“Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos
Resenha Livro - Rosinha, Minha
Canoa – José Mauro de Vasconcelos – Edições Melhoramentos
“Antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura mas
com muito medo. Queria que todos os meus romances cheirassem a sangue e viessem
rotulados com carimbo de: Machos pra Burro. Foi preciso que chegasse aos
quarenta anos para perder todo o terror de minha ternura e derramar por minhas
mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém para o receber) a
simplicidade deste meu livro. Leia-o quem quiser. De uma coisa estou certo: não
tenho nada de que me desculpar perante o público. Apresento, pois, ROSINHA,
MINHA CANOA.”. José Mauro de Vasconcelos
A ternura das personagens, o lirismo e a poesia na forma como a
história é contada, e um certo realismo decorrente dos registros e experiências
de vida do escritor são algumas marcas presentes dos livros do escritor fluminense
José Mauro de Vasconcelos.
Filho de pai português e mãe indígena, o escritor apresenta histórias a
partir de sua vasta experiência de vida e de viagens pelo Brasil afora, mais do
que propriamente por conta de uma formação escolar e acadêmica. Nascido em
Bangu em 26 de fevereiro de 1920, passou a infância em Natal/RN, onde se atirava
às águas do Potengi, quase na bica do mar, a fim de treinar para as provas de
grandes distâncias de natação. Como todas as crianças do lugar, gostava de futebol
e de trepar nas árvores.
Aos quinze anos de idade saiu de casa para conhecer o mundo. No estado
do Rio de Janeiro trabalhou numa fazenda em Mazomba como carregador de banana.
Depois, foi viver como pescador no litoral fluminense, onde não se demorou
muito, partindo em seguida para Recife. Ali exerceu o cargo de professor primário
num núcleo de pescadores.
Da capital pernambucana, José Mauro saiu para começar um incessante
vai-vem, do Norte ao Sul, e vice-versa, permanecendo um pouco em cada lugar,
para em seguida enveredar pelo sertão e viver entre os índios.
O artista chegou até a ser artista de filme e de televisão, premiado
como melhor artista coadjuvante no filme “Fronteira do Inferno”.
O espírito inquieto e a primazia da experiência prática de vida como
fonte de seu trabalho literário se revelariam quando José Mauro ganhou bolsa de
estudos e foi para a Universidade de Salamanca (Espanha). No entanto, após três
dias, deixou os estudos e percorreu a Europa enquanto o dinheiro da bolsa
durou.
“Rosinha, Minha Canoa” foi publicado pela primeira vez em 1962, seis
anos antes do lançamento do mais famoso livro do escritor fluminense, meu “Pé
de Laranja Lima”.
Nos dois livros, verificamos o lirismo e a visão poética, ora
decorrentes da imaginação de uma criança no Meu Pé de Laranja Lima, ora na
cabeça do pescador Zé Orocó, tido por seus pares como um louco, por conversar
com sua canoa Rosinha.
A presença da canoa como meio de travessia de vastos rios nos rincões do
Araguaia, a exuberância da floresta e sua diversidade animal, e a íntima
conexão do homem com a natureza expressam uma literatura particularmente
brasileira, lastreada naquelas vastas viagens realizadas pelo autor pelos
rincões do país:
“Demorou a chegar a noite. A tarde parecia querer prolongar-se mais do
que o habitual. A custo as primeiras asas passaram ruflando em busca dos
ninhos; garças brancas retornaram aos bandos; marrecos adejaram resmungando roucamente;
colhereiros perderam o tom róseo para se tornarem escurecidos; papagaios faziam
uma algavaria dos diabos... Os olhos de Nininha foram-se fechando de tanto
esperar. E a noite formada encontrou-a fechando de tanto esperar. E a noite
formada encontro-a adormecida em seu sono de inocência e sem sonhos.”.
Além da vida de homens, árvores e animais, dotados de mesma
importância na história, remeterem ao altos e baixos de uma travessia de rio,
verifica-se ao fundo a noção de ciclos – a história do vegetal que inicia como
semente, se torna uma exuberante árvore, é cortada pelos índios para se
transformar numa canoa, até ser inutilizada pelo tempo, queimada e transformada
em cinzas, que serão conduzidas ao chão, iniciando um novo ciclo. Ou Zé Orocó
que quando era são estava casado com Madrinha Flor, diante de uma tragédia
pessoal, se afasta dos homens para a companhia do Araguaia, dos pássaros e de
sua canoa, é capturado e remetido ao Manicômio, para retornar ao sua terra
natal, já velho, onde inicia um último ciclo com uma nova égua, também falante
e a quem chamaria de Rosinha, Meu Amor.
O tema da loucura é central na história, começando por intrigar um
doutor que fica responsável por capturar, Zé Orocó, tido como demente por
conversar com plantas e animais, faculdade que adquiriu após conhecer a
história de São Francisco de Assis. O pescador é remetido a um manicômio onde
aprende, mediante coação, a acreditar que “uma árvore é uma árvore”.
No seu último encontro com Rosinha, a canoa lhe diz a inversão de
papeis quanto ao tema da loucura:
- Então eu ainda sou louco. Louco, tal como um homem que andava com os
jornais debaixo do braço, como outro que se zangava toda hora com Deus.
- Louco, você? Só porque consegue entender as árvores ou falar com as
coisas? Bobagem! Loucos são os outros homens que perderam a poesia de Deus, que
endureceram o coração e nem sequer podem entender os próprios homens. Esses são
loucos.
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