As Histórias de José Mauro de Vasconcelos
Resenha Livro – “Barro
Blanco” – José Mauro de Vasconcelos – Ed. Melhoramentos
O livro mais
conhecido do escritor fluminense José Mauro Vasconcelos certamente é “Meu Pé de
Laranja Lima” (1968), espécie de relato autobiográfico da infância do escritor,
vivenciada na pobreza de um bairro de subúrbio de Bangu/RJ.
As fantasias de
uma criança que cultiva amizade com uma árvore de laranjeira do seu quintal, o
encanto produzido pela imaginação dos menores, que conseguem abstrair as
dificuldades da vida e encará-la com ternura e alegria, certamente cativou
leitores de todas as idades e fez de Vasconcelos um dos poucos escritores
brasileiros que pôde viver exclusivamente dos direitos autorais de sua
obra.
Façanha que
encontra poucos paralelos no Brasil: Érico Verissimo, Jorge Amado e Monteiro
Lobato são outros poucos exemplos de escritores de uma literatura ao mesmo
tempo popular, acessível a todos e de rara qualidade estética.
“Meu Pé de
Laranja Lima” vendeu mais de dois milhões de exemplares, tendo sido publicada
em 15 países. “Rosinha Minha Canoa” (1962) foi a primeira obra de sucesso do
nosso escritor, que igualmente relata um mundo encantado e fantástico, em que o
pescador mantém dialogo e afeto com sua canoa, cuja origem advém de uma árvore
capaz de sentir e de se comunicar. E a novela “Coração de Vidro” teve mais de
650.000 exemplares vendidos, publicações em 10 países, traduções em três
idiomas e mais de 70 edições no Brasil.
A popularidade de
Vasconcelos, por diferentes razões, não se traduziu em reconhecimento na
academia. Aliás, a própria figura do escritor representa a mais completa
oposição a tudo o que se posse considerar acadêmico.
De família pobre,
nascido no estado do Rio de Janeiro, aos nove anos mudou-se para a casa dos
tios em Natal/RN, cidade onde matava aulas para nadar nas águas do Potengi,
quase na boca do mar.
Quando menino,
ganhou campeonatos de natação e, como todo garoto, gostava de futebol e de
trepar em arvores. Foi neste momento também que teve os seus primeiros contatos
com literatura. No curso ginasial, lia romances de Graciliano Ramos, Paulo
Setubal e José Lins do Rego.
Chegou a
frequentar dois anos do curso de medicina naquele estado, mas a sua
personalidade irrequieta e aventureira o faria abandonar o curso e retornar ao
Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro, levando uma simples maleta de
papelão como bagagem. Isto quando tinha apenas dezesseis anos de idade.
Nesta
peregrinação pelo país a fora, trabalhou como treinador de boxe, carregador de
bananas na capital do Rio de Janeiro, pescador do litoral fluminense, professor
primário num núcleo de pescadores no Recife, garçom em São Paulo. Além de
escritor, foi ator de cinema e modelo.
Em dado momento
de sua vida, se juntou aos irmãos Villas Bôas, sertanistas e indigenistas,
enveredando-se pelo sertão da região do Araguaia, contando povos indígenas
desconhecidos e cartografando terras. O contato direto com aqueles povos
sertanejos e indígenas criaria as condições para o escritor fazer relatos
minuciosos (ainda que sua arte realista enveredasse para o fantástico, com
animais e árvores falantes) dos povos do Araguaia, no seu já mencionado
“Rosinha Minha Canoa” e no romance “O Garanhão das Praias” – ambos tratando de
missões “civilizatórias” junto aos povos sertanejos e indígenas dos rincões do
país.
Há na literatura de
Vasconcelos não só ficção como a expressão de memórias e experiências
diretamente vividas pelo escritor. Justamente por não ser um escritor
acadêmico, seus personagens e histórias surgem daquilo que viu nas suas
andanças pelo país e não apenas pelo que lido nos gabinetes das bibliotecas.
Aliada a sua
notável memória, era escritor imaginativo e prodigioso contador de histórias:
dizia que o seu método trabalho era facilitado pelo fato de já ter a história
inteiramente elaborada na cabeça antes de concretizá-la no papel:
“Quando a
história está inteiramente feita na imaginação é que começo a escrever. Só
trabalho quando tenho a impressão de que o romance está saindo por todos os
poros do corpo. Então vai tudo a jacto. Isso porque todos os capítulos estão já
produzidos cerebralmente. Pouco importa escrever a sequência, como alterar a
ordem. No fim dá tudo certinho. ”.
BARRO BLANCO
“A antiga cidade
de Macau ficava numa ilha chamada Manuel Gonçalves.
Em 1825, essa
ilha começou a afundar. Transportaram a cidade para o litoral, onde se encontra
até hoje.
Por mais estranho
que pareça, hoje a ilha está ressurgindo....
Este romance é a
história dessa ilha, da seca, do sal e de outras grandes misérias do Rio Grande
do Norte”.
Quando José Mauro
de Vasconcellos escreveu “Barro Blanco” (1945) tinha apenas vinte e cinco anos
de idade. O livro aborda a vida dos trabalhadores das salinas do Rio Grande do
Norte e a recente experiência da sua infância em Natal ensejaria a elaboração do
livro, com a descrição dos tipos populares com quem travara relações na sua
infância: os trabalhadores do sal, os marítimos do cais do porto, os retirantes
da seca e as mulheres de vida fácil.
