domingo, 10 de abril de 2022

“Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos

 “Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos




 

Resenha Livro -  Rosinha, Minha Canoa – José Mauro de Vasconcelos – Edições Melhoramentos

 

“Antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura mas com muito medo. Queria que todos os meus romances cheirassem a sangue e viessem rotulados com carimbo de: Machos pra Burro. Foi preciso que chegasse aos quarenta anos para perder todo o terror de minha ternura e derramar por minhas mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém para o receber) a simplicidade deste meu livro. Leia-o quem quiser. De uma coisa estou certo: não tenho nada de que me desculpar perante o público. Apresento, pois, ROSINHA, MINHA CANOA.”. José Mauro de Vasconcelos

 

A ternura das personagens, o lirismo e a poesia na forma como a história é contada, e um certo realismo decorrente dos registros e experiências de vida do escritor são algumas marcas presentes dos livros do escritor fluminense José Mauro de Vasconcelos.

 

Filho de pai português e mãe indígena, o escritor apresenta histórias a partir de sua vasta experiência de vida e de viagens pelo Brasil afora, mais do que propriamente por conta de uma formação escolar e acadêmica. Nascido em Bangu em 26 de fevereiro de 1920, passou a infância em Natal/RN, onde se atirava às águas do Potengi, quase na bica do mar, a fim de treinar para as provas de grandes distâncias de natação. Como todas as crianças do lugar, gostava de futebol e de trepar nas árvores.

 

Aos quinze anos de idade saiu de casa para conhecer o mundo. No estado do Rio de Janeiro trabalhou numa fazenda em Mazomba como carregador de banana. Depois, foi viver como pescador no litoral fluminense, onde não se demorou muito, partindo em seguida para Recife. Ali exerceu o cargo de professor primário num núcleo de pescadores.

 

Da capital pernambucana, José Mauro saiu para começar um incessante vai-vem, do Norte ao Sul, e vice-versa, permanecendo um pouco em cada lugar, para em seguida enveredar pelo sertão e viver entre os índios.

 

O artista chegou até a ser artista de filme e de televisão, premiado como melhor artista coadjuvante no filme “Fronteira do Inferno”.

 

O espírito inquieto e a primazia da experiência prática de vida como fonte de seu trabalho literário se revelariam quando José Mauro ganhou bolsa de estudos e foi para a Universidade de Salamanca (Espanha). No entanto, após três dias, deixou os estudos e percorreu a Europa enquanto o dinheiro da bolsa durou.

 

“Rosinha, Minha Canoa” foi publicado pela primeira vez em 1962, seis anos antes do lançamento do mais famoso livro do escritor fluminense, meu “Pé de Laranja Lima”.

 

Nos dois livros, verificamos o lirismo e a visão poética, ora decorrentes da imaginação de uma criança no Meu Pé de Laranja Lima, ora na cabeça do pescador Zé Orocó, tido por seus pares como um louco, por conversar com sua canoa Rosinha.

 

A presença da canoa como meio de travessia de vastos rios nos rincões do Araguaia, a exuberância da floresta e sua diversidade animal, e a íntima conexão do homem com a natureza expressam uma literatura particularmente brasileira, lastreada naquelas vastas viagens realizadas pelo autor pelos rincões do país:

 

“Demorou a chegar a noite. A tarde parecia querer prolongar-se mais do que o habitual. A custo as primeiras asas passaram ruflando em busca dos ninhos; garças brancas retornaram aos bandos; marrecos adejaram resmungando roucamente; colhereiros perderam o tom róseo para se tornarem escurecidos; papagaios faziam uma algavaria dos diabos... Os olhos de Nininha foram-se fechando de tanto esperar. E a noite formada encontrou-a fechando de tanto esperar. E a noite formada encontro-a adormecida em seu sono de inocência e sem sonhos.”.

 

Além da vida de homens, árvores e animais, dotados de mesma importância na história, remeterem ao altos e baixos de uma travessia de rio, verifica-se ao fundo a noção de ciclos – a história do vegetal que inicia como semente, se torna uma exuberante árvore, é cortada pelos índios para se transformar numa canoa, até ser inutilizada pelo tempo, queimada e transformada em cinzas, que serão conduzidas ao chão, iniciando um novo ciclo. Ou Zé Orocó que quando era são estava casado com Madrinha Flor, diante de uma tragédia pessoal, se afasta dos homens para a companhia do Araguaia, dos pássaros e de sua canoa, é capturado e remetido ao Manicômio, para retornar ao sua terra natal, já velho, onde inicia um último ciclo com uma nova égua, também falante e a quem chamaria de Rosinha, Meu Amor.  

 

O tema da loucura é central na história, começando por intrigar um doutor que fica responsável por capturar, Zé Orocó, tido como demente por conversar com plantas e animais, faculdade que adquiriu após conhecer a história de São Francisco de Assis. O pescador é remetido a um manicômio onde aprende, mediante coação, a acreditar que “uma árvore é uma árvore”.

 

No seu último encontro com Rosinha, a canoa lhe diz a inversão de papeis quanto ao tema da loucura:

 

- Então eu ainda sou louco. Louco, tal como um homem que andava com os jornais debaixo do braço, como outro que se zangava toda hora com Deus.

- Louco, você? Só porque consegue entender as árvores ou falar com as coisas? Bobagem! Loucos são os outros homens que perderam a poesia de Deus, que endureceram o coração e nem sequer podem entender os próprios homens. Esses são loucos.

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