O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR
Resenha Livro – “O Guarani” – José de Alencar –
Ed. Ática
Quando José de Alencar publicou em folhetins o
seu romance “O Guarani” no ano de 1857, ainda era um jovem advogado e escritor,
apenas iniciando sua carreira literária.
Seus dois primeiros livros foram “Cinco
Minutos” (1856) e “Viuvinha” (1857), chamados pelo próprio escritor de forma pejorativa
de “romancinhos”: se situam ao lado de outros livros como “Lucíola”, “Diva” e “Senhora”,
num conjunto de obras que podem ser classificados como os “romances urbanos” do
escritor cearense.
O início da literatura romântica indigenista,
que promovia uma inédita conexão entre literatura e nacionalismo em território
brasileiro, dar-se-ia com a publicação de “O Guarani”, que seria seguido depois
por “Iracema” e “Ubirajara”. Trata-se de obras que pioneiramente apontam a centralidade
da figura do indígena como elemento balizador da constituição do povo
brasileiro.
Transcorreram pouco mais de 30 anos entre a
independência política do Brasil em relação à Portugal e o início daquilo que
ficou conhecido como a primeira fase do nosso romantismo. A recente proclamação
da independência de 1822 ensejava uma resposta à pergunta: afinal, quem somos
nós brasileiros? A forte presença do índio naquele movimento literário vinha como
forma de resposta a essa pergunta.
SOBRE O AUTOR
Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1
de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O
autor passou durante a infância pelo período tumultuado das Regências e
participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II
Império.
Nosso escritor foi filho de um padre, deputado
provincial do Ceará pelo partido liberal, governador e posteriormente Senador daquele
mesmo estado, cujo nome era o mesmo do seu filho: José Martiniano Alencar.
Ambos transitaram pela política: no caso de José de Alencar filho, tratou-se de
uma carreira que lhe trouxe menos recompensa do que a sua atividade literária.
José de Alencar (filho) foi Ministro da
Justiça durante o II Reinado, a despeito de manter uma postura crítica em
relação a D. Pedro II. Em certo momento foi preterido pelo imperador para uma
vaga ao Senado, por conta de pretéritos embates entre ambos, o que causou ao romancista uma intensa desilusão.
Houve inclusive polêmica literária travada na
imprensa carioca entre o autor d’o Guarani e o Imperador sobre o significado da
obra de Gonçalves de Magalhães. D. Pedro II defendia o autor de “A Confederação
dos tamoios”, enquanto Alencar critica duramente a qualidade da obra de Magalhães:
“as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe,
chinês ou europeu (...) o senhor Magalhães não só mão conseguiu pintar a nossa
terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe ofereciam os costumes
e tradições indígenas”.
Curiosamente, José de Alencar posteriormente
seria alvo de críticas semelhantes. Ficou conhecida na história a intensa
campanha promovida pelo jornalista e romancista João Franklin da Silveira
Távora contra a literatura de seu colega cearense, a quem criticava por fazer
uma literatura social “de gabinete” sem o conhecimento da realidade social e do
sertão, descrita não só nas obras indigenistas, mas naqueles seus “romances
sertanejos” como “O Gaúcho” e “O Sertanejo”.
É certo que o registro de José de Alencar do Sertão
e da situação do índio brasileiro é muito mais baseado em sua imaginação como
escritor do que como historiador. Neste sentido, Távora estava correto ao dizer
que os seus personagens foram formulados “dentro de um gabinete” e não mediante
o contato direto com aquelas realidades.
Por outro lado, deve-se salientar que o
trabalho literário de Alencar decorreu de muito estudo disciplinado: o seu “O Guarani”
aborda aspectos da flora, fauna e tradições culturais do indígena brasileiro do
início do século XVI baseando-se na leitura de historiadores e fontes
históricas primárias. Suas fontes para descrição do cenário da história
envolvem o botânico e pesquisador francês Auguste de Saint-Hilaire (1779/1853),
Aires de Casal (1754/1821) e principalmente o livro “Tratado Descritivo do
Brasil” (1587) de Gabriel Soares de Souza (1540/1591).
O GUARANI
A história se passa no ano de 1604 no interior
da capitania do Rio de Janeiro, então governada por Mem de Sá, cuja maior
realização fora a expulsão dos franceses do território da colônia portuguesa.
