"O Missionário" – Inglez de Souza
Resenha Livro – O Missionário – Inglez de Souza – Valer Editora –
2010
“O movimento da fauna amazonense arrancara Padre Antônio à meditação a
que se queria entregar, sujeitando-o todo à encantadora contemplação das maravilhas
da natureza selvagem, naquela esplêndida manhã de agosto, em meio do largo rio que
se desdobrava, a perder de vista, numa luzente toalha em que se refletia, como
em puríssimo cristal, o azul dum céu sem nuvens, sombreado pelas ramagens de
árvores seculares, e riscado em diagonal pela linha de voo de pássaros desconhecidos.
As recordações da meninice assaltaram-no de novo, eram a mais grata memória do
seu cérebro, evocadas sempre pelo espetáculo da natureza virgem. E vira-se a
percorrer os campos incultos da fazenda, a aventurar-se numa pequena canoa pelo
Amazonas fora, quando gostava de supor-se perdido na vastidão do rio, e a
imaginação sonhava uma vida acidentada de combates com feras e de luta com os
elementos na solidão das águas e das matas. Agora, via quase realizado o seu
sonho de menino, em pleno deserto, indo talvez perder-se em paragens desconhecidas,
dormir ao relento, matar a fome nos maracujás silvestres e nas castanhas
oleosas, talvez morrer às mãos dos índios do sertão, que não teriam pena da sua
mocidade e gentileza. Mas em todo o caso, ia saciar a alma de solidão e de
liberdade, gozar talvez a inefável delícia de sentir-se só num grande país, de
poder entregar-se desassombradamente ao enlevo dos seus queridos pensamentos
íntimos, sem receio de olhares indiscretos nem de interrupções importunas.”.
Herculano Marcos Inglez de Sousa nasceu na cidade de Órbidos, no Pará
no ano de 1853. Fez seus estudos secundários no Maranhão e iniciou o curso de
Direito na Faculdade de Recife.
Por conta da mudança de sua família para cidade de Santos em São
Paulo, Inglez de Souza terminou a graduação na Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco, no ano de 1876.
Positivista e republicano, fez política durante o II Império,
alcançando a presidência dos estados de Sergipe e do Espírito Santo, além de
ministrar curso de Direito Comercial na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.
Comumente, diz-se que Aluísio de Azevedo, por meio dos romances “O Mulato”
(1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890), teria sido o precursor do
movimento literário naturalista no Brasil.
Contudo, é certo que ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o
romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que pode ser situado como o marco
inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois
trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos
Amazônicos” de 1893.
De fato, as datas de publicação dos primeiros romances do escritor
paraense fazem-no contemporâneo de outros escritores regionalistas, mas ainda
presos ao romantismo literário, como Visconde de Taunay. Ainda que as descrições
da floresta, da fauna, dos rios e dos bichos ainda tenha traços românticos,
ocupando boa parte da exposição, em Inglez de Souza já se prenuncia a ideia de o
meio social e as condições naturais serem os fatores condicionantes da atuação
das personagens.
Em outras palavras, em Inglez de Souza é possível se verificar o
determinismo geográfico e biológico estabelecendo as relações de causalidade
nas escolhas e ações humanas, sempre como fator preponderante em relação ao
livre arbítrio.
Este determinismo é ressaltados n’o Missonário no protagonista do romance,
Padre Antônio de Moraes.
Nascido numa cidade longínqua do amazonas, filho de um matuto que
oprime a mulher, bate nos filhos e se relaciona sexualmente com as escravas da
fazenda, criado de forma livre em meio a uma natureza exuberante, Antônio manteria
em sua vida adulta os traços de personalidade que entrariam posteriormente em
confronto com as rígidas regras morais de um clérigo.
As heranças hereditárias, o meio social e até mesmo as condições
ambientais criariam as condições para que o Padre se lançasse na aventura de catequizar
índios selvagens mundurucus, menos por convicção religiosa e mais por uma busca
de retomar a liberdade perdida da infância por meio de uma aventura na selva,
pela vaidade de quem busca firmar seu nome na sociedade amazonense e pela rebeldia
diante do monotonia de sua rotina como sacerdote de um minúsculo vilarejo no
interior do Pará, denominado Silves.
E estes predicados igualmente fariam com que o padre se desviasse da
sua missão original para ceder ao ímpeto sexual e desvirginar Clarinha, uma
cabocla de 15 anos, por sinal, neta de índia que igualmente mantivera relação clandestina
com outro padre evangelizador.
“Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupa
o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal
contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a
crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo
desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o
devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por
instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação
superficial não soubera subjulgar.”.
O viés cientificistas nítido dos trabalhos naturalistas, decorrentes
da influencia do darwinismo social, do determinismo social e geográfico e do
positivismo com o seu enquadramento racional e esquemático da sociedade, torna
incompatível uma comparação de “O Missionário” com outro romance c que
igualmente trata da devassidão de clérigos, no caso “O Crime do Padre Amaro” (1875)
do escritor Eça de Queiroz.
No caso do romance português, estamos diante de uma crítica social e
radical da Igreja Católica de Portugal, dentro dos quadrantes do emergente
movimento realista, em oposição e em combate à tradição romântica. Os pecados
de Padre Amaro decorrem do livre arbítrio e da falência moral das instituições.
No caso do romance do escritor paraense, a mesma devassidão é antes de
tudo uma fatalidade, condicionada pelo atraso social da região amazônica, por uma
educação religiosa inconsistente e por condições climáticas e hereditárias que
facilitam a concupiscência e o individualismo. Uma fatalidade tal qual os ciclos da natureza,
repetindo-se com o Padre Antônio o que ocorrera com os outros sacerdotes que o
antecederam na missão de evangelizar no amazonas: o relacionamento pecaminoso
com as mulheres do sertão e a constituição clandestina de famílias.
BIBLIOGRAFIA
BOSI,
Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cutrix. 2021.
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