“O interior do Brasil não foi sempre
cortado por estradas e semeado de habitações hospitaleiras. Tempo houve em que
não havia nenhuma cabana no mesmo, nenhum vestígio de cultura, só havendo as
feras que lhe disputavam o domínio. Os paulistas palmilharam-no em todos os
sentidos. Esses audaciosos aventureiros...penetraram por diversas vezes até o
Paraguai; descobriram a província do Piauí, as minas de Sabará e de Poracatu;
entraram nas vastas solidões de Cuiabá e Goiás, percorreram a província do Rio
Grande do Sul; chegaram ao norte do Brasil até o Maranhão e o Rio Amazonas; e,
tendo transposto a cordilheira do Peru, atacaram os espanhóis nos centros de
suas possessões. Quando se sabe, por experiência própria, quantas fadigas,
privações, perigos que ainda hoje aguardam o viandante que se aventura nestas longínquas
regiões e se toma conhecimento do itinerário das intermináveis incursões dos
antigos paulistas, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que
esses homens pertenciam a uma raça de gigantes” (Augusto Saint-Hilaire – viajante francês que
percorreu o Brasil entre 1816/1822).
Em 24/07/2021 foi noticiado pela imprensa que
um grupo autointitulado “Revolução Periférica” colocara fogo na estátua de
Borba Gato em São Paulo, como forma de protesto, ainda que não se saiba
exatamente contra o quê.
Esse ato escatológico ao menos teve o saldo
positivo de revelar um pouco o que passa
na cabeça dos seus protagonistas: a ideia de que “performances revolucionárias”
podem mudar o mundo, algo parecido com o almejado “efeito estético” de vidros
de bancos quebrados em passeatas.
Em todo o caso, o episódio não seria muito
grave se se limitasse a uma presepada de meia dúzia de universitários. Antes,
tratava-se de um ataque direto e coordenado contra a Cultura Nacional, a mesma
que buscou invisibilizar Monteiro Lobato, denunciar Pedro Álvares Cabral e seus
pares como agentes do genocídio e do estupro, e, mais recentemente, avacalhar a
ópera "O Guarani" do campineiro Carlos Gomes.
Afinal, quem foram estes sertanistas
paulistas? Qual a sua importância para o Brasil? Qual a razão dos ataques ao
bandeirantismo promovidos por grupos políticos antinacionais? Por que defender
a sua memória é também uma defesa do Brasil?
OS MITOS EM TORNO DO BANDEIRANTISMO
O fenômeno do bandeirantismo está situado na
História do Brasil a partir dos últimos anos do século XVII até os fins do
Século XVIII.
Não por acaso, as entradas podem ser entendidas
como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que
lançou os Portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta
da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do
mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da
colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como
Brasil.
Um primeiro mito a se desfazer sobre as
bandeiras diz respeito à falsa descrição dos seus membros: seriam um grupo de “colonizadores
brancos”, “europeus de sangue”, que teriam se mobilizado conscientemente para a
conquista de territórios e escravos, através de um deliberado plano de “genocídio
indígena”. Esta visão se choca frontalmente com a rusticidade dos bandeirantes
e a majoritária participação de índios e mamelucos nas entradas.
O bandeirante paulista é um simples morador de
uma região secundária da Colônia, dada a sua distância com os centros
consumidores de produtos coloniais situados na Europa – diferentemente da
região nordeste. Levavam “uma vida quase indigente, lutando contra as
injunções mais imediatas e prementes de uma existência material extremamente
difícil. Pobre, analfabeto, sem perspectivas, tinha nas suas investidas ao Sertão
as únicas chances de modificar sua sorte material, que nesta medida passavam a
ser, para usar a expressão de Sérgio Milliet “soluções de inexorável urgência”.
(DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo:
verso e reverso”. ).
As
bandeiras ou entradas podem ser conceituadas como expedições paramilitares que se
movem em direção ao sertão para captura de índios e de pedras preciosas. De acordo
com essa definição, foi um fenômeno disseminado por todo o território onde hoje
de situa o Brasil. Contudo, algumas particularidades de São Paulo fizeram com
que se desenvolvessem com maior força naquela vila interiorana da Capitania de
São Vicente.