O fidalgo português D. Antônio de Mariz tomou
parte nos combates pela defesa do território português. Contudo, no contexto da
união ibérica em que Portugal ficou oficialmente sob o comando da coroa
espanhola, Mariz, mantendo uma linha de fidelidade ao rei português, resolve-se
asilar-se às margens do rio paraíba, no interior da província. É neste pequeno
vilarejo que se passa a história.
“A derrota de Acácer-Quibir, e o domínio
espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.
Português de antiga têmpera, fidalgo leal,
entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento de nobreza e que só
a ele devia preito e menagem. Quando pois em 1592 foi aclamado no Brasil D.
Felipe II como sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a
espada e retirou-se do serviço”
D.
Antônio preferia viver retirado com a sua família no mais longínquo sertão
brasileiro, onde comandava um grupo de pessoas e ao redor de quem vivia sua
família numa fazenda fortificada. Às margens do rio Paquequer, Mariz montou
casa para sua mulher, sua filha Cecília, uma filha bastarda chamada Isabel, o
escudeiro Aires Gomes e um fidalgo português chamado Álvaro de Sá.
Viviam como que numa república fortificada
ante o risco constante de ataques de índios ou bandoleiros. Por essa razão, o
fidalgo também mantinha “como todos os capitães de descobertas daqueles
tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações
e correrias pelo interior: eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo
tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem
haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, solados e selvagens ao
mesmo tempo.”.
A família também era acompanhada por Peri, o
mais valente guerreiro Goitacá, que salvara a vida da filha de D. Antônio e por
isso é acolhido pela família do fidalgo.
Peri é uma palavra guarani que significa junco
silvestre. O índio mantém uma dedicação semelhante ao fervor
religioso em relação à Cecília. Na verdade, a bela filha do fidalgo português é
amada de formas diferentes por três personagens da história.
O índio Peri mantém uma devoção relacionada a
uma percepção de que Cecília era uma espécie de ente divino, a quem lhe
incumbia responder a todos os seus desejos sem entrar um só pensamento de egoísmo.
Amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para
dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar
que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
Já Álvaro ama Cecília da forma como amavam os
românticos descritos nas histórias de cavalaria medieval. Em se tratando de um
cavalheiro português, o seu sentimento era uma feição nobre e pura, ensejando
momentos de timidez ou arroubos em que o português buscava timidamente confessar
o seu amor à filha de D. Antônio.
Enquanto Peri adorava e Álvaro amava, o
italiano Loredano a desejava: em se tratando de um romance nacionalista, o
estrangeiro aparece na história como o seu principal vilão.
Loredano fora um padre beneditino que viera em
missão religiosa ao Brasil: oportunamente abandonou e conjurou a religião para
dar vazão a sua luxúria. Sonhava encontrar o ouro no Brasil, enriquecer e
oportunamente raptar a filha do português.
Dentro desta trama, ocorre um incidente que
dará curso aos principais eventos da história.
Um filho de D. Antônio acerta um tiro por
engano numa índia aimoré, tribo conhecida particularmente por seu estágio bárbaro,
menos civilizado que os demais índios. O espírito de vingança é um dos traços
psicológicos determinantes daqueles povos indígenas, o que fora agravado pelo
fato de a índia morta ter sido a mais bela e desejada mulher daquela tribo.
A vingança dos aimorés se dá através de uma
guerra sem tréguas e com fins trágicos. Da guerra apenas sobrevivem Peri e
Cecília. Ao final, a menina reconhece e vê o índio como um irmão, ou seja, alguém
igual em termos civilizacionais, nitidamente se considerando que o índio já
fora batizado por D. Antônio antes da batalha final contra os aimorés.
Peri é o herói da epopeia “O Guarani”. A sua
dedicação, coragem e abnegação são certamente formas de valorização não só da figura
do índio, mas de alguém que está se constituindo como brasileiro. Há no índio (ou
brasileiro) uma delicadeza de sentimentos dentro de uma alma inculta. Uma inteligência
sem cultura mas brilhante como o sol. A alma é virgem de civilização, mas naturalmente
brilhante, forte, corajosa, ou seja, representativa
da aspiração de um Brasil igualmente altivo e independente.
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