domingo, 26 de junho de 2022

"O Missionário" – Inglez de Souza

 "O Missionário" – Inglez de Souza







Resenha Livro – O Missionário – Inglez de Souza – Valer Editora – 2010

 

“O movimento da fauna amazonense arrancara Padre Antônio à meditação a que se queria entregar, sujeitando-o todo à encantadora contemplação das maravilhas da natureza selvagem, naquela esplêndida manhã de agosto, em meio do largo rio que se desdobrava, a perder de vista, numa luzente toalha em que se refletia, como em puríssimo cristal, o azul dum céu sem nuvens, sombreado pelas ramagens de árvores seculares, e riscado em diagonal pela linha de voo de pássaros desconhecidos. As recordações da meninice assaltaram-no de novo, eram a mais grata memória do seu cérebro, evocadas sempre pelo espetáculo da natureza virgem. E vira-se a percorrer os campos incultos da fazenda, a aventurar-se numa pequena canoa pelo Amazonas fora, quando gostava de supor-se perdido na vastidão do rio, e a imaginação sonhava uma vida acidentada de combates com feras e de luta com os elementos na solidão das águas e das matas. Agora, via quase realizado o seu sonho de menino, em pleno deserto, indo talvez perder-se em paragens desconhecidas, dormir ao relento, matar a fome nos maracujás silvestres e nas castanhas oleosas, talvez morrer às mãos dos índios do sertão, que não teriam pena da sua mocidade e gentileza. Mas em todo o caso, ia saciar a alma de solidão e de liberdade, gozar talvez a inefável delícia de sentir-se só num grande país, de poder entregar-se desassombradamente ao enlevo dos seus queridos pensamentos íntimos, sem receio de olhares indiscretos nem de interrupções importunas.”.  

 

Herculano Marcos Inglez de Sousa nasceu na cidade de Órbidos, no Pará no ano de 1853. Fez seus estudos secundários no Maranhão e iniciou o curso de Direito na Faculdade de Recife.

 

Por conta da mudança de sua família para cidade de Santos em São Paulo, Inglez de Souza terminou a graduação na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no ano de 1876.

 

Positivista e republicano, fez política durante o II Império, alcançando a presidência dos estados de Sergipe e do Espírito Santo, além de ministrar curso de Direito Comercial na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.

 

Comumente, diz-se que Aluísio de Azevedo, por meio dos romances “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890), teria sido o precursor do movimento literário naturalista no Brasil.

 

Contudo, é certo que ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que pode ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

 

De fato, as datas de publicação dos primeiros romances do escritor paraense fazem-no contemporâneo de outros escritores regionalistas, mas ainda presos ao romantismo literário, como Visconde de Taunay. Ainda que as descrições da floresta, da fauna, dos rios e dos bichos ainda tenha traços românticos, ocupando boa parte da exposição, em Inglez de Souza já se prenuncia a ideia de o meio social e as condições naturais serem os fatores condicionantes da atuação das personagens.

 

Em outras palavras, em Inglez de Souza é possível se verificar o determinismo geográfico e biológico estabelecendo as relações de causalidade nas escolhas e ações humanas, sempre como fator preponderante em relação ao livre arbítrio.

 

Este determinismo é ressaltados n’o Missonário no protagonista do romance, Padre Antônio de Moraes.

 

Nascido numa cidade longínqua do amazonas, filho de um matuto que oprime a mulher, bate nos filhos e se relaciona sexualmente com as escravas da fazenda, criado de forma livre em meio a uma natureza exuberante, Antônio manteria em sua vida adulta os traços de personalidade que entrariam posteriormente em confronto com as rígidas regras morais de um clérigo.

 

As heranças hereditárias, o meio social e até mesmo as condições ambientais criariam as condições para que o Padre se lançasse na aventura de catequizar índios selvagens mundurucus, menos por convicção religiosa e mais por uma busca de retomar a liberdade perdida da infância por meio de uma aventura na selva, pela vaidade de quem busca firmar seu nome na sociedade amazonense e pela rebeldia diante do monotonia de sua rotina como sacerdote de um minúsculo vilarejo no interior do Pará, denominado Silves.

 

E estes predicados igualmente fariam com que o padre se desviasse da sua missão original para ceder ao ímpeto sexual e desvirginar Clarinha, uma cabocla de 15 anos, por sinal, neta de índia que igualmente mantivera relação clandestina com outro padre evangelizador.   

 

“Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupa o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjulgar.”.

 

O viés cientificistas nítido dos trabalhos naturalistas, decorrentes da influencia do darwinismo social, do determinismo social e geográfico e do positivismo com o seu enquadramento racional e esquemático da sociedade, torna incompatível uma comparação de “O Missionário” com outro romance c que igualmente trata da devassidão de clérigos, no caso “O Crime do Padre Amaro” (1875) do escritor Eça de Queiroz.