No ano de 1600 estima-se que São Paulo possuía
1500 habitantes distribuídos em 150 residências. A região mais dinâmica da colônia,
então, se situava em Pernambuco e Bahia, por conta da proximidade com a Europa e
as boas condições para o desenvolvimento da exploração mercantil da terra. Já
em São Paulo não se realizaram os desígnios gerais da colonização portuguesa
através da grande propriedade monocultora, com a utilização do máximo número de
escravos e economia vinculada ao mercado externo. Tratava-se antes de uma mera
feitoria, onde predominava uma pobre economia de subsistência. Havia poucas ruas
e as casas eram meras choupanas cobertas por palha. As bandeiras entram assim como uma “solução de
emergência” para a pobreza da região.
Numa primeira fase, as expedições tinham como
objeto o desmantelamento das missões jesuíticas para captura de índios e para
comércio escravocrata. Num segundo momento, com o declínio do trabalho escravo
indígena na colônia, esses sertanistas se voltam para a busca do ouro, da prata e das esmeraldas.
Eram compostas majoritariamente por índios e
mamelucos. A ampla participação de indígenas nas entradas se dava pelo fato de
conhecerem melhor os territórios e o curso dos rios. Andavam descalços, falavam
a língua geral (formada a partir da evolução do antigo tupi), portavam em suas expedições
arcos, flechas, pouca arma de fogo. Em seus carregamentos, levavam pólvora,
machados, balas, cordas para amarrar os índios aprisionados, e por vezes,
sementes, sal e uma pequena quantidade de alimentos.
Em geral, partiam de madrugada e pousavam no entardecer;
durante o dia dedicavam-se à caça, à pesca e à coleta de frutos, também se
lançando mão das roças dos indígenas que aprisionavam.
Um segundo mito construído em torno da
propaganda contra os bandeirantes diz respeito ao fato de o movimento se
limitar à captura e escravização do índio – daí são todos chamados de “escravagistas”.
Ora, como já mencionado, os 100 anos de maior
atividade bandeirante passou por diferentes fases, envolvendo não só o comércio
de escravos, mas o desmantelamento das missões jesuíticas espanholas, a
expansão das fronteiras do domínio português, a busco das pedras preciosas e
até o engajamento na luta pela expulsão dos holandeses.
Basta aqui dizer que Borba Gato (genro de
Fernão Dias, conhecido como “Governador das Esmeraldas”) foi escolhido como “alvo”
de militantes, desconsiderando se tratar de personagem ligado à 2ª fase do bandeirantismo,
o da caça das esmeraldas. Isto para não dizer que esse personagem conviveu
pacificamente durante 18 anos com índios da tribo dos Botocudos, sendo tratado por
eles como cacique, após ter assassinado um emissário da coroa e buscado no
sertão um porto seguro.
AS DUAS FASES DO BANDEIRANTISMO
“Estava a findar o primeiro ciclo
bandeirante, o da caça ao índio, cuja personalidade máxima fora o formidável Antônio
Raposo Tavares e em que se destacam os sertanistas do relevo de dois Affonso
Sardinha, Amador Bueno, Manuel e Sebastião Preto, André Fernandes, Estevam
Bayão, João Amaro, Maciel Parente, etc.
Alguns anos mais tarde, extinguiram-se
esta fase, por assim dizer, com as últimas grandes jornadas de Francisco
Pedroso Xavier, em 1675; Mathias Cardoso de 1689 a 1694, e Domingos Jorge
Velho.
De apresadores de índios, iam passar
os paulistas a revolvedores ásperos do solo, em busca de minerações preciosas.
Encetava-se o segundo grande ciclo bandeirante: o do ouro, perfeitamente
caracterizado em Fernão Dias Paes.”. (TAUNAY, Affonso de E. “Índios, Ouros e Pedras”).
É possível dividir o moimento bandeirante em
duas grandes fases. Ambas as etapas colaboraram à sua maneira para aquilo que
de melhor nos legou as entradas: a expansão do território e a criação de nossa
atual fisionomia geográfica, cultural e linguística.
A primeira fase diz respeito à “solução de
urgência” dos paulistas para a sua pobreza material, através da captura de
índios para o comércio de escravos dentro da colônia.
Logo em seus primeiros momentos, as expedições
se voltam contra as missões jesuíticas, e isso por um motivo muito simples: era
muito mais fácil capturar os índios já agrupados geograficamente pelos inacianos
e já iniciados por eles ao trabalho e à civilização cristã.
Ainda que boa parte deste primeiro período
tenha se dado durante a União Ibérica (1580/1640), o fato de os paulistas terem
expandido os seus domínios através do aniquilamento das missões criou as
condições para o estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste,
dentro do princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de
fato a ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).
O maior representante deste primeiro período é
certamente Antônio Raposo Tavares, responsável pela integração de centenas de
milhares de quilômetros ao território nacional.
Em 1629, uma expedição de Tavares expulsa os espanhóis
do Paraná. Em 1936, há a conquista do Rio Grande do Sul após a conhecida
destruição da missão de Guaira. Dois anos depois, os paulistas expelem os
ignacianos para além da margem ocidental do Rio Uruguai.
No ano de 1639, Antônio Raposo Tavares é
convocado pela Coroa a se engajar na luta pela expulsão dos holandeses do
Nordeste do Brasil, para onde se dirige, prestando colaboração a nossa primeira
experiencia de luta por independência que forjou os elementos constitutivos da
nacionalidade brasileira: brancos, negros e índios unificados em luta contra o
domínio holandês.
Após a vitória brasileira na guerra, Tavares
se dirige ao norte do país, alcançando a foz do Rio Amazonas em 1651. A
inacreditável extensão territorial percorrida pelas bandeiras podem ser facilmente
percebidas no mapa abaixo:
Uma segunda fase do bandeirantismo pode se
situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas
carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais
preciosos.
Esta diretriz se explica pela situação de
decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora
particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já
não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de
seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez
mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político,
exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive
remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando
conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos
do empreendimento colonial.
Outro ponto que explica a mudança de eixo das
bandeiras foi a própria decadência da escravidão indígena (abolida formalmente
em 1758) com a sua substituição pelo mercado de cativos africanos.
O mais representativo personagem desta segunda
fase é Fernão Dias Paes (1608/1681). Na condição de governador de São Paulo,
foi um agente conciliador dos colonos e dos jesuítas, a quem restituiu o seu
colégio alguns anos após a expulsão dos inacianos da vila.
Em 1673 quando já tinha mais de 60 anos
organizou uma expedição que durou 7 anos em busca de metais preciosos. A
despeito dos apelos da Coroa, esta entrada foi inteiramente custeada pelo
bandeirante: em determinado momento, enviou cartas a sua mulher e filhas para
que se desfizessem de todos os seus bens para dar prosseguimento à cata de
tesouros no sertão.
Fernão Dias morreu no curso desta expedição.
Não encontrara nenhum metal precioso. Consta apenas que acreditou ter
encontrado esmeraldas, quando na verdade apenas achou turmalinas. Antes de
falecer, Dias pediu que o seu corpo fosse enterrado no Mosteiro de São Bento, o
que foi cumprido com muito custo por seus correligionários. Apenas no ano de
1910 o seu corpo foi descoberto em São Paulo, ou seja, mais de 200 anos após a morte
do “Governador das Esmeraldas.”.
BALANÇOS
A propaganda negativa dos bandeirantes, como
vimos, serve-se de alguns mitos que buscam induzir nas pessoas a noção geral de
que o empreendimento colonial português no Brasil teria sido um ato deliberado de
genocídio e destruição: a consequência lógica desSa ideia é a de que o país não
deveria sequer ter existido, já quwe o Brasil efetivamente nasceu desde o
momento da chegada dos portugueses no novo Mundo.
Curiosamente, os mitos em torno dos
bandeirantes partem de uma suposta “crítica” de uma “História Oficial” que teve
como base Southey, Saint-Hilare, Cassiano Ricardo e A. E. Taunay. Aqui, como em
outros capítulos de nossa história, a leitura dos clássicos é certamente mais
próxima da verdade do que as “narrativas” que inspiraram as ações contra os
monumentos nacionais.
BIBLIOGRAFIA
DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: Verso e
Reverso”. Ed. Brasiliense
TAUNAY, Afonso de E. “Índios! Ouro! Pedras”.
Ed. Melhoramentos.
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