Resenha livro – “A Falência” – Júlia Lopes de Almeida – Iba Mendes Editor Digital
São muitos os exemplos de grandes escritores que não granjearam o devido
reconhecimento ao seu tempo.
O exemplo mais conhecido da literatura nacional é o de Lima Barreto. O
grande cronista do subúrbio carioca, sátiro da sociedade brasileira da Velha
República, não teve o devido reconhecimento do público de seu tempo.
Hoje, por outro lado, sabe-se que o seu Policarpo Quaresma tem a mesma
relevância nacional (e até um evidente paralelo) com o Dom Quixote de
Cervantes. Cada qual sintetizava, ainda que de forma irônica, a cultura
nacional, respectivamente brasileira e ibérica. Transcorreram, contudo, muitos
anos até que Lima Barreto fosse alçado a um dos mais importantes escritores
brasileiros.
O caso de Júlia Lopes de Almeida vai em sentido contrário. Foi a mulher
mais lida no Brasil da Primeira República. Contemporânea de Machado de Assis e Aluízio
de Azevedo, foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras,
principal instância de consagração literária do Brasil.
Por outro lado, assim como Lima Barreto, a nossa escritora teve de lidar
com as terríveis vicissitudes relacionadas aos preconceitos da época. Barreto
por ser negro, lidou e descreveu em seus livros o desprezo e a discriminação
seculares relacionados a um país recém egresso da escravidão. E Júlia Lopes, por
ser mulher, teve que arcar com dificuldades relacionadas a momento histórico em
que a literatura era uma atividade exclusivamente masculina.
Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida nasceu em 24 de setembro de
1862 no Rio de Janeiro, ou mais exatamente num casarão na Rua do Lavradio, onde
se localizava o Colégio de Humanidades, então presidido por seu pai.
Entre os sete e os vinte e três anos vive em Campinas, no interior de São
Paulo, onde se inicia o seu interesse pela literatura.
Numa entrevista concedida a João do Rio em 1905, Lopes conta que na adolescência
fazia versos escondida: fechava-se num quarto, abria a secretária, escrevia
seus poemas e silenciosamente os guardava na gaveta fechada à chave.
Esta experiência irá posteriormente se expressar nos seus livros,
marcados por um estilo intimista. Sua literatura tem sempre uma atmosfera de
interiorização, como se ela escrevesse voltada para dentro. Tal qual a adolescente
trancada num quarto, fazendo algo que àquela época era inadmissível a uma
mulher.
Ainda em Campinas, Lopes começa a escrever para jornais. Seu primeiro
artigo tratou de uma peça teatral que se passou na cidade do interior paulista.
Seu pai, também escritor, foi inicialmente convidado a resenhar o espetáculo. Alegando
não ter tempo, incumbiu sua filha de elaborar o texto. E aos 19 anos, Júlia
começaria uma carreira literária que envolveria a publicação de mais de trinta
livros, além de ampla participação no jornalismo carioca.
Influenciada por escritores realistas e naturalistas dos fins de XIX, Lopes
ocupou-se de retratar o Brasil do início dos anos 1900. É próxima das ideias abolicionistas
e republicanas, a despeito de seus livros apenas muito remotamente ter conteúdo
mais explicitamente político.
Ela descreve os primeiros anos da República Velha, a ascensão de uma
burguesia citadina ligada ao comércio do café e a transição da economia
escravocrata para a sociabilidade capitalista. Mas o faz com um olhar feminino,
atenta aos detalhes, focada nas emoções e nos influxos de pensamento no bojo
dos quais os seus personagens agem. Pensamento, sentimento, hesitações, as
ambiguidades da alma têm igual ou maior importância do que os atos dos seus
personagens. Uma extrema delicadeza, sensibilidade e lirismo denotam um estilo
que podemos chamar de “feminino.”.
Não se tratava, por outro lado, de uma literatura propriamente “feminista”,
epíteto que não era utilizado à época, mas, se fosse, certamente não seria reivindicado
por nossa escritora.
No seu livro mais conhecido, “A Falência” (1915) a escritora de certa
forma confronta alguns preconceitos da época, ao alçar como protagonista da
história uma mulher que trai o marido.
Camila, esposa de um capitalista ligado ao comércio do café, mantém por
seu marido um amor de amizade e respeito, mas ama maritalmente o Dr. Gérvasio,
com quem mantém a tal relação extraconjugal, que é de conhecimento de todos,
menos do seu distraído marido.
Contudo, poderíamos dizer que o seu “feminismo” para por aqui.
Não há propriamente uma insurgência em face dos papeis tradicionais
reservados à mulher, uma oposição às tarefas de educação dos filhos e cuidados
domésticos atribuídos à dona de casa.
Júlia Lopes ela própria soube bem conciliar (sem qualquer manifestação de
“revolta”) o seu papel de escritora, esposa, mãe e dona de casa.
O que ela postulava basicamente era a educação moral da mulher e alguma
compaixão da mulher infiel, sempre apontando que o mesmo dever de fidelidade
não era socialmente cobrado dos homens.
Defendia a capacitação profissional da mulher para o trabalho remunerado
dentro ou fora de casa.
É o que consta do seu livro “A mensageira”:
“Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são
aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são
guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num dia de
luta, e uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as
qualidades morais. Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus
deveres, marcará, funda, indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o
sentimento de ordem, de estudo e do trabalho de que tanto carecemos...” (1897).
No que toca ao seu citado romance “A Falência”, a realidade social da
família burguesa citadina, enriquecida pela até então pujante economia do café,
enseja personagens mulheres que se dedicam aos cuidados da casa, às leituras e ao
ócio. As visitas da casa de Camila dedicam-se à troca de informações sobre a
vida alheia: as fofocas são disseminadas como o vento, são amplamente propagadas
em conversas de bonde.
Tal realidade vê-se abruptamente transformada com a crise do
comércio. O capitalista Francisco Teodoro faz um investimento arriscado e põe
toda sua riqueza a perder, levando-o depois ao suicídio. Sua família,
desmantelada, passa a depender da ajuda de parentes. E a protagonista Camila,
agora viúva e empobrecida, vê-se obrigada a começar uma nova vida no trabalho, a
despeito de não ter qualquer capacitação e experiência no labor.
O triste fim da protagonista dá margem à “crítica social” da escritora
carioca. Uma crítica lírica, resignada, conciliadora e, por isso, aclimatada ao
espírito do seu tempo. Fosse talvez um pouco diferente, e Lopes teria tido a
mesma triste sorte de Lima Barreto.
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