 

No caso do romance português, estamos diante de uma crítica social e radical da Igreja Católica de Portugal, dentro dos quadrantes do emergente movimento realista, em oposição e em combate à tradição romântica. Os pecados de Padre Amaro decorrem do livre arbítrio e da falência moral das instituições.  

 

No caso do romance do escritor paraense, a mesma devassidão é antes de tudo uma fatalidade, condicionada pelo atraso social da região amazônica, por uma educação religiosa inconsistente e por condições climáticas e hereditárias que facilitam a concupiscência e o individualismo.  Uma fatalidade tal qual os ciclos da natureza, repetindo-se com o Padre Antônio o que ocorrera com os outros sacerdotes que o antecederam na missão de evangelizar no amazonas: o relacionamento pecaminoso com as mulheres do sertão e a constituição clandestina de famílias.


BIBLIOGRAFIA

 

BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cutrix. 2021.


#1

terça-feira, 7 de junho de 2022

“Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 




Resenha Livro - “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev – Ed. Companhia das Letras – Tradução Rubens Figueiredo

 

“Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita...”. (Ivan Turgueniêv – “Pais e Filhos”).

 

Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) nasceu na província de Oriol, na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.

 

O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852) reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o artista perante o público russo.

Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Turgueniêv foi preso e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.

 

Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor como um mero instrumento de crítica política. O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um bom observador.

 

De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente Turguêniev, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas a mais profunda representação das personagens.  

 

“A primeira forma em que um relato surgia para ele era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”.

 

Nosso escritor escreveu “Pais e Filhos” entre o fim de 1860 e o início de 1862, quando completou 42 anos de idade.

 

As datas são importantes, pois estão situadas entre o mais importante fato político da história da Rússia do séc. XIX: a abolição da servidão em 1861, regime social em que os camponeses eram propriedade dos senhores de terra.

 

Naquele contexto, ganhava força no cenário intelectual russo novas tendências críticas à autocracia, que engendrariam, entre outros, a criação do movimento político “Terra e Liberdade”, que propugnava o terrorismo e efetivamente viabilizaria o assassinato do Czar Alexandre II em 13 de Março de 1881.

 

O romance tem como fio condutor o choque de duas gerações, representadas de um lado: (i) pelos personagens Nikolai Petróvich e Pável  Petróvich que representam o pensamento tradicional, dos “pais”, identificados com o aristocratismo e o romantismo; e (ii) pelos personagens Bazárov e Arkádi, este último filho de Nikolai e sobrinho de Pável, que representam as tendências modernas, os “filhos”, a crítica ao pensamento convencional, o racionalismo radical e o cientificismo desprovido de princípios, que se poderia classificar como niilismo:

 

“- Ele é um niilista – repetiu Arkádi.

- Niilista – disse Nikolai Petróvich – vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que....que não admite nada?

- Digamos: que não respeita nada – emendou Pável Petróvich e novamente esse pôs a passar manteiga no pão.

- Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico – observou Arkádi.

- E não é a mesma coisa? – indagou Pável Petróvich.

- Não, não é a mesma coisa. O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.”.

 

Considerando o eixo fundamental do escritor de buscar retratar com a maior perfeição as complexidades de cada personagem, não seria de se espantar que não existem, ao final, vencedores e perdedores no embate entre pais e filhos, ou entre os niilistas e os aristocratas.

 

Ambos, com as suas contradições, acabam demonstrando parcial razão.  

 

O racionalista Bazárov apaixona-se por Anna Serguêievna, fazendo cair por terra todas as suas premissas acerca da inutilidade e futilidade do amor.

 

Já o fidalgo Pável Petróvich relativiza suas rígidas normas morais ao aceitar e mesmo incentivar que o seu irmão formalize um segundo casamento, após o falecimento da segunda esposa, tudo isso diante da conclusão, ainda que tardia, da futilidade das convenções, bem apontadas pelos jovens.

 

E para além dos problemas específicos daquele momento histórico russo, é certo que os dissensos entre os pais e filhos, os choques de geração, tem algo de universal, fazendo com que o romance nos comova ainda nos dias de hoje.

sábado, 7 de maio de 2022

A PRÉ HISTÓRIA DO BRASIL

 A PRÉ HISTÓRIA DO BRASIL




 

“Como teriam vivido esses pioneiros da floresta tropical? Usavam pontas de lança de pedra bifaciais triangulares e se alimentavam tanto da pesca e caça como da coleta de frutos e vegetais. Comiam peixes, roedores, morcegos, moluscos, jabutis, pássaros, anfíbios, mas também cobras e grandes mamíferos terrestres. Não prescindiam dos frutos da palmeira, da castanha do pará e de várias espécies de leguminosa.” (FUNARI, Pedro Paulo. NOELLI, Franciso Silva. “Pré História do Brasil” – Ed. Contexto.).

