A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
“Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligados à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida” (RONAI, Paulo.).
A leitura das estórias
do escritor mineiro João Guimarães Rosa põe-nos em contato com o universo de um
Brasil profundo, retratando cenas de uma vida pastoril, caracterizada pelo
próprio escritor como “o Sertão”. Desses contos e novelas, o leitor tem contato
com a trajetória de capangas, jagunços, vaqueiros, fazendeiros, sertanejos, crianças,
loucos, doentes e prostitutas, todos vivendo a séculos de distância da nossa
civilização plenamente urbanizada. Cenas da vida pastoril de um país que ainda
não completara a sua transição demográfica do campo para a cidade.
Essas estórias
são acompanhadas de uma série de inversões linguísticas mediante neologismos,
alteração intencional de regras gramaticais (ortografia e sintaxe),
experimentações que potencializam a expressividade das palavras.
A criação de uma
nova linguagem, plenamente adaptada ao universo do sertão mineiro, só poderia ter sido produzida por um escritor
que tinha um incomum conhecimento de línguas e das letras.
João Guimarães
Rosa iniciou os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando
teve seus primeiros contatos com o francês. Nas palavras do próprio escritor:
“Eu falo:
português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de
russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado);
entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do
sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo,
do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas
tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda
muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém,
estudando-se por divertimento, gosto e distração.”.
O autor de
“Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação para o
estudo.
Com apenas 16
anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais, no ano de
1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu como
médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano
depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de
Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, tornando-se
diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.
Sua literatura
envolve um aprofundamento das ideias daquela geração de escritores modernistas
do nordeste brasileiro, que bem retrataram a vida de trabalhadores do campo,
retirantes, fazendeiros, humildes comerciantes e pequenos funcionários
públicos: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Amando
Fontes, etc.
O que há em comum
entre estes escritores e João Guimarães Rosa é a rara capacidade de alçar o seu
regionalismo a questões de natureza universal.
Nas palavras do escritor mineiro, “O Sertão é do tamanho do mundo”.
As estórias se
passam no serão mineiro conquanto envolvem a exploração de questões filosóficas
e existenciais, relativas a mais ampla reflexão sobre a condição humana.
Este universo
rural foi captado pelo escritor durante a sua experiência de infância em
Codisburgo, no interior de MG. Também foi captada após os dois anos de trabalho
como médico em Itaguara/MG. Por fim, os cenários foram retratados com base em viagens
que JGS realizou, inclusive acompanhando comitivas de vaqueiros que conduziam o
gado pelo interior mineiro. As imagens dessas viagens foram especialmente
retratadas no conto “Burrinho Pedrês”, a primeira estória que abre o livro “Sagarana”
(1946).
Da análise ampla
dos contos e novelas do nosso escritor, é possível constatar alguns pontos em
comum: o realismo mágico, o regionalismo alçado ao universal e a liberdade estilística
e formal.
No conto “Campo
Geral” estes três pontos são retratados através do olhar lúdico de uma criança
de 8 anos chamada Miguilim. Trata-se de alguém que passou a sua vida inteira
“no Mutum, no meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra
preta, pé de serra” (...) “um lugar bonito, entre morro e morro, com muita
pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...”. Alguém
que sempre viveu no campo e a ele está plenamente aclimatizado.
A mãe de Miguilim
era linda e amorosa com os seus filhos, enquanto o pai era extremamente
rigoroso, demonstrando uma especial má vontade para com o filho protagonista da
história. O melhor amigo de Miguilim é seu irmão Dito, cuja personalidade é
radicalmente diferente a sua, porém complementar:
“O Dito, menor,
muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia
de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava dúvida, achava que
podia dar errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito,
para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele
acreditar mesmo que era verdade.”.
Enquanto Dito era
mais assertivo e decidido, seu irmão parece ser mais emotivo, tal qual a mãe. A
sua maneira, pela linguagem da criança, Dito diz ao seu irmão que sua
personalidade era mais marcada pela ambiguidade: “você nasceu em dia de sexta,
com o pé no Sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora”
ou “você tem juízo por outros lados...”.
O amigo favorito
de Miguilim tem uma morte trágica, após algum tempo de convalescência diante de
uma doença desconhecida, que teve como origem o corte profundo do pé após Dito pisar
num caco de vidro.
Depois dessa
tragédia, verifica-se uma clara alteração na psicologia de Miguilim que se
revela no se fazer homem. Miguilim passa a trabalhar sob as ordens do pai e não
tem mais medo que o marcava pouco tempo atrás. Este amadurecimento oriundo de
pequenas e grandes tragédias foi muito bem captado pelo escritor José Mauro de
Vasconcello nos seus livros “Meu Pé de Laranja Lima” e “Vamos Aquecer o Sol”. A
visão mágica da realidade visto sob o olhar da criança é abruptamente alterada
ante a experiencia trágica da morte: do portuga, amigo de Zezé e de Dito, irmão
de Miguilim.
João Guimarães
Rosa morreu precocemente aos 59 anos no ápice de sua carreira literária e
diplomática.
Pouco antes de
sua morte, foi indicado ao prêmio Nobel de literatura (1967). Podemos cogitar
que o prêmio Nobel seria inadequado. Única e exclusivamente pelo fato de as
estórias de JGS serem intraduzíveis, impossíveis de serem captadas por meio de
traduções. Ou seja, apenas existe real possibilidade de se captar a riqueza
linguística da escrita de Rosa através da leitura dos livros em língua
portuguesa. Por outro lado, a reflexão sobre temas como a morte, a descoberta
de Deus, a noção de finitude da vida e outros temas existenciais certamente tem
o condão de fazer com que as novelas e contos do escritor mineiro sejam atemporais,
dizendo respeito ao homem independentemente de sua nacionalidade.
Bibliografia:
“Campo Geral” –
João Guimarães Rosa – Ed. Global.
“A Hora e Vez de
Augusto Matraga” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.
“O Burrinho
Pedrês” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.
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