sexta-feira, 4 de agosto de 2023

“A Pena e a Lei” - Ariano Suassuna

 Resenha Livro - “A Pena e a Lei” – Ariano Suassuna – Editora Nova Fronteira


 

“Se cada qual tem seu crime,

Seu proveito, perda e dano,

Cada qual seu testemunho,

Se cada qual tem seu plano,

A marca, mesmo da peça

Devia ter sido essa

De Justiça por Engano!”.

 

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

 

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

 

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

 

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro. O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

 

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular.

 

A peça “A Pena e a Lei” (1957) retoma o fio condutor do “Auto da Compadecida” e suscita a ligação entre o humano e o divino novamente através do cômico. Nas palavras do escritor paraibano, trata-se uma “Tragico-comédia-lírico-pastoril”, qualificação que pode ser estendida para outros trabalhos de Suassuna. E, nessa peça em particular, a descrição de personagens que enfrentam num momento a justiça dos homens para, depois, confrontarem-na com a justiça divina.

 

“A Pena e a Lei” foi concebida para ser apresentada como os espetáculos de mamulengo nordestinos: são aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos.

 

Como se trata de uma espécie de ventrículo, consta que o nome “mamulengo” foi uma adaptação da expressão “mão mole”.

 

O primeiro ato da peça dá-se com os atores de mamulengo: é a fase propriamente terrena da peça em que os personagens são apresentados em suas relações puramente humanas. Surge-nos um triângulo amoroso envolvendo Marieta, o delegado Rosinha e o fazendeiro Vicentão. Ambos prometem travar um duelo em nome do coração da mulher desejada. Ocorre que o subtítulo da peça é “a inconveniência de ter coragem”: ambos se arvoravam como os mais valentes e corajosos da vila de Taperoá mas, estimulados e manipulados pelo negro Benedito (que também ama Marieta), são desmascarados na frente da dama já que ambos fogem do combate pelo medo da morte. E Benedito, pouco antes de tomar a mão da donzela pela sua esperteza, se vê preterido por Pedro, indicado que a sua mesma vivacidade derrotou o oponente mas foi derrotada pelo acaso.

 

O segundo ato da peça propõe ser uma espécie intermediária entre o mamulengo e o teatro ordinário feito por homens de carne e osso. Agora, os personagens representarão como gente, mas imitando bonecos, para indicar que aqui na terra somos seres grosseiros, mas com algo de divino dentro de si.

 

Neste ato vê-se o julgamento de um roubo (ou melhor diria ser um furto) de um novilho. A denúncia do crime foi feita pelo fazendeiro Vicentão que acusa um cabra seu chamado Joaquim de ter-lhe tomado o animal. Na delegacia, acusação e defesa formulam suas alegações e suscitam testemunhas. O julgamento do delegado, conforme a justiça dos homens, é comicamente corrupto: a opinião do juiz Rosinha varia de acordo com agrados em dinheiro e bens que lhe são concedidos pelas partes litigiosas.    

 

E o terceiro ato da peça corresponde ao momento do julgamento dos homens perante Deus, de forma muito parecida com os últimos instantes do “Auto da Compadecida.”. Todos os personagens estão mortos e se vêm na presença do filho de Deus, que no caso é ninguém menos do que o dono do mamulengo. Por outro lado, nesta parte os atores deixam de ser bonecos e comportam-se totalmente como pessoas. E ao invés de serem julgados, em seu desespero diante da notícia da morte, acusam Deus por todos os maus que passaram em vida.

 

Novamente a temática da justiça aparece, agora não mais institucionalizada na sociedade dos homens mas  em sua dimensão atemporal e perfeita. Deus é acusado pelos homens e aceita ser colocado na condição de acusado em um processo judicial celeste.

 

E para resolver a lide, formula perguntas aos homens na condição do seu próprio acusador:

 

- Vale a pena fazer parte da vida, sabendo que a morte é inevitável?

- Vale a pena ser mergulhado nesse espetáculo turvo e selvagem, sabendo que o mal assim marca o sol do mundo?

- Vale a pena viver, sabendo que a vida é um dom obscuro, que nunca será inteiramente entendido e captado em seu sentido enigmático?

 

E, por fim, Deus questiona a todos: se pudessem viver viveriam novamente? Pergunta a que todos respondem afirmativamente acarretando a sumária absolvição de Deus.

domingo, 30 de julho de 2023

A GUERRA DOS EMBOABAS

A GUERRA DOS EMBOABAS 





Resenha livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del Rei -  Insurreição” – Bernardo Guimarães – Ed. Itatiaia.

 

“Dos índios poucos tinham injúrias pessoais a vingar, mas fervia-lhes na alma o ódio instintivo, que os açulava contra os europeus, que lhes queriam roubar a liberdade e a terra, que Tupã lhes tinha dado. Os negros, todos escravos fugidos, queriam vingar-se dos golpes de azorrague desumano, que ainda lhes ardia nas carnes, e ao mesmo tempo quebrar os ferros da escravidão. Dos paulistas não havia um só que não trouxesse altamente gravada no coração uma cruel afronta, um esbulho o mais iníquo, a mais clamorosa injustiça.”.  (Bernardo Guimarães - “Maurício ou os Paulistas em São João Del Rei -  Insurreição”).