 

Quando se discute sobre a história dos povos que habitavam o continente americano, antes da chegada de Cristóvão Colombo em 1492, um primeiro problema inicial é definir alguns conceitos explicativos.

 

Tradicionalmente, a partir do século XIX, surgiu na Europa a noção da História como uma ciência voltada para o estudo do passado a partir dos documentos escritos. Considerando assim a História como produto das fontes textuais, convencionou-se que a invenção da escrita corresponderia ao início da História.

 

O problema é que a escrita começou a ser usada em diferentes momentos ao longo do globo, há 5 mil anos no Egito e na Mesopotâmia e há 3 mil anos na Grécia.

 

No caso da américa pré-colombiana, o conceito é ainda mais problemático em se considerando que os Maias, civilização que se desenvolveu no México e na América Central, possuíam uma escrita muito elaborada, embora apenas utilizada em contextos religiosos.

 

Igualmente, os Incas do Peru utilizavam cordas para registrarem os eventos, chamadas quipos.

 

Os povos nambiquaras e tupis também tinham sistemas de registros comparáveis à escrita na forma de pinturas corporais, adereços e decorações de objetos.

 

Também é certo que no continente americano, a definição da Pré-história esteve mais referendada na chegada dos europeus ao continente – os próprios europeus chamavam a sua presença na América de “história”, reservando todo o período anterior à “pré-história”. Há um fundo de verdade neste ponto, ao menos no que se refere à constituição do Brasil – sua formação inicial efetivamente é produto da expansão marítima portuguesas, e sua nacionalidade decorre da constituição de um povo original, oriundo e formado por índios, brancos e negros. Não faz sentido falar em Brasil antes de 1500.

 

Podemos, enfim, dizer que a Pré-história trata dos últimos 100 a 200 mil anos, período em que existe a espécie humana (Homo sapiens sapiens), e também dos milhões de anos anteriores em que existiram os hominídeos, espécies que antecederam à nossa: ou seja, 99,9% do nosso passado, portanto.

 

A despeito dos estudos da história nacional e no ensino médio e universitário se concentrar na fase das primeiras civilizações em diante e a partir da chegada dos portugueses no Brasil, este período de “História” corresponde a 0,1% do tempo de existência do homem.

 

A crítica acerca da terminologia de “índio” são conhecidas.

 

Trata-se de palavra que expressa o equívoco dos colonizadores espanhóis que ao tocarem na América, pensaram ter chegado nas Índias. Contudo, o conceito de “povos originários” também não é rigorosamente correto. Existe um consenso entre os estudiosos que efetivamente a origem da espécie humana partiu da África para se expandir por todo o globo. Os vestígios humanos no continente americano datam de apenas 12 mil anos, ou seja, período relativamente recente, ainda que novas pesquisas tendem a apontar para períodos anteriores.  A rigor, os “povos originários” na verdade eram oriundos da África, Europa e Austrália.

 

Também existe entendimento fundamentado de que a ocupação da América decorreu de uma expansão que partiu do estreito de Bering que liga os oceanos Pacífico e Ártico, entre a Rússia e o Alaska. Contudo, hoje não se descarta que parcela destas populações teriam migrado através da navegação até o continente americano, ainda que pouco se sobre isto, por enquanto.

 

Quando os portugueses chegaram no Brasil, estima-se que existiam por aqui cerca de 8 milhões de indígenas. Aproximadamente 80% destas populações morreram, não diante de um “genocídio” perpetrado por vingativos colonizadores, mas por motivos de doença, considerando que as populações da América não tinham contato com patologias trazidas pelos europeus.

 

Os estudos apontam cada vez mais para uma grande diversidade cultural daquelas populações, muitas vezes em estágios evolutivos bastante distintos. Uma estimativa aponta para a existência de 1200 línguas diferentes faladas em território brasileiro, quando da chegada dos portuguesas.

 

Os traços físicos dos índios de uma certa maneira lembram os traços dos povos do oriente, razão pela qual tradicionalmente entende-se que se trata de população com ancestralidade comum mongoloide.  

 

Inicialmente, os povos que ocuparam o território brasileiro eram do tipo nômade e caçadores.

 

Sobreviviam da pesca e da caça de mamíferos (antas, capivaras, veados, etc), roedores e répteis.

 

Por volta de 6 mil anos atrás, há o desenvolvimento, a partir de populações do amazonas, da agricultura, que se expande por todo o continente. Trata-se de um marco de desenvolvimento, já que a agricultura envolve o domínio de novas tecnologias, conhecimento de plantas, solo e meio ambiente, aumento populacional, circunscrição territorial, e maior complexidade das relações sociais, culturais e políticas.