O protagonista da
história se chama Chicão e sua trajetória envolve para cada momento de vida um
aspecto particular da realidade social nordestina.
Filho de cigano,
é abandonado próximo a uma fazenda no sertão do Rio Grande do Norte, onde é
acolhido como filho pelo coronel Pedro Azevedo.
Desde menino, não
se interessa pelos estudos, mesmo a ele sendo oportunizadas as mesmas condições
e possibilidades dos outros filhos do fazendeiro. O espírito livre de Chicão,
relacionado ao seu sangue de cigano, o leva a se aproximar do trabalho no
campo: primeiro no cultivo do algodão e depois junto aos vaqueiros cuidando do
gado.
A vida de Chicão,
e por extensão, do homem sertanejo que ele representa, está sempre condicionada
às forças invencíveis na natureza.
Uma seca sem
precedentes arrebata a fazenda do coronel, causando o abandono de todos os seus
trabalhadores e, também, do afilhado de Pedro que, constrangido, despede-se da
família para tomar rumo a outras terras. Retomar de certa forma a vida errante do
cigano.
A falta de água desertificou
os campos de algodão, matou o gado, secou os açudes e leva homens desesperados
à retirada pelo sertão:
“Chegara o mês de
outubro. A segundo quinzena se fora. Agora era época de ansiedade: seca. Podia
ser como todos os anos. Podia ser também uma seca que durasse um, dois, três anos.
Já tinha acontecido antes. A seca se prolongara por muitos anos e o flagelo
começou a varrer todas as bandas do Rio Grande do Norte.
A miséria humana
se desenvolveu tremendamente enquanto o sertão minguava, a ponto de expelir a
gente que nascera ai, para outras partes. Os homens ressequidos, as mulheres
cadavéricas, as crianças barrigudas e amarelas invadiam as cidades. Estendiam
as mãos ossudas e pediam mais vida do que esmola. E os olhos do povo da cidade
se enchiam mais de nojo que de piedade. Aquela miséria não comovia o coração,
mas incomodava os olhos”.
A situação limite
do retirante, fulminado pela fome e pela sede, leva-o ao desesperado ataque das
cidades e fazendas. Era como se a falta
da chuva também tivesse secado a consciência dos homens: eles saqueavam e
matavam no derradeiro esforço de conservação.
Chicão abandona o
Sertão e chega em Macau, onde se situa o centro das maiores salinas do mundo.
Lá, como outros em situação de desespero, aceita talvez o pior e mais penoso
trabalho a que um homem poderia se sujeitar.
Os trabalhadores
das salinas têm os seus olhos aniquilados pelo reflexo do sol sobre o branco do
sal verde: não foram poucos os que ficaram cegos para depois tornarem-se mendigos
do centro da cidade.
Não podiam
trabalhar senão descalços e o cloreto de sódio mutilava os pés, com rachaduras
e lesões que apodreciam a pele e a carne. A lepra branca do sal verde atacava
todos os trabalhadores invariavelmente, que sofriam do chamado “maxixe.”.
Apenas o
desespero de meses transitando desde o sertão, sem água e comida, autorizaria qualquer
pessoa a aceitar essas condições do trabalho. Que na história se relacionam não
apenas à ganância e pouco caso do dono das salinas, mas, especialmente, à força
irreversível da natureza, à luz do sal que queima os olhos e a pele dos
estivadores.
Mesmo dotado de
uma força física incomum, Chicão não aceita lançar-se ao suicídio gradual no
trabalho das Salinas. Completa o ciclo, desde o Sertão até o mar e passa a
trabalhar como marítimo no cais do Porto.
Neste momento, o
protagonista expressa um outro tipo popular nordestino, o jangadeiro, homem do
mar que deixa família e filhos na terra para passar meses em viagens
transportando o sal para Natal e outras paragens.
O marítimo tem
fisionomia própria: ele anda gingando, fala sorrindo e ama com sofreguidão.
Neste último caso, por passar meses no mar, alimentando o desejo por mulher. E,
no cais do porto, as mulheres de vida fácil saciem a voracidade dos
marinheiros.
Novamente, serão
as condicionantes da natureza quem ditarão o destino de Chicão.
Foi recrutado
para uma viagem arriscada, por conta dos indicativos de chuva e mau tempo, e vencendo
o alerta de companheiros, aceita a empreitada.
Após alguns dias
de viagem, o barco é esfarelado pela força de uma tempestade: a altivez, força
e coragem do sertanejo não podem se medir com os desígnios de Deus. Novamente,
a ordem da natureza se sobrepõe à vontade humana.
A triste morte de Chicão e seus companheiros não
significa dizer que o enredo se reduz a um conteúdo puramente trágico. Tal qual
a vida real, o livro retrata momentos de felicidade e tristeza, festas e velórios,
nascimento e morte. E o fio condutor dos
eventos é a esperança, representada pela Ilha de Macau que foi submergida pela
água (como castigo de Deus) para depois ser devolvida aos homens, como, talvez,
um ato de misericórdia divina.
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