 

A Guerra dos Emboabas foi um conflito armado que ocorreu entre 1707 e 1710 no recém-descoberto território das Minas Gerais. Mais especificamente no território onde hoje se situam as cidades de Sabará, Ouro Preto e São João Del Rei da região centro-sul estado mineiro

 

Trata-se de uma insurreição de sertanistas paulistas em oposição aos “emboabas”, palavra que significa “forasteiros” ou “estrangeiros”, no caso, basicamente portugueses (chamados de fidalgos) e baianos, que chegaram posteriormente à região aurífera, colocando fim à atividade mineradora até então exclusivamente exercida pelos homens vindo de São Paulo.

 

Para se conhecer melhor esta Guerra é necessário retomar o fio dos acontecimentos desde a época do bandeirantismo, já em sua segunda fase, quando passam da atividade de captura e escravização de índios para o estabelecimento de bandeiras em busca das esmeraldas.

 

Esta dita segunda fase do bandeirantismo pode se situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais preciosos.

 

Esta diretriz se explica pela situação de decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político, exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos do empreendimento colonial.

 

Como veremos, é justamente o incremento deste controle da Coroa Portuguesa sobre a atividade mineradora o ponto de partida da insurreição dos pioneiros mineradores sertanistas de Minas Gerais.

 

As primeiras jazidas de metais preciosos daquela região foram descobertas em 1693 pelos bandeirantes paulistas. Estima-se que nos dez anos subsequentes ao achamento do ouro, cerca de 30.000,00 pessoas, em sua maioria aventureiros, se dirigiram à região movidos pela ambiciosa conquista de riquezas indescritíveis, “rios de esmeraldas” e “montanhas de ouro”, cuja existência era relatada há tempos por índios aos colonizadores,  marcando nitidamente o imaginário da época.

 

Um grande problema objetivo que surgiu deste êxodo de paulistas para as Minas Gerais (e que também seria um dos pontos de partida da Guerra) foi a grave crise de abastecimento e falta de alimentos em torno dos pequenos arraiais constituídos em paralelo à expansão das bandeiras.

 

Os caminhos até as jazidas de ouro davam-se através de vastas trilhas no meio de densas florestas, cercadas pela ameaça de ataques de índios, animais ferozes e doenças. Durante a maior parte do tempo, o acesso à região se dava exclusivamente através destes estreitos caminhos no meio do mato abertos pelos índios desde o tempos da pré história do Brasil, provavelmente milhares de anos antes da chegada dos Portugueses. O abastecimento tornava-se inviável pelo percurso, o que se agravada pela própria natureza econômica da mineração. A busca pelo ouro envolvia constantes deslocamentos territoriais, não havendo a sedentarização necessária para o estabelecimento de uma agricultura de subsistência, com criação de animais e constituição de cidades minimamente estruturadas.

 

Em pouco tempo, as fontes naturais de alimentação, incluindo animais para caça, foram se extinguindo. Sem o abastecimento dada a distância das minas em relação a São Paulo, muitos morriam de fome ou até mesmo envenenados ao comerem fungos e animais imundos, dada a situação desesperada em que se encontravam.

 

Este pioneirismo destes bandeirantes paulistas que com esforço e luta conseguiram vencer guerras contra índios, a doença e a fome, além marchar sobre um vasto território inóspito, seria abalado pela posterior vinda dos forasteiros, chamados de “emboabas”.

 

Apareceram, depois dos bandeirantes paulistas, comerciantes oriundos da Bahia interessados no comércio de gado e alimentos e também na exploração do Ouro. Quando era basicamente impossível transportar mantimentos de São Paulo às Minas, os Baianos desenvolveram uma rota comercial pelo norte, através do Rio São Francisco, atingindo as vilas e arraias sertanistas. Dada a escassez de alimentos, vendiam o gado a preços cem vezes maior do que transacionavam no litoral.

 

Outros forasteiros (ou emboabas) eram os portugueses de sangue, fidalgos enviados pela Coroa, para serem constituídos como autoridades públicas responsáveis pela administração política e judiciária das vilas e, especialmente, para fiscalizar e arrecadar, por meio de impostos exorbitantes, os diamantes encontrados pelos paulistas.

 

A Guerra dos Emboabas, um conflito que colocou especialmente em oposição sertanistas brasileiros e portugueses a mando da Coroa, pode ser entendida como um prelúdio da luta pela independência, que se concretizaria mais de cem anos depois do conflito.

 

De um lado, os paulistas, que eram como os bandeirantes eram chamados àquele tempo. Queixavam-se que os forasteiros não só lhes roubaram o ouro, mas a liberdade, impondo o direito de requestar suas casas, suas mulheres e filhas. E ao menor sinal de descontentamento, os portugueses castigavam os paulistas com prisões e com o tronco de tortura.

 

Ao lado dos sertanistas de São Paulo ficaram índios e quilombolas, ambos igualmente esmagados pelos emboabas, que também eram vistos como forasteiros que espoliaram-nos da atividade mineradora. Os sertanistas, bugres e os negros devotam ódio e sede  de vingança em face dos portugueses, apenas faltando um ou outro episódio detonador para a eclosão da Guerra Civil.

 

De outro lado da guerra estavam os emboabas, muitos portugueses de nascimento, que viam os paulistas como aventureiros e bandidos, acompanhados de índios e negros indomáveis, formando um exército furioso, ainda que insubordinado. Na guerra, apenas podiam contar com os seus escravos, a quem armavam para se defender dos paulistas. O que não parecia ser eficiente, por razões mais ou menos óbvias. Qual seria o sentido de o negro cativo pegar em armas para defender o emboaba (seu proprietário e algoz) ? E ainda lutar não só contra os paulistas, para atacar e matar seus companheiros de escravidão evadidos e transformados em quilombolas?

  

A GUERRA DESCRITA PELA LITERATURA: BERNARDO GUIMARÃES


Todo este cenário é o pano de fundo do pouco conhecimento romance “Maurício ou Os Paulistas Em São João Del Rei” (1877) do escritor mineiro Bernardo Guimarães.

 

O livro se situa dentre outras histórias de escritores ligados ao romantismo brasileiro, que descrevem grandes e heroicos eventos da História Nacional. É o que aparece por exemplo em algumas obras de José de Alencar e Franklin Távora: uma inequívoca literatura nacionalista, criada a luz e ao tempo dos próprios acontecimentos que ensejaram emancipação brasileira de 1822.   

 

No romance de Guimarães, dentro do estilo literário romântico, a Guerra dos Emboabas se contextualiza no quadro histórico supracitado, mas é desencadeada por conflitos de natureza sentimental.

 

A história se passa em São João Del Rei logo após a chegada do Capitão Mor Diogo Mendes, que cumpria a função de representante institucional da Coroa no território das Minas. Decidia os conflitos do lugar sem direito a agravo e apelação. Representava em pessoa a figura do Rei de Portugal.

 

A filha do juiz de fora se chamava Leonor, cujo casamento é ambicionado pelo Fidalgo Fernando (sobrinho de Diogo Mendes) e por Maurício, um paulista de coração nobre e espírito altivo. Paralelamente, o jovem filho do Capitão Mor deseja a bela paulista Helena, que é ama e é amada pelo artesão paulista Calixto.

 

É em torno dos triângulos amorosos que a Guerra tem o seu ponto de partida: Calixto agride o filho do Capitão Mor em defesa de Helena, acarretando um ato de violência contra toda população emboaba, cuja punição severa repercutiu sobre toda a população sertanista. Fernando, por seu lado, atiça os ânimos de guerra, buscando assim desmoralizar e até matar o paulista Maurício, tirando-o de perto da filha do juiz de fora.

 

Era o estopim de uma guerra cujas condições estavam dadas desde a chegada dos forasteiros no território das minas:

 

“O espírito de insurreição de há muito que fermentava, e como que se organizava por si mesmo no seio daquela população oprimida. Em todos os corações levedava um ódio antigo e rancoroso contra os emboabas.

 

Os paulistas, o indígena e o escravo negro a custo abafavam a sanha, que por isso mesmo se tornava mais violenta, esperando impacientes o dia da vingança. Os elementos estavam preparados para a mais horrível explosão, aguardando somente a mão audaz que lhe chegasse fogo.”.

 

Ao término do conflito, os paulistas foram expulsos da região para retomarem (com sucesso) a cata de ouro na região onde hoje se situa o Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás.

 

Em todo o caso, é ao menos visível aqui um fio de continuidade histórica entre a ação desbravadora dos mares desconhecidos pelos colonizadores portugueses, passando depois pelos bandeirantes a darem continuidade a epopeia através de expedições que percorreram desde o Rio Grande do Sul até o Peru, desrespeitando, inclusive, os limites territoriais institucionalizados pelo Tratado de Tordesilhas. A altivez e insubmissão dos paulistas levaram-no à Guerra dos Emboabas e, após sua derrota, a continuar a ocupação do território através de novas expedições e bandeiras, além de criar um precedente nitidamente nativista que ensejaria 120 anos depois a constituição do Brasil Independente.

domingo, 9 de julho de 2023

A LITERATURA DE JOSÉ LINS DO REGO

 AUTOR E SEU CONTEXTO




 

“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária.

Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

 

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

 

Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

 

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

 

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).   

 

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

 

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.

 

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

 

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

 

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

 

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.   

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

BANGUÊ

 

“O trem furava pelos canaviais de outros engenhos. Havia os engenhos vivos e os engenhos mortos. Lá estavam o Itapuã, de bueiro grande afrontando todas as usinas do mundo. Massangana, de senhor de engenho rico, Maraú, vivendo do algodão. O Bugari tinha cana até na bagaceira. Aquele se fora na voragem. O melão-de-são-caetano subia e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Para que moradores com roçados, criando gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os pequenos que defendiam o algodão”  

 

“Banguê” (1934) é a sequência da história de Carlos, quando retorna ao Engenho de seu avô José Paulino, após passar cinco anos estudando Direito no Recife.

 

Recém-formado, o protagonista retorna ao Santa Roa sem qualquer plano ou ideia do que fazer de sua vida.

 

Durante o curso de Direito no Recife, se relaciona com um mundo moderno quando comparado ao velho engenho de seu avô. Na faculdade, passa aos seus colegas uma imagem idealizada de sua origem familiar: seriam terras de fidalgos, com casas de potentados e famílias que se gabam dos seus brasões.

 

O retorno ao Santa Rosa desmente por completo aquela idealização. A rusticidade, a pobreza dos trabalhadores do eito, a corrupção dos agentes do fisco, a violência dos capatazes e feitores, além de toda uma cultura e estrutura social vinculada ao regime da escravidão (recentemente extinta) se confrontam com aquela noção idílica do mundo rural. Carlos idealiza o mundo do Pilar não só perante os outros mas através do engano a si mesmo.

 

O autoengano marca os primeiros momentos do livro, quando uma forte melancolia toma conta do bacharel de retorno ao Santa Rosa:

 

“Faltava qualquer coisa na minha vida. Um entusiasmo por qualquer coisa. Olhava sem querer ver. Tinha a impressão que os meus sentidos se atrofiavam. Os moleques que haviam sido os meus companheiros, Manual Severino, João de Joana, andavam iguais aos outros. Passavam por mim como estranhos.”.

 

O Santa Rosa ainda suspira pela força e potência do velho José Paulino que aos 86 anos ainda preside pessoalmente os trabalhos dos seus nove engenhos situados na fazenda. Contudo, a velhice e a proximidade da morte do latifundiário vão representando o fim daquela civilização do açúcar.

 

Se o velho é a principal peça da engrenagem produtiva do engenho, a sua velhice remete a uma roda velha do moinho, prestes a inutilizar a máquina e paralisar a produção.

 

Esperava-se que Carlos, retornando dos estudos, assumisse o controle e direção dos trabalhos da fazenda. José Paulino é a expressão do vigor na ação, da altivez, da serenidade, da potência, e da plena confiança no que faz. É o exato oposto de Carlos, um homem emotivo, com medo paranoico da morte, hesitante, que se acovarda até diante dos cabras e trabalhadores do eito, prenunciando o início do fim do Santa Rosa.

 

Com a morte do avô, o protagonista é de fato alçado à condição de novo Senhor de Engenho. Ainda que se dedique inteiramente à gestão da produção, não consegue prosperar, talvez por lhe faltar a energia e força típica daqueles que viveram a sua vida inteira na base do trabalho pesado.

 

Há evidente incompatibilidade entre a conduta do bacharel formado em Direito e a prática enérgica dos senhores de mando do campo. E quando há similitudes, elas se dão no que existe de pior: na exploração brutal dos trabalhadores mediante cobrança de foros extorsivos pelo uso da terra; ou nas práticas sexuais com as negras trabalhadores do eito, inclusive aquelas casadas com os cabras, sendo criadas uma geração de pequenos deserdados que iriam viver na fazenda sem qualquer distinção das outras crianças sujas, magras e amarelas de doenças.

 

Não que a chegada dos usineiros criasse melhores condições aos antigos trabalhadores dos engenhos.  As Usinas funcionavam 24 horas por dia, trabalhava-se de dia e de noite como nos tempos da escravidão.

 

A chegada da usina, na verdade, é representativa de um estágio de superação capitalista do escravagismo de origem colonial. O engenho do Santa Rosa ao tempo da nossa história é uma figura de transição entre uma realidade semi-feudal e o novo modo de produção capitalista.

 

No tempo de José Paulino, trabalhava—se duro, havia castigos físicos, mas não se passava fome e os camponeses tinham a liberdade de usar a terra para produção de auto sustento. Com a chegada da usina, tem-se a contraditória impressão de uma degradação social que caminha passo a passo com o brutal incremento dos meios tecnológicos de produção do açúcar. Os trabalhadores perdem o direito à terra e viram, poderíamos dizer, proletários.  

 

Um retrato de um mundo em extinção, tratado de forma lírica, telúrica e memorialista, é o que se pode resumir do quadro pintado por Lins do Rego no seu “ciclo da cana de açúcar”.  

sábado, 17 de junho de 2023

O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR

 O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR




 

Resenha Livro – “O Guarani” – José de Alencar – Ed. Ática

 

Quando José de Alencar publicou em folhetins o seu romance “O Guarani” no ano de 1857, ainda era um jovem advogado e escritor, apenas iniciando sua carreira literária.

 

Seus dois primeiros livros foram “Cinco Minutos” (1856) e “Viuvinha” (1857), chamados pelo próprio escritor de forma pejorativa de “romancinhos”: se situam ao lado de outros livros como “Lucíola”, “Diva” e “Senhora”, num conjunto de obras que podem ser classificados como os “romances urbanos” do escritor cearense.

 

O início da literatura romântica indigenista, que promovia uma inédita conexão entre literatura e nacionalismo em território brasileiro, dar-se-ia com a publicação de “O Guarani”, que seria seguido depois por “Iracema” e “Ubirajara”. Trata-se de obras que pioneiramente apontam a centralidade da figura do indígena como elemento balizador da constituição do povo brasileiro.

 

Transcorreram pouco mais de 30 anos entre a independência política do Brasil em relação à Portugal e o início daquilo que ficou conhecido como a primeira fase do nosso romantismo. A recente proclamação da independência de 1822 ensejava uma resposta à pergunta: afinal, quem somos nós brasileiros? A forte presença do índio naquele movimento literário vinha como forma de resposta a essa pergunta.

 

SOBRE O AUTOR

 

Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1 de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O autor passou durante a infância pelo período tumultuado das Regências e participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II Império.

 

Nosso escritor foi filho de um padre, deputado provincial do Ceará pelo partido liberal, governador e posteriormente Senador daquele mesmo estado, cujo nome era o mesmo do seu filho: José Martiniano Alencar. Ambos transitaram pela política: no caso de José de Alencar filho, tratou-se de uma carreira que lhe trouxe menos recompensa do que a sua  atividade literária.

 

José de Alencar (filho) foi Ministro da Justiça durante o II Reinado, a despeito de manter uma postura crítica em relação a D. Pedro II. Em certo momento foi preterido pelo imperador para uma vaga ao Senado, por conta de pretéritos embates entre ambos, o  que causou ao romancista uma intensa desilusão.

 

Houve inclusive polêmica literária travada na imprensa carioca entre o autor d’o Guarani e o Imperador sobre o significado da obra de Gonçalves de Magalhães. D. Pedro II defendia o autor de “A Confederação dos tamoios”, enquanto Alencar critica duramente a qualidade da obra de Magalhães: “as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês ou europeu (...) o senhor Magalhães não só mão conseguiu pintar a nossa terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe ofereciam os costumes e tradições indígenas”.  

 

Curiosamente, José de Alencar posteriormente seria alvo de críticas semelhantes. Ficou conhecida na história a intensa campanha promovida pelo jornalista e romancista João Franklin da Silveira Távora contra a literatura de seu colega cearense, a quem criticava por fazer uma literatura social “de gabinete” sem o conhecimento da realidade social e do sertão, descrita não só nas obras indigenistas, mas naqueles seus “romances sertanejos” como “O Gaúcho” e “O Sertanejo”.

 

É certo que o registro de José de Alencar do Sertão e da situação do índio brasileiro é muito mais baseado em sua imaginação como escritor do que como historiador. Neste sentido, Távora estava correto ao dizer que os seus personagens foram formulados “dentro de um gabinete” e não mediante o contato direto com aquelas realidades.

 

Por outro lado, deve-se salientar que o trabalho literário de Alencar decorreu de muito estudo disciplinado: o seu “O Guarani” aborda aspectos da flora, fauna e tradições culturais do indígena brasileiro do início do século XVI baseando-se na leitura de historiadores e fontes históricas primárias. Suas fontes para descrição do cenário da história envolvem o botânico e pesquisador francês Auguste de Saint-Hilaire (1779/1853), Aires de Casal (1754/1821) e principalmente o livro “Tratado Descritivo do Brasil” (1587) de Gabriel Soares de Souza (1540/1591).

 

O GUARANI

 

A história se passa no ano de 1604 no interior da capitania do Rio de Janeiro, então governada por Mem de Sá, cuja maior realização fora a expulsão dos franceses do território da colônia portuguesa.

 

O fidalgo português D. Antônio de Mariz tomou parte nos combates pela defesa do território português. Contudo, no contexto da união ibérica em que Portugal ficou oficialmente sob o comando da coroa espanhola, Mariz, mantendo uma linha de fidelidade ao rei português, resolve-se asilar-se às margens do rio paraíba, no interior da província. É neste pequeno vilarejo que se passa a história.

 

“A derrota de Acácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.

 

Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento de nobreza e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois em 1592 foi aclamado no Brasil D. Felipe II como sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço”  

 

 D. Antônio preferia viver retirado com a sua família no mais longínquo sertão brasileiro, onde comandava um grupo de pessoas e ao redor de quem vivia sua família numa fazenda fortificada. Às margens do rio Paquequer, Mariz montou casa para sua mulher, sua filha Cecília, uma filha bastarda chamada Isabel, o escudeiro Aires Gomes e um fidalgo português chamado Álvaro de Sá.

 

Viviam como que numa república fortificada ante o risco constante de ataques de índios ou bandoleiros. Por essa razão, o fidalgo também mantinha “como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior: eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, solados e selvagens ao mesmo tempo.”.

 

A família também era acompanhada por Peri, o mais valente guerreiro Goitacá, que salvara a vida da filha de D. Antônio e por isso é acolhido pela família do fidalgo.

 

Peri é uma palavra guarani que significa junco silvestre.   O índio mantém uma dedicação semelhante ao fervor religioso em relação à Cecília. Na verdade, a bela filha do fidalgo português é amada de formas diferentes por três personagens da história.

 

O índio Peri mantém uma devoção relacionada a uma percepção de que Cecília era uma espécie de ente divino, a quem lhe incumbia responder a todos os seus desejos sem entrar um só pensamento de egoísmo. Amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.

 

Já Álvaro ama Cecília da forma como amavam os românticos descritos nas histórias de cavalaria medieval. Em se tratando de um cavalheiro português, o seu sentimento era uma feição nobre e pura, ensejando momentos de timidez ou arroubos em que o português buscava timidamente confessar o seu amor à filha de D. Antônio.

 

Enquanto Peri adorava e Álvaro amava, o italiano Loredano a desejava: em se tratando de um romance nacionalista, o estrangeiro aparece na história como o seu principal vilão.

 

Loredano fora um padre beneditino que viera em missão religiosa ao Brasil: oportunamente abandonou e conjurou a religião para dar vazão a sua luxúria. Sonhava encontrar o ouro no Brasil, enriquecer e oportunamente raptar a filha do português.

 

Dentro desta trama, ocorre um incidente que dará curso aos principais eventos da história.

 

Um filho de D. Antônio acerta um tiro por engano numa índia aimoré, tribo conhecida particularmente por seu estágio bárbaro, menos civilizado que os demais índios. O espírito de vingança é um dos traços psicológicos determinantes daqueles povos indígenas, o que fora agravado pelo fato de a índia morta ter sido a mais bela e desejada mulher daquela tribo.

 

A vingança dos aimorés se dá através de uma guerra sem tréguas e com fins trágicos. Da guerra apenas sobrevivem Peri e Cecília. Ao final, a menina reconhece e vê o índio como um irmão, ou seja, alguém igual em termos civilizacionais, nitidamente se considerando que o índio já fora batizado por D. Antônio antes da batalha final contra os aimorés.  

 

Peri é o herói da epopeia “O Guarani”. A sua dedicação, coragem e abnegação são certamente formas de valorização não só da figura do índio, mas de alguém que está se  constituindo como brasileiro. Há no índio (ou brasileiro) uma delicadeza de sentimentos dentro de uma alma inculta. Uma inteligência sem cultura mas brilhante como o sol. A alma é virgem de civilização, mas naturalmente brilhante, forte, corajosa, ou seja,  representativa da aspiração de um Brasil igualmente altivo e independente.

domingo, 28 de maio de 2023

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES

 

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES


Antônio Parreiras - Morte de Fernão Dias Paes Leme

 

“O interior do Brasil não foi sempre cortado por estradas e semeado de habitações hospitaleiras. Tempo houve em que não havia nenhuma cabana no mesmo, nenhum vestígio de cultura, só havendo as feras que lhe disputavam o domínio. Os paulistas palmilharam-no em todos os sentidos. Esses audaciosos aventureiros...penetraram por diversas vezes até o Paraguai; descobriram a província do Piauí, as minas de Sabará e de Poracatu; entraram nas vastas solidões de Cuiabá e Goiás, percorreram a província do Rio Grande do Sul; chegaram ao norte do Brasil até o Maranhão e o Rio Amazonas; e, tendo transposto a cordilheira do Peru, atacaram os espanhóis nos centros de suas possessões. Quando se sabe, por experiência própria, quantas fadigas, privações, perigos que ainda hoje aguardam o viandante que se aventura nestas longínquas regiões e se toma conhecimento do itinerário das intermináveis incursões dos antigos paulistas, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que esses homens pertenciam a uma raça de gigantes” (Augusto Saint-Hilaire – viajante francês que percorreu o Brasil entre 1816/1822).

 

Em 24/07/2021 foi noticiado pela imprensa que um grupo autointitulado “Revolução Periférica” colocara fogo na estátua de Borba Gato em São Paulo, como forma de protesto, ainda que não se saiba exatamente contra o quê.

 

Esse ato escatológico ao menos teve o saldo positivo de revelar  um pouco o que passa na cabeça dos seus protagonistas: a ideia de que “performances revolucionárias” podem mudar o mundo, algo parecido com o almejado “efeito estético” de vidros de bancos quebrados em passeatas. 

 

Em todo o caso, o episódio não seria muito grave se se limitasse a uma presepada de meia dúzia de universitários. Antes, tratava-se de um ataque direto e coordenado contra a Cultura Nacional, a mesma que buscou invisibilizar Monteiro Lobato, denunciar Pedro Álvares Cabral e seus pares como agentes do genocídio e do estupro, e, mais recentemente, avacalhar a ópera "O Guarani" do campineiro Carlos Gomes.  

 

Afinal, quem foram estes sertanistas paulistas? Qual a sua importância para o Brasil? Qual a razão dos ataques ao bandeirantismo promovidos por grupos políticos antinacionais? Por que defender a sua memória é também uma defesa do Brasil?

 

OS MITOS EM TORNO DO BANDEIRANTISMO

 

O fenômeno do bandeirantismo está situado na História do Brasil a partir dos últimos anos do século XVII até os fins do Século XVIII.

 

Não por acaso, as entradas podem ser entendidas como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que lançou os Portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como Brasil.

 

Um primeiro mito a se desfazer sobre as bandeiras diz respeito à falsa descrição dos seus membros: seriam um grupo de “colonizadores brancos”, “europeus de sangue”, que teriam se mobilizado conscientemente para a conquista de territórios e escravos, através de um deliberado plano de “genocídio indígena”. Esta visão se choca frontalmente com a rusticidade dos bandeirantes e a majoritária participação de índios e mamelucos nas entradas.

 

O bandeirante paulista é um simples morador de uma região secundária da Colônia, dada a sua distância com os centros consumidores de produtos coloniais situados na Europa – diferentemente da região nordeste. Levavam “uma vida quase indigente, lutando contra as injunções mais imediatas e prementes de uma existência material extremamente difícil. Pobre, analfabeto, sem perspectivas, tinha nas suas investidas ao Sertão as únicas chances de modificar sua sorte material, que nesta medida passavam a ser, para usar a expressão de Sérgio Milliet “soluções de inexorável urgência”.  (DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: verso e reverso”. ).

 

 As bandeiras ou entradas podem ser conceituadas como expedições paramilitares que se movem em direção ao sertão para captura de índios e de pedras preciosas. De acordo com essa definição, foi um fenômeno disseminado por todo o território onde hoje de situa o Brasil. Contudo, algumas particularidades de São Paulo fizeram com que se desenvolvessem com maior força naquela vila interiorana da Capitania de São Vicente.

 

No ano de 1600 estima-se que São Paulo possuía 1500 habitantes distribuídos em 150 residências. A região mais dinâmica da colônia, então, se situava em Pernambuco e Bahia, por conta da proximidade com a Europa e as boas condições para o desenvolvimento da exploração mercantil da terra. Já em São Paulo não se realizaram os desígnios gerais da colonização portuguesa através da grande propriedade monocultora, com a utilização do máximo número de escravos e economia vinculada ao mercado externo. Tratava-se antes de uma mera feitoria, onde predominava uma pobre economia de subsistência. Havia poucas ruas e as casas eram meras choupanas cobertas por palha.  As bandeiras entram assim como uma “solução de emergência” para a pobreza da região.

 

Numa primeira fase, as expedições tinham como objeto o desmantelamento das missões jesuíticas para captura de índios e para comércio escravocrata. Num segundo momento, com o declínio do trabalho escravo indígena na colônia, esses sertanistas se voltam para a  busca do ouro, da prata e das esmeraldas.

 

Eram compostas majoritariamente por índios e mamelucos. A ampla participação de indígenas nas entradas se dava pelo fato de conhecerem melhor os territórios e o curso dos rios. Andavam descalços, falavam a língua geral (formada a partir da evolução do  antigo tupi), portavam em suas expedições arcos, flechas, pouca arma de fogo. Em seus carregamentos, levavam pólvora, machados, balas, cordas para amarrar os índios aprisionados, e por vezes, sementes, sal e uma pequena quantidade de alimentos.

 

Em geral, partiam de madrugada e pousavam no entardecer; durante o dia dedicavam-se à caça, à pesca e à coleta de frutos, também se lançando mão das roças dos indígenas que aprisionavam.

 

Um segundo mito construído em torno da propaganda contra os bandeirantes diz respeito ao fato de o movimento se limitar à captura e escravização do índio – daí são todos chamados de “escravagistas”.

 

Ora, como já mencionado, os 100 anos de maior atividade bandeirante passou por diferentes fases, envolvendo não só o comércio de escravos, mas o desmantelamento das missões jesuíticas espanholas, a expansão das fronteiras do domínio português, a busco das pedras preciosas e até o engajamento na luta pela expulsão dos holandeses.

 

Basta aqui dizer que Borba Gato (genro de Fernão Dias, conhecido como “Governador das Esmeraldas”) foi escolhido como “alvo” de militantes, desconsiderando se tratar de personagem ligado à 2ª fase do bandeirantismo, o da caça das esmeraldas. Isto para não dizer que esse personagem conviveu pacificamente durante 18 anos com índios da tribo dos Botocudos, sendo tratado por eles como cacique, após ter assassinado um emissário da coroa e buscado no sertão um porto seguro.

 

AS DUAS FASES DO BANDEIRANTISMO

 

“Estava a findar o primeiro ciclo bandeirante, o da caça ao índio, cuja personalidade máxima fora o formidável Antônio Raposo Tavares e em que se destacam os sertanistas do relevo de dois Affonso Sardinha, Amador Bueno, Manuel e Sebastião Preto, André Fernandes, Estevam Bayão, João Amaro, Maciel Parente, etc.

 

Alguns anos mais tarde, extinguiram-se esta fase, por assim dizer, com as últimas grandes jornadas de Francisco Pedroso Xavier, em 1675; Mathias Cardoso de 1689 a 1694, e Domingos Jorge Velho.

 

De apresadores de índios, iam passar os paulistas a revolvedores ásperos do solo, em busca de minerações preciosas. Encetava-se o segundo grande ciclo bandeirante: o do ouro, perfeitamente caracterizado em Fernão Dias Paes.”. (TAUNAY, Affonso de E. “Índios, Ouros e Pedras”).

 

É possível dividir o moimento bandeirante em duas grandes fases. Ambas as etapas colaboraram à sua maneira para aquilo que de melhor nos legou as entradas: a expansão do território e a criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e linguística.

 

A primeira fase diz respeito à “solução de urgência” dos paulistas para a sua pobreza material, através da captura de índios para o comércio de escravos dentro da colônia.

 

Logo em seus primeiros momentos, as expedições se voltam contra as missões jesuíticas, e isso por um motivo muito simples: era muito mais fácil capturar os índios já agrupados geograficamente pelos inacianos e já iniciados por eles ao trabalho e à civilização cristã.

 

Ainda que boa parte deste primeiro período tenha se dado durante a União Ibérica (1580/1640), o fato de os paulistas terem expandido os seus domínios através do aniquilamento das missões criou as condições para o estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste, dentro do princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).

 

O maior representante deste primeiro período é certamente Antônio Raposo Tavares, responsável pela integração de centenas de milhares de quilômetros ao território nacional.

 

Em 1629, uma expedição de Tavares expulsa os espanhóis do Paraná. Em 1936, há a conquista do Rio Grande do Sul após a conhecida destruição da missão de Guaira. Dois anos depois, os paulistas expelem os ignacianos para além da margem ocidental do Rio Uruguai.  

 

No ano de 1639, Antônio Raposo Tavares é convocado pela Coroa a se engajar na luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste do Brasil, para onde se dirige, prestando colaboração a nossa primeira experiencia de luta por independência que forjou os elementos constitutivos da nacionalidade brasileira: brancos, negros e índios unificados em luta contra o domínio holandês.

 

Após a vitória brasileira na guerra, Tavares se dirige ao norte do país, alcançando a foz do Rio Amazonas em 1651. A inacreditável extensão territorial percorrida pelas bandeiras podem ser facilmente percebidas no mapa abaixo:

 



 

Uma segunda fase do bandeirantismo pode se situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais preciosos.

 

Esta diretriz se explica pela situação de decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político, exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos do empreendimento colonial.

 

Outro ponto que explica a mudança de eixo das bandeiras foi a própria decadência da escravidão indígena (abolida formalmente em 1758) com a sua substituição pelo mercado de cativos africanos.  

 

O mais representativo personagem desta segunda fase é Fernão Dias Paes (1608/1681). Na condição de governador de São Paulo, foi um agente conciliador dos colonos e dos jesuítas, a quem restituiu o seu colégio alguns anos após a expulsão dos inacianos da vila.

 

Em 1673 quando já tinha mais de 60 anos organizou uma expedição que durou 7 anos em busca de metais preciosos. A despeito dos apelos da Coroa, esta entrada foi inteiramente custeada pelo bandeirante: em determinado momento, enviou cartas a sua mulher e filhas para que se desfizessem de todos os seus bens para dar prosseguimento à cata de tesouros no sertão.

 

Fernão Dias morreu no curso desta expedição. Não encontrara nenhum metal precioso. Consta apenas que acreditou ter encontrado esmeraldas, quando na verdade apenas achou turmalinas. Antes de falecer, Dias pediu que o seu corpo fosse enterrado no Mosteiro de São Bento, o que foi cumprido com muito custo por seus correligionários. Apenas no ano de 1910 o seu corpo foi descoberto em São Paulo, ou seja, mais de 200 anos após a morte do “Governador das Esmeraldas.”.  

 

BALANÇOS

 

A propaganda negativa dos bandeirantes, como vimos, serve-se de alguns mitos que buscam induzir nas pessoas a noção geral de que o empreendimento colonial português no Brasil teria sido um ato deliberado de genocídio e destruição: a consequência lógica desSa ideia é a de que o país não deveria sequer ter existido, já quwe o Brasil efetivamente nasceu desde o momento da chegada dos portugueses no novo Mundo.

 

Curiosamente, os mitos em torno dos bandeirantes partem de uma suposta “crítica” de uma “História Oficial” que teve como base Southey, Saint-Hilare, Cassiano Ricardo e A. E. Taunay. Aqui, como em outros capítulos de nossa história, a leitura dos clássicos é certamente mais próxima da verdade do que as “narrativas” que inspiraram as ações contra os monumentos nacionais.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: Verso e Reverso”. Ed. Brasiliense

 

TAUNAY, Afonso de E. “Índios! Ouro! Pedras”. Ed. Melhoramentos.