 

Eram plantadas turberosas, como a mandioca, a batata doce, o taiá, o cará e a aratuta, e graníferas, como o milho, o feijão, a quina, o amendoim, o pimentão e a pimenta. Havia o cauim, bebida alcóolica, utilizada dentro ou fora de eventos religiosos, além da utilização da plantas alucinógenas.  

 

Pode-se dizer que os estudos da Pré-história do Brasil ainda são embrionários, havendo mais estimativas e deduções, do que fatos incontroversos sobre a origem e trajetória dos povos anteriores à chegada dos portuguesas. Consta que existem no Brasil apenas 300 arqueólogos atuando neste momento no país, sendo absolutamente desconhecida a maior parte dos sítios arqueólogos do país. As universidades brasileiras não oferecem cursos de arqueologia, e os cursos de História pouco discutem esta disciplina.

 

Por outro lado, o desenvolvimento da genética, da linguística e da físico-química apontam novos horizontes quanto às descobertas de vestígios e análises daqueles povos a partir da cerâmica, das pedras, das pinturas de cavernas e dos vestígios ósseos, combinados com as fontes históricas escritas a partir do século XVI.

 

Bibliografia

FUNARI, Pedro Paulo. NOELLI, Franciso Silva. “Pré História do Brasil” – Ed. Contexto.


Quadro - "Índios adorando o Sol" - François Auguste Biard - 1860-1861 - Pinacoteca do Estado de São Paulo. 



sábado, 30 de abril de 2022

BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ BONIFÁCIO

 BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ BONIFÁCIO




 

“Dirão talvez que, se favorecerdes a liberdade dos escravos, será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para o bem de todos; e qual o bem que tira o escravo de perder todos o seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é, pois, o direito de propriedade que querem defender; é o direito da força. Se a lei deve defender a propriedade muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens que não pode ser propriedade de ninguém”. José Bonifácio.

 

No ano do bicentenário da independência do Brasil, cresce o interesse em se conhecer  a trajetória de vida do principal arquiteto da emancipação política do país, José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como o Patriarca da independência.  

 

Não seria um exagero dizer que o grande político e cientista santista fora de certa maneira o pai  e mentor do nosso Sete de Setembro.  

 

Sua intervenção se deu dentro de uma conjuntura política de caráter revolucionário, desde a vinda da Família Real portuguesa em 1808, das Cortes de Lisboa com suas pretensões (ainda que dissimuladas) de recolonização do Brasil e a decisão de D. Pedro I em não retornar à Portugal (dia do fico em 09/01/1822) confrontando as determinações das Cortes,  culminando na proclamação da independência no Sete de Setembro e os conflitos militares (esquecidos pelos historiadores) que se abriram, com principais focos de na Bahia, no Maranhão e no Pará.

 

José Bonifácio, sete dias após a determinação de D. Pedro em não retornar à Portugal, foi nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros.

 

Era o principal conselheiro político daquele que seria o primeiro imperador do Brasil.

 

D. Pedro I era então jovem de vinte e poucos anos, que passara a maior parte da sua vida no Brasil, sem grande formação intelectual, menos atento aos livros e mais atento às aventuras de rua do Rio de Janeiro, mas altivo e muito mais corajoso que seu antecessor D. João IV.

 

Via em José Bonifácio como uma espécie de pai, e por intermédio de seu principal assessor, conseguiu-se a proeza de promover a independência e fundar um governo nacional resguardando a integridade territorial continental do país, impedindo a secessão das províncias e coordenando os impulsos revolucionários num sentido construtivo, nos marcos de uma monarquia constitucional.

 

A despeito das turbulências que se seguiram ao Sete de Setembro de 1822, com a dissolução da Assembleia Constituinte dois meses após a sua constituição, as guerras de independência, a luta pelo reconhecimento internacional da emancipação e a outorga da nossa primeira Constituição em 1824, não tivemos no Brasil a situação de fragmentação política em torno de movimentos caudilhistas e republicanos, como se deu na América Espanhola, o que daria contornos ainda mais inacreditáveis ao processo de independência do Brasil. Certamente, esta conquista não seria possível sem a qualidade intelectual do principal dirigente da independência em combinação com um Imperador enérgico e disposto à luta.  

 

Quando Bonifácio tomou parte dirigente no processo de emancipação política do Brasil, já era um senhor de 60 anos de idade, formado em Coimbra em Direito, Matemática e Filosofia, dedicado durante anos à mineralogia, química e botânica. Depois de formado, participou de uma expedição científica na Europa, para depois ser Chefe da Intendência Geral das Minas de Portugal e Professor de Coimbra. Participava de todos as principais Academias de Ciências da Europa, com amplo reconhecimento no mundo científico. Falava 6 línguas fluentemente e entendia cerca de 12.

 

Não sem razão, um insuspeito historiador estrangeiro que disse que os chamados pais fundadores da independência norte-americana (Thomas Jefferson, George Washington e Benjamin Franklin) eram caipiras semi-letrados perto do patriarca da independência do Brasil.  

 

Depois de conseguir sua dispensa dos serviços públicos em Portugal, já com quase 60 anos, começa sua carreira política assumindo a vice presidência da junta de governo de São Paulo durante o contexto da referida Revolução do Porto de 1820. Neste período, JB e os nacionalistas brasileiros ainda era partidários da manutenção do Reino Unido mantendo a autonomia e as conquistas para o Brasil decorrentes da vinda da Família Real de 1808.

 

De fato, podemos situar a instalação da sede do Império Português como o ponto de partida da nossa independência. Os portos do país, antes totalmente fechados, abriram-se ao comércio universal. Deixou de vigorar o alvará de 5 de Janeiro de 1785, que não permitia a existência de fábricas e indústrias; concederam-se aos estrangeiros que viessem morar no Brasil direitos iguais aos dos portugueses, no tocante a datas de terra por sesmarias; instalaram—se os serviços públicos – repartições e tribunais – indispensáveis ao funcionamento do governo; criou-se o Banco do Brasil; inauguraram-se instituições culturais de várias espécies; em suma, montou-se, toda a estrutura do Estado Brasileiro.

 

JB redigiu o programa político dos paulistas deputados das cortes de Lisboa. Quando se confirma a intenção das cortes de retirar os avanços do Brasil decorrentes da vinda da Família Real é que fica claro ao grupo a necessidade da independência.

 

Certamente, as ideias políticas do Patriarca eram avançadas para a sua época. Nos anos de 1820, defendia a abolição do tráfico de escravos, que apenas ocorreria em 1850. Defendia igualmente a extinção gradual da escravidão, que só se consumaria em 1888. Propunha a reforma anti-latifundiária da propriedade, a integração do índio à sociedade brasileira e a alteração da sede do Brasil para alguma cidade mais ao interior, possivelmente em Minas Gerais, com a finalidade de resguardar a defesa militar do país.

 

Formado na Universidade de Coimbra logo após as reformas de ensino anti-jesuíticas do Marques de Pombal, vivem na Europa nos anos imediatamente posteriores à grande Revolução Francesa de 1789, havendo muito de influência iluminista no seu pensamento, ainda que mantivesse até o fim uma posição pró monarquia.

 

Quanto ao temperamento, consta que era orgulhos, altivo e em alguns momentos, insolente, especialmente diante da mediocridade intelectual com que teve que lidar quando dos seus dias de ator político e servidor público.

 

E a despeito de ser o brasileiro que mais se empenhou pela Independência do país, o Brasil não exerceu a gratidão que o patriarca merecia. Com a dissolução da assembleia constituinte em novembro de 1823, as inimizades que José Bonifácio granjeou, por sua impopular (do ponto de vista das elites econômicas) defesa dos escravos, fez como que fosse exilado com seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco, obrigados a morar em situação de dificuldades materiais no interior de França.

 

Após seis anos de exílio, retorna ao Brasil e é convidado por D. Pedro I a ser tutor de seus filhos. Contudo, logo voltariam as acusações de subversivo, demagogo e anarquista, razão pela qual a Regência cassou a nomeação de tutor, fazendo com que José Bonifácio terminasse sua vida no retiro em Paquetá, no Rio de Janeiro.

 

Morreria em 1838 aos 75 anos de idade.  

 

Bibliografia

SOUZA, Otávio Tarquínio. “História dos Fundadores do Império do Brasil. V. I. José Bonifácio”. Edições do Senado Federal.

domingo, 10 de abril de 2022

“Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos

 “Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos




 

Resenha Livro -  Rosinha, Minha Canoa – José Mauro de Vasconcelos – Edições Melhoramentos

 

“Antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura mas com muito medo. Queria que todos os meus romances cheirassem a sangue e viessem rotulados com carimbo de: Machos pra Burro. Foi preciso que chegasse aos quarenta anos para perder todo o terror de minha ternura e derramar por minhas mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém para o receber) a simplicidade deste meu livro. Leia-o quem quiser. De uma coisa estou certo: não tenho nada de que me desculpar perante o público. Apresento, pois, ROSINHA, MINHA CANOA.”. José Mauro de Vasconcelos

 

A ternura das personagens, o lirismo e a poesia na forma como a história é contada, e um certo realismo decorrente dos registros e experiências de vida do escritor são algumas marcas presentes dos livros do escritor fluminense José Mauro de Vasconcelos.

 

Filho de pai português e mãe indígena, o escritor apresenta histórias a partir de sua vasta experiência de vida e de viagens pelo Brasil afora, mais do que propriamente por conta de uma formação escolar e acadêmica. Nascido em Bangu em 26 de fevereiro de 1920, passou a infância em Natal/RN, onde se atirava às águas do Potengi, quase na bica do mar, a fim de treinar para as provas de grandes distâncias de natação. Como todas as crianças do lugar, gostava de futebol e de trepar nas árvores.

 

Aos quinze anos de idade saiu de casa para conhecer o mundo. No estado do Rio de Janeiro trabalhou numa fazenda em Mazomba como carregador de banana. Depois, foi viver como pescador no litoral fluminense, onde não se demorou muito, partindo em seguida para Recife. Ali exerceu o cargo de professor primário num núcleo de pescadores.

 

Da capital pernambucana, José Mauro saiu para começar um incessante vai-vem, do Norte ao Sul, e vice-versa, permanecendo um pouco em cada lugar, para em seguida enveredar pelo sertão e viver entre os índios.

 

O artista chegou até a ser artista de filme e de televisão, premiado como melhor artista coadjuvante no filme “Fronteira do Inferno”.

 

O espírito inquieto e a primazia da experiência prática de vida como fonte de seu trabalho literário se revelariam quando José Mauro ganhou bolsa de estudos e foi para a Universidade de Salamanca (Espanha). No entanto, após três dias, deixou os estudos e percorreu a Europa enquanto o dinheiro da bolsa durou.

 

“Rosinha, Minha Canoa” foi publicado pela primeira vez em 1962, seis anos antes do lançamento do mais famoso livro do escritor fluminense, meu “Pé de Laranja Lima”.

 

Nos dois livros, verificamos o lirismo e a visão poética, ora decorrentes da imaginação de uma criança no Meu Pé de Laranja Lima, ora na cabeça do pescador Zé Orocó, tido por seus pares como um louco, por conversar com sua canoa Rosinha.

 

A presença da canoa como meio de travessia de vastos rios nos rincões do Araguaia, a exuberância da floresta e sua diversidade animal, e a íntima conexão do homem com a natureza expressam uma literatura particularmente brasileira, lastreada naquelas vastas viagens realizadas pelo autor pelos rincões do país:

 

“Demorou a chegar a noite. A tarde parecia querer prolongar-se mais do que o habitual. A custo as primeiras asas passaram ruflando em busca dos ninhos; garças brancas retornaram aos bandos; marrecos adejaram resmungando roucamente; colhereiros perderam o tom róseo para se tornarem escurecidos; papagaios faziam uma algavaria dos diabos... Os olhos de Nininha foram-se fechando de tanto esperar. E a noite formada encontrou-a fechando de tanto esperar. E a noite formada encontro-a adormecida em seu sono de inocência e sem sonhos.”.

 

Além da vida de homens, árvores e animais, dotados de mesma importância na história, remeterem ao altos e baixos de uma travessia de rio, verifica-se ao fundo a noção de ciclos – a história do vegetal que inicia como semente, se torna uma exuberante árvore, é cortada pelos índios para se transformar numa canoa, até ser inutilizada pelo tempo, queimada e transformada em cinzas, que serão conduzidas ao chão, iniciando um novo ciclo. Ou Zé Orocó que quando era são estava casado com Madrinha Flor, diante de uma tragédia pessoal, se afasta dos homens para a companhia do Araguaia, dos pássaros e de sua canoa, é capturado e remetido ao Manicômio, para retornar ao sua terra natal, já velho, onde inicia um último ciclo com uma nova égua, também falante e a quem chamaria de Rosinha, Meu Amor.  

 

O tema da loucura é central na história, começando por intrigar um doutor que fica responsável por capturar, Zé Orocó, tido como demente por conversar com plantas e animais, faculdade que adquiriu após conhecer a história de São Francisco de Assis. O pescador é remetido a um manicômio onde aprende, mediante coação, a acreditar que “uma árvore é uma árvore”.

 

No seu último encontro com Rosinha, a canoa lhe diz a inversão de papeis quanto ao tema da loucura:

 

- Então eu ainda sou louco. Louco, tal como um homem que andava com os jornais debaixo do braço, como outro que se zangava toda hora com Deus.

- Louco, você? Só porque consegue entender as árvores ou falar com as coisas? Bobagem! Loucos são os outros homens que perderam a poesia de Deus, que endureceram o coração e nem sequer podem entender os próprios homens. Esses são loucos.

segunda-feira, 21 de março de 2022

DOM QUIXOTE PARA CRIANÇAS

 DOM QUIXOTE PARA CRIANÇAS POR MONTEIRO LOBATO




 

Resenha Livro – “Dom Quixote Para Crianças” – Monteiro Lobato – Ed. LPM

 

“Pedrinho - E isso durou muito tempo?

Dona Benta- Durou, meu filho. Tudo que é errado dura muito. A humanidade é bem isso que a Emília vive dizendo. A história da humanidade não passa de história de horrores, estupidez e erros monstruosos. Hoje por exemplo olhamos com grande superioridade para os antigos, com dó deles, certos de que nossas ideias são certas e hão de durar sempre. Mas nossos bisnetos rir-se-ão das nossas ideias como nós nos rimos das ideias de nossos bisavôs, e os bisnetos dos nossos bisnetos rir-se-ão das ideias dos nossos bisnetos, e assim até o infinito.”

 

 

Quando Monteiro Lobato começou a escrever livros para criança, já havia praticamente publicado quase toda a sua obra para o público adulto.

 

“Urupês”, um livro de sucesso para época que corresponde a coletânea de contos regionalistas, foi publicado ainda em 1918. Já a primeira edição da coleção Sítio do Pica Pau Amarelo correspondente ao livro “O Saci” é de 1921.

 

“Este D. Quixote Para Crianças” é de 1936. Trata-se de uma versão infantil da história do herói de La Mancha contada por Dona Benta, com as intervenções do público, em especial da Emília, a boneca de pano, que se identifica particularmente com o protagonista da história.

 

Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura é o cavaleiro andante, que tipicamente tem a missão de correr o mundo para socorrer donzelas e desagravar os mal feitores.

 

Tido como louco pelo excesso de leitura de livros de cavalarias.

É acompanhado na sua jornada pelo simplório Sancho Pança, o fiel escudeiro que se engaja na aventura pela promessa de, ao fim e ao cabo, ser nomeado governador de sua própria ilha. Em certa passagem diz que a ilha virá no futuro, sem dúvidas, mas as suas costelas ficam pelo meio do caminho.

 

O contraste entre os dois principais personagens é sintetizado por Dona Benta:

 

“Pedrinho – Mas então, vovó, esse Sancho não era nada tolo – disse Pedrinho.

Dona Benta – Era e não era, meu filho. Há no mundo muita gente como Sancho. Ele tinha o sólido bom senso dos homens do povo e todas as qualidades e defeitos do homem do povo, isto é, do homem natural, sem estudos, sem cultura outra além da que recebe do contato com seus semelhantes. Já em Dom Quixote vemos o contrário. Possuía alta cultura. Tinha todas as qualidades nobres e generosas que uma criatura humana pode ter, apenas transtornadas em seu equilíbrio.”

 

Surpreendendo o leitor, quando o simplório Sancho é alçado à condição de governador, se mostra um ótimo e sensato julgador e administrador de conflitos, só não se colocando à altura do cargo quando instado a lutar em campo de batalha contra inimigo externo.

 

Dom Quixote é um livro particularmente adequado para o público infantil pelas possibilidades de reflexão sobre algumas lições de vida subjacentes do texto.

 

Antes de tudo, o herói de La Mancha é um otimista. Nos diversos momentos de apuros afirma que a fortuna sempre deixa uma porta aberta ou que nunca mais estamos mais próximos da vitória quando tudo parece perdido.

 

O cavaleiro andante, ainda que se porte como um nobre, está em íntima conexão com o povo, além de se referir ao dinheiro como “vil-metal”.

 

Como diz o próprio Dom Quixote: “A cavalaria é a mãe da igualdade. Deus exalta o cavaleiro que se humilha.”.  

domingo, 6 de março de 2022

Breves Notas Sobre Alexandre Púchkin

 Breves Notas Sobre Alexandre Púchkin




 

“Na época em que Púchkin nasceu (1799), o czar que reinava sobre a Rússia anda era Paulo I, o filho insano de Catarina II, que viria a ser morto dois anos depois numa conspiração palaciana, da qual tornaria secretamente parte seu filho e sucessor, Alexandre I. Moscou havia se tornado o centro da vida intelectual e artística do país. A alta sociedade, que em São Petersburgo gravitava em volta da Corte, em Moscou, via de regra, entediava-se. Os jovens promissores liam os imitadores russos de Parny, Rousseau, Racine, Voltaire, enquanto as jovens (e velhas) suspiravam com romances sentimentais que apareciam aos montes, todos iguais e de qualidade duvidosa. A mesmice dominava também o cotidiano. De manhã, praticavam equitação e, à noite, em dias certos da semana, quando não havia baile ou carteados, frequentavam salões. Os chefes de família cuidavam da administração de suas propriedades rurais, onde a família passava temporadas anuais, justamente com numerosa criadagem, parentes, servos e agregados. O povo, como sempre, sofria”. (BRNARDI, Aurora. “Púchkin e o Começo da Literatura Rua”. Caderno de Literatura e Cultura Russa. USP).

 

Aleksandr Sergeevich Púchkin é aclamado como o maior poeta russo e fundador da moderna literatura daquele país. Transitou pela poesia lírica e épica, pelo teatro e pelo romance, sendo tradicionalmente relacionado ao movimento romântico, com aproximação do realismo, especialmente nas suas obras mais tardias.

 

Pode-se dizer que sua importância está para literatura Russa de maneira equivalente ao papel de Willian Shakespeare para o teatro Inglês. É tido como iniciador da literatura Russa: inaugurou um novo modelo literário, sem se basear em heranças ou escolas literárias anteriores, posto que inexistentes na Rússia. Ele se inspirava na cultura e na poesia popular medieval russa.

 

O escritor nasceu em 6 de Junho de 1799 em Moscou. Seu pai era um jovem oficial da guarda, mal administrador, colérico e atormentado por dívidas. Sua mãe era neta de Ibraim Hannibal, conhecido como primeiro grande intelectual negro da história do ocidente. Este bisavó de Puchkin, em 1703, foi capturado e vendido ao sultão de Constantinopla, que por sua vez o deu de presente ao czar Pedro, o Grande. O imperador russo adotou Hannibal e o colocou na corte para viver como seu afilhado, posteriormente o enviado para Paris, onde conclui seus estudos, se formando em engenharia militar.

 

Hannibal conheceu em Paris Voltaire, Montesquieu e Didetor, entre outros pensadores, que o chamavam de “estrela negra do iluminismo”.

 

De modo que não é incorreto dizer que o maior dos poetas russos tinha descendência africana!

 

Na biblioteca do pai, Púchkin leu Plutarco, Homero, La Fontaine, Moliére, Corneille, Rancine, Diderot e Voltaire. Seguindo um costume da época, aprendeu francês por meio de seus preceptores, sendo patente a influência da cultura francesa na Rússia, especialmente no período de Catarina II (1762/1796), imperatriz com reputação de mecenas das artes e correspondente dos iluministas Voltaire, Diderot e D’Alambert.

 

Aos quinze anos, quando estudava num Liceu situado numa das fazendas do Czar, Púchkin escreveu os seus primeiros poemas.

 

Após sua formatura, aos 18 anos de idade, passa a residir em São Petersburgo, onde vive uma vida de poeta, que poderíamos hoje denominar de “boêmio”.

 

Granjeava popularidade na capital por conta dos seus poemas, despertando a atenção e vigilância do Czar. Por conta da interceptação de uma carta em que se dizia “ateu” e pela redação de um poema (“Ode à Liberdade”) em que faz menção a tentativa de assassinato do pai do Czar Alexandre I, o poeta foi removido para o Sul da Rússia, numa espécie de exílio, até a morte do referido czar e da ascensão de Nicolau I, que deu anistia ao escritor, mas manteve a vigilância sobre o mesmo.  

 

O conto “A Dama de Espada” é representativo de um estilo literário com certo realismo na descrição das personagens e até mesmo do cenário cultural da Rússia de fins do XVIII e inícios do XIX.

 

Em uma das cenas em que uma condessa solicita de uma criada um livro para ler, fica espantada quando é informada que existem romances russos, indicando também a previsibilidade de romances de folhetim e sentimentais – uma literatura que igualmente estaria presente no Brasil, durante o nosso romantismo, algumas décadas depois.

 

A história relata um segredo guardado por uma Condessa, já idosa, adquirido após ela perder um jogo de cartas e não ter recursos financeiros para quitar sua dívida. Após solicitar ajuda a um amante, ele, ao invés de oferecer dinheiro, lhe revelou um mistério em que bastaria que escolhesse três cartas determinadas, apostasse uma atrás da outra, e todas as três como “sônica” (no jogo francês bassette, carta que ganha ou perde assim que aparece) lhe dariam a vitória.

 

O personagem Herman ao saber do referido segredo, passa a obsessivamente desejar contato com a condessa para, de posse do mistério jamais revelado, conseguir o dinheiro certo na aposta de cartas.

 

Para isso, simula interesse amoroso junto a uma criada da condessa, para conseguir uma entrevista com a velha, requerendo ou mesmo compelindo-a a esclarecer o mistério das cartas.

 

Este personagem Herman aparece como alguém diferenciado logo no início do conto: num salão onde jovens russos apostam, este filho de alemão, com aparência de estrangeiro, apenas observa e se mantem distante das apostas: apostar dinheiro para ele é o mesmo que “sacrificar o indispensável na esperança de obter o supérfluo.”. Se num primeiro momento, esta recusa ao jogo de cartas ao leitor parece sinal de virtude, logo depois verifica-se que Herman, descrito como alguém com “perfil de Napoleão e alma de Mefistófeles” será aquele que levará até as últimas consequências a ambição e ganâncias relacionados às apostas.  




 

Púschkin teve um casamento infeliz, surgindo escândalo de que sua esposa havia o traído, razão pela qual desafiou o desafeto a um duelo, o que ocasionou a sua morte, em fevereiro de 1837.