domingo, 22 de novembro de 2020

Homens e Coisas do Partido Comunista

"Homens e Coisas do Partido Comunista" - Jorge Amado



É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações da obras no teatro, no cinema e na televisão.

 

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos. Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

 

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm.  

 

Este aspecto militante da primeira fase da obra de Jorge Amado está obviamente relacionada com as convicções políticas do escritor. Filho de latifundiários baianos, Jorge Amado se aproxima das idades comunistas quando vem ao Rio de Janeiro estudar direito na Faculdade Nacional na década de 1930. Naquele período turbulento, dentro do contexto da Revolução que colocara abaixo a Primeira República, Jorge Amado envolveu-se com discussões sobre política, arte e cultura, pelo jornalismo. Tirou diploma de bacharel no ano de 1935, mas jamais exerceria a advocacia.

 

Trabalhou como jornalista e posteriormente mudou-se à São Paulo.

 

É no contexto do pós guerra, em 1945, quando pela primeira vez o Partido Comunista Brasileiro poderia realizar suas reuniões fora da clandestinidade imposta de maneira praticamente ininterrupta desde sua fundação em 1922, que Jorge Amado escreveu o seu hoje esquecido “Homens e Coisas do Partido Comunista”.

 

Este pequeno retrato do movimento comunista brasileiro de meados do século XX foi aparentemente esquecido pelos editores de Jorge Amado. O livro, em todo caso, está disponível para a leitura pela internet pelo link: https://www.marxists.org/portugues/amado/1946/homens/index.htm

 

A narrativa começa descrevendo a instalação da primeira sede legal do Partido Comunista  em 11 de Junho de 1945, na Rua da Glória, em São Paulo.


“Este foi um dia de festa, destas festas tão felizes que recordam natais familiares, as comemorações mais íntimas de parentes que se ama. Era como a lua de mel do povo com o seu Partido. Lágrimas e risos, e gente, gente, muita gente, operários vindos de todo o lado, querendo entrar custasse o que custasse, mesmo que fosse ‘só para dar uma espiada’, como me afirmavam jovens tecelões que forçavam a porta sem passagem. Estas festas assim vão se repetir agora no Brasil”.

 

Esta euforia sinalizava bem a importância e respeito granjeado pelo comunismo e pela União Soviética após a II Guerra Mundial. O exército vermelho ao destruir militarmente o nazifascismo despertou o interesse e a simpatia de milhões de trabalhadores em todo o mundo: no pós II guerra, pela segunda vez no século XX, o capitalismo ficava por um triz.

 

Neste contexto de fortalecimento das aspirações pela democracia e contra o fascismo, o PCB pôde participar das eleições na constituinte de 1945.

 

O PCB chegou a ser a quarta maior força política da Assembleia Constituinte de 1946. Alcançou cerca de 8,6% dos votos válidos: sua bancada era integrada por 1 senador e 15 deputados, totalizando 4,7% dos 338 constituintes (computados titulares e suplentes) que participaram do processo de elaboração constitucional[1].


O PCB elegeu parlamentares em seis unidades da federação (Bahia, Pernambuco, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul). O próprio Jorge Amado foi eleito por São Paulo. Carlos Marighella foi eleito pela Bahia. Gregório Bezerra foi eleito por Pernambuco. Luiz Carlos Prestes foi eleito senador pelo Rio de Janeiro, então capital do país. Pelo mesmo Rio de Janeiro, foi eleito Maurício Grabois, amigo pessoal de Jorge Amado, que morreria sexagenário, de armas em punho, na Guerrilha do Araguaia.

 

No “Homens e Coisas do Partido Comunista”, Jorge Amado lança luz sobre militantes comunistas hoje desconhecidos mesmo do público mais especializado como Giocondo Dias, o operário Mário Scott e Ramiro, um jovem militante do bairro de São Miguel em São Paulo. O escritor rejeita um culto de personalidade que costuma estar associado ao pensamento comunista da época, diz que é mais difícil viver como um revolucionário do que morrer gloriosamente como tal:

 

"Não quero vos falar apenas dos grandes sacrifícios, das torturas  nas prisões, dos homens queimados a maçarico, das unhas arrancadas, a torquês. Quero falar também dessas pequenas coisas cotidianas, ignoