O Tempo e o Vento - Érico Veríssimo
Resenha Livro – “O Tempo e o Vento. Tomo I. O Continente” – Érico Veríssimo – Ed. Globo.
Não seria exagero dizer que o escritor gaúcho Érico Veríssimo foi o mais
fiel retratista do povo gaúcho, da sua história e dos seus costumes.
Não seria correto, porém, dizer que toda a sua obra, elaborada entre os
anos 1930/1970, apenas tivesse tratado e se situado dentro daquilo que ele
próprio dizia ser o “Continente”, a antiga Província de São Pedro das Missões,
hoje Estado do Rio Grande do Sul.
Os seus primeiros livros, situados naquilo que ficou conhecido como “O Ciclo
de Porto Alegre”, não são obras
propriamente regionalistas. Ainda que todas as histórias deste conjunto de narrativas
se passem na capital gaúcha, a cidade, que tinha então cerca de 300.000,00, era
apenas o cenário, o mero pano de fundo dos enredos.
Dos primeiros livros, o mais conhecido (e aquele que levou o escritor ao
sucesso de público) foi “Olhai os Lírios do Campo” (1932). Esse e os demais foram
escritos na juventude de Veríssimo, quando acabara de se mudar do interior
gaúcho para a capital riograndense, para trabalhar como jornalista na Editora
Globo. A cidade de Porto Alegre, nessas histórias, aparece mais como um detalhe,
já que a narrativa tem um conteúdo mais universal, podendo tido as situações se
passado em qualquer outro lugar.
Nas palavras do próprio escritor: “procurando analisar com imparcialidade
os meus romances anteriores ao Tempo e o Vento, eu percebo o quão pouco, na sua
essência e na sua existência, eles tinham a ver com o Rio Grande do Sul.
Tendiam para um cosmopolitismo sofisticado, que me levava a descrever a
provincianíssima Porto Alegre de 1934 como uma metrópole tentacular e
turbulenta (...)”. (“Solo de Clarineta”, V. 1).
O ponto alto da literatura de Érico Veríssimo dar-se-á depois, na década
de 1940, quando começou a escrever a sua obra prima, na verdade, uma triologia
chamada “O Tempo e o Vento”. Nesta coletânea, o escritor pretendeu contar a
história do Rio Grande do Sul desde 1745 até meados do século XX, na forma de
literatura.
Há nesses três livros um painel e mosaico das histórias de famílias,
grupos e clãs políticos locais que por duzentos anos ocuparam o território, constituíram
vilas e cidades, promoveram guerras com os castelhanos pelo domínio da terra e
envolveram-se em brutais guerras civis, essas últimas até mais sangrentas que
os conflitos com os espanhóis.
É, portanto, a partir de o “Tempo e o Vento” que Érico Veríssimo pode ser
situado dentro do movimento modernista regionalista dos anos de 1930. Ao lado
de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, o escritor gaúcho fez
parte da chamada “Geração de 30”, que deu continuidade ao movimento modernista
de 1922, responsável por redescobrir o Brasil e situar a literatura brasileira
em premissas e formas literárias próprias, especificamente nacionais.
No que tange aos escritores regionalistas, essa redescoberta do Brasil se
relaciona com a descrição regional do país, os hábitos e costumes do povo das
cidades nordestinas, dos camponeses ligados a economia do açúcar, das Usinas,
das plantações de cacau do sul da Bahia, dos vaqueiros do interior mineiro até os
estancieiros do Sul. Captam com maior particularidade o mosaico de culturas que
compõem o país e assim dão uma solução de continuidade ao nacionalismo dos anos
1920, aprofundando as possibilidades de compreensão do Brasil.
E, não menos importante, traduzem desde o regional os problemas universais.
O drama existencial dos retirantes nordestinos do Vidas Secas de Gaciliano
Ramos não são tão diferentes dos dilemas e questões que afligem os criadores de
gado, os imigrantes europeus e os agricultores de trigo da vila de Santa Fé,
descrita nos livros de Veríssimo. O regional é o universal tal qual o mundo é o
sertão, como disse Guimarães Rosa.
História do Rio Grande do Sul
Se há um fio condutor, um elemento geral que conduz a história do “Continente”,
esse certamente é o da Guerra.
O ponto de partida da História do Rio Grande do Sul deu-se inclusive
através da Guerra das Missões (1753/1756) que opuseram as Coroas de Portugal e
Espanha e os jesuítas e índios ligados aos aldeamentos religiosos.
Os primeiros contatos entre índios do sul e a civilização europeia deu-se
através das missões jesuíticas, que agrupavam índios em grandes aldeias onde
lhes eram ensinadas a doutrina católica e organizado um trabalho de tipo
comunal. Se a colonização da América fundamentalmente se deu por motivos econômicos,
relacionados inicialmente à abertura de novas rotas marítimas, não é menos
verdade que o empreendimento europeu também tinha objetivos religiosos. Os
Jesuítas operavam, neste sentido, como agentes da colonização no que toca à
conversão religiosa dos índios. Ensinavam-nos a doutrina através da música, da
dança e do teatro. Ensinavam ofícios aos índios. Buscavam, na medida de suas
forças, desconstituir atividades bárbaras praticadas pelos nativos, nitidamente
a antropofagia.
Contudo, já desde os fins do século XVI, as missões passariam a ser alvos
das bandeiras paulistas, que nela viam a oportunidade de capturar índios já
agrupados coletivamente (e não dispersos na floresta) e disciplinados ao
trabalho, como forma mais prática de raptá-los para depois vende-los como
escravos.
O fato de os paulistas terem expandido os seus domínios através do
aniquilamento das missões criou, por outro lado, as condições para o
estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste, dentro do
princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a
ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).
As Guerras Guaraníticas, que correspondem à certidão de nascimento do “Continente”,
deu-se nos marcos do Tratado de Madrid, quando espanhóis e portugueses reestabeleceram
os limites de suas fronteiras. O limite estabelecido entre as duas nações foi
remarcado pelo rio Uruguai, com Portugal possuindo o território a leste do rio
e a Espanha a oeste. No acordo, os portugueses entregam aos espanhóis a Colônia
do Sacramento (atual Uruguai) e em troca recebem todo o território dos chamados
“Sete Povos das Missões”.
Isso fez com que as sete missões jesuítas a leste do rio Uruguai,
conhecidas como Missões Orientais, deveriam ser desmanteladas e deslocadas para
o lado oeste espanhol do rio. Estima-se que havia até 30.000,00 índios e
jesuítas vivendo nessas missões, que deveriam ser entregues ao governo português,
devendo os missionários imediatamente cumprir ordem de mudança para os novos
domínios espanhóis. E da resistência às ordens emanadas das coroas europeias adveio
as Guerras Guaraníticas, da qual participaram índios e a parcela mais corajosa
e militante dos jesuítas.
As guerras envolvendo índios, jesuítas, bandeirantes paulistas e as
coroas portuguesa e espanhola são o ponto de partida da história do “Continente”,
que segue sempre a linha condutora do conflito e de tragédias sanguinárias.
Nos capítulos da triologia, são descritas como foram constituídas as
primeiras vilas e cidades do sul, a conformação política em torno de
estancieiros e oligarcas locais, que se organizavam através de líderes
familiares que impunham a lei e a ordem e estruturavam a defesa militar do
território, seja em tempos de guerra, seja em face de bandoleiros e piratas da
terra, que invadiam as cidades, roubavam o gado, destruíam as plantações,
matavam os homens e estupravam as mulheres.
Cria-se uma espécie de cultura de guerra da qual o conhecido personagem
do livro, capitão Rodrigo Cambará, seja talvez a sua expressão mais verdadeira.
Para o povo do sul, ou mais especialmente para o homem gaúcho, a guerra é
o momento de se romper com o tédio do cotidiano, resolver animosidades acumuladas
ao longo do tempo, expulsar estrangeiros e garantir o domínio territorial. E,
no caso de guerras civis, notadamente a Revolução Farroupilha e a Revolução
Federalista, trata-se do momento de se opor clãs e grupos familiares em torno da luta pelo
poder, conflitos que se exteriorizam em guerras entre liberais e conservadores,
farrapos e caramurus, maragatos e pica paus.
A tradução literária da história do Rio Grande do Sul em “O Tempo e o
Vento” significa dizer que temos aqui não apenas um romance ficcional, mas um
típico “romance social” dos escritores da Geração de 1930, com uma dose maior
de realismo, já que se baseia na história do país. E, no caso de Veríssimo, de
uma literatura mais horizontal e menos vertical, mais sociológica e menos
psicológica, mais voltada a coletivos, famílias, grupos e clãs e menos aos
indivíduos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário