas:

 

“O espírito de insurreição de há muito que fermentava, e como que se organizava por si mesmo no seio daquela população oprimida. Em todos os corações levedava um ódio antigo e rancoroso contra os emboabas.

 

Os paulistas, o indígena e o escravo negro a custo abafavam a sanha, que por isso mesmo se tornava mais violenta, esperando impacientes o dia da vingança. Os elementos estavam preparados para a mais horrível explosão, aguardando somente a mão audaz que lhe chegasse fogo.”.

 

Ao término do conflito, os paulistas foram expulsos da região para retomarem (com sucesso) a cata de ouro na região onde hoje se situa o Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás.

 

Em todo o caso, é ao menos visível aqui um fio de continuidade histórica entre a ação desbravadora dos mares desconhecidos pelos colonizadores portugueses, passando depois pelos bandeirantes a darem continuidade a epopeia através de expedições que percorreram desde o Rio Grande do Sul até o Peru, desrespeitando, inclusive, os limites territoriais institucionalizados pelo Tratado de Tordesilhas. A altivez e insubmissão dos paulistas levaram-no à Guerra dos Emboabas e, após sua derrota, a continuar a ocupação do território através de novas expedições e bandeiras, além de criar um precedente nitidamente nativista que ensejaria 120 anos depois a constituição do Brasil Independente.

domingo, 9 de julho de 2023

A LITERATURA DE JOSÉ LINS DO REGO

 AUTOR E SEU CONTEXTO




 

“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária.

Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

 

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

 

Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

 

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

 

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).   

 

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

 

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.

 

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

 

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

 

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

 

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.   

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

BANGUÊ

 

“O trem furava pelos canaviais de outros engenhos. Havia os engenhos vivos e os engenhos mortos. Lá estavam o Itapuã, de bueiro grande afrontando todas as usinas do mundo. Massangana, de senhor de engenho rico, Maraú, vivendo do algodão. O Bugari tinha cana até na bagaceira. Aquele se fora na voragem. O melão-de-são-caetano subia e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Para que moradores com roçados, criando gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os pequenos que defendiam o algodão”  

 

“Banguê” (1934) é a sequência da história de Carlos, quando retorna ao Engenho de seu avô José Paulino, após passar cinco anos estudando Direito no Recife.

 

Recém-formado, o protagonista retorna ao Santa Roa sem qualquer plano ou ideia do que fazer de sua vida.

 

Durante o curso de Direito no Recife, se relaciona com um mundo moderno quando comparado ao velho engenho de seu avô. Na faculdade, passa aos seus colegas uma imagem idealizada de sua origem familiar: seriam terras de fidalgos, com casas de potentados e famílias que se gabam dos seus brasões.

 

O retorno ao Santa Rosa desmente por completo aquela idealização. A rusticidade, a pobreza dos trabalhadores do eito, a corrupção dos agentes do fisco, a violência dos capatazes e feitores, além de toda uma cultura e estrutura social vinculada ao regime da escravidão (recentemente extinta) se confrontam com aquela noção idílica do mundo rural. Carlos idealiza o mundo do Pilar não só perante os outros mas através do engano a si mesmo.

 

O autoengano marca os primeiros momentos do livro, quando uma forte melancolia toma conta do bacharel de retorno ao Santa Rosa:

 

“Faltava qualquer coisa na minha vida. Um entusiasmo por qualquer coisa. Olhava sem querer ver. Tinha a impressão que os meus sentidos se atrofiavam. Os moleques que haviam sido os meus companheiros, Manual Severino, João de Joana, andavam iguais aos outros. Passavam por mim como estranhos.”.

 

O Santa Rosa ainda suspira pela força e potência do velho José Paulino que aos 86 anos ainda preside pessoalmente os trabalhos dos seus nove engenhos situados na fazenda. Contudo, a velhice e a proximidade da morte do latifundiário vão representando o fim daquela civilização do açúcar.

 

Se o velho é a principal peça da engrenagem produtiva do engenho, a sua velhice remete a uma roda velha do moinho, prestes a inutilizar a máquina e paralisar a produção.

 

Esperava-se que Carlos, retornando dos estudos, assumisse o controle e direção dos trabalhos da fazenda. José Paulino é a expressão do vigor na ação, da altivez, da serenidade, da potência, e da plena confiança no que faz. É o exato oposto de Carlos, um homem emotivo, com medo paranoico da morte, hesitante, que se acovarda até diante dos cabras e trabalhadores do eito, prenunciando o início do fim do Santa Rosa.

 

Com a morte do avô, o protagonista é de fato alçado à condição de novo Senhor de Engenho. Ainda que se dedique inteiramente à gestão da produção, não consegue prosperar, talvez por lhe faltar a energia e força típica daqueles que viveram a sua vida inteira na base do trabalho pesado.

 

Há evidente incompatibilidade entre a conduta do bacharel formado em Direito e a prática enérgica dos senhores de mando do campo. E quando há similitudes, elas se dão no que existe de pior: na exploração brutal dos trabalhadores mediante cobrança de foros extorsivos pelo uso da terra; ou nas práticas sexuais com as negras trabalhadores do eito, inclusive aquelas casadas com os cabras, sendo criadas uma geração de pequenos deserdados que iriam viver na fazenda sem qualquer distinção das outras crianças sujas, magras e amarelas de doenças.

 

Não que a chegada dos usineiros criasse melhores condições aos antigos trabalhadores dos engenhos.  As Usinas funcionavam 24 horas por dia, trabalhava-se de dia e de noite como nos tempos da escravidão.

 

A chegada da usina, na verdade, é representativa de um estágio de superação capitalista do escravagismo de origem colonial. O engenho do Santa Rosa ao tempo da nossa história é uma figura de transição entre uma realidade semi-feudal e o novo modo de produção capitalista.

 

No tempo de José Paulino, trabalhava—se duro, havia castigos físicos, mas não se passava fome e os camponeses tinham a liberdade de usar a terra para produção de auto sustento. Com a chegada da usina, tem-se a contraditória impressão de uma degradação social que caminha passo a passo com o brutal incremento dos meios tecnológicos de produção do açúcar. Os trabalhadores perdem o direito à terra e viram, poderíamos dizer, proletários.  

 

Um retrato de um mundo em extinção, tratado de forma lírica, telúrica e memorialista, é o que se pode resumir do quadro pintado por Lins do Rego no seu “ciclo da cana de açúcar”.