AUTOR E SEU CONTEXTO
“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição
do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do
Rego a sua mais alta expressão literária.
Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa
linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência
com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos
processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social
da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”.
Ed. Cultrix).
José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa
cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.
Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).
Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no
Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano
Suassuna e Clarice Lispector.
Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife,
onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro
daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram
parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.
Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire,
de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes
locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do
Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem
descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).
Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao
mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o
seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do
escritor.
Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da
Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe
dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à
casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são
retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.
A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela
adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê”
(1934).
Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José
Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam
o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho,
cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo
instaurado pelas Usinas.
Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza
por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma
produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar
herdadas do período colonial.
Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro
aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais
ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A
concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É
justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já pertencia irremediavelmente ao passado que é
objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.
Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e
a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos
primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do
personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de
predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa
já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do
Paraíba e no interior de São Paulo.
A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias
de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego.
Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho
de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o
primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo
retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente
marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).
BANGUÊ
“O trem furava pelos canaviais de outros engenhos. Havia os engenhos
vivos e os engenhos mortos. Lá estavam o Itapuã, de bueiro grande afrontando
todas as usinas do mundo. Massangana, de senhor de engenho rico, Maraú, vivendo
do algodão. O Bugari tinha cana até na bagaceira. Aquele se fora na voragem. O
melão-de-são-caetano subia e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não
se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Para que moradores
com roçados, criando gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava
para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os
pequenos que defendiam o algodão”
“Banguê” (1934) é a sequência da história de Carlos, quando retorna ao Engenho
de seu avô José Paulino, após passar cinco anos estudando Direito no Recife.
Recém-formado, o protagonista retorna ao Santa Roa sem qualquer plano ou
ideia do que fazer de sua vida.
Durante o curso de Direito no Recife, se relaciona com um mundo moderno quando
comparado ao velho engenho de seu avô. Na faculdade, passa aos seus colegas uma
imagem idealizada de sua origem familiar: seriam terras de fidalgos, com casas
de potentados e famílias que se gabam dos seus brasões.
O retorno ao Santa Rosa desmente por completo aquela idealização. A rusticidade,
a pobreza dos trabalhadores do eito, a corrupção dos agentes do fisco, a
violência dos capatazes e feitores, além de toda uma cultura e estrutura social
vinculada ao regime da escravidão (recentemente extinta) se confrontam com aquela
noção idílica do mundo rural. Carlos idealiza o mundo do Pilar não só perante
os outros mas através do engano a si mesmo.
O autoengano marca os primeiros momentos do livro, quando uma forte
melancolia toma conta do bacharel de retorno ao Santa Rosa:
“Faltava qualquer coisa na minha vida. Um entusiasmo por qualquer coisa.
Olhava sem querer ver. Tinha a impressão que os meus sentidos se atrofiavam. Os
moleques que haviam sido os meus companheiros, Manual Severino, João de Joana,
andavam iguais aos outros. Passavam por mim como estranhos.”.
O Santa Rosa ainda suspira pela força e potência do velho José Paulino
que aos 86 anos ainda preside pessoalmente os trabalhos dos seus nove engenhos
situados na fazenda. Contudo, a velhice e a proximidade da morte do latifundiário
vão representando o fim daquela civilização do açúcar.
Se o velho é a principal peça da engrenagem produtiva do engenho, a sua
velhice remete a uma roda velha do moinho, prestes a inutilizar a máquina e paralisar
a produção.
Esperava-se que Carlos, retornando dos estudos, assumisse o controle e
direção dos trabalhos da fazenda. José Paulino é a expressão do vigor na ação,
da altivez, da serenidade, da potência, e da plena confiança no que faz. É o
exato oposto de Carlos, um homem emotivo, com medo paranoico da morte, hesitante,
que se acovarda até diante dos cabras e trabalhadores do eito, prenunciando o
início do fim do Santa Rosa.
Com a morte do avô, o protagonista é de fato alçado à condição de novo
Senhor de Engenho. Ainda que se dedique inteiramente à gestão da produção, não
consegue prosperar, talvez por lhe faltar a energia e força típica daqueles que
viveram a sua vida inteira na base do trabalho pesado.
Há evidente incompatibilidade entre a conduta do bacharel formado em
Direito e a prática enérgica dos senhores de mando do campo. E quando há
similitudes, elas se dão no que existe de pior: na exploração brutal dos
trabalhadores mediante cobrança de foros extorsivos pelo uso da terra; ou nas
práticas sexuais com as negras trabalhadores do eito, inclusive aquelas casadas
com os cabras, sendo criadas uma geração de pequenos deserdados que iriam viver
na fazenda sem qualquer distinção das outras crianças sujas, magras e amarelas
de doenças.
Não que a chegada dos usineiros criasse melhores condições aos antigos
trabalhadores dos engenhos. As Usinas funcionavam
24 horas por dia, trabalhava-se de dia e de noite como nos tempos da
escravidão.
A chegada da usina, na verdade, é representativa de um estágio de
superação capitalista do escravagismo de origem colonial. O engenho do Santa
Rosa ao tempo da nossa história é uma figura de transição entre uma realidade
semi-feudal e o novo modo de produção capitalista.
No tempo de José Paulino, trabalhava—se duro, havia castigos físicos, mas
não se passava fome e os camponeses tinham a liberdade de usar a terra para
produção de auto sustento. Com a chegada da usina, tem-se a contraditória
impressão de uma degradação social que caminha passo a passo com o brutal
incremento dos meios tecnológicos de produção do açúcar. Os trabalhadores
perdem o direito à terra e viram, poderíamos dizer, proletários.
Um retrato de um mundo em extinção, tratado de forma lírica, telúrica e
memorialista, é o que se pode resumir do quadro pintado por Lins do Rego no seu
“ciclo da cana de açúcar”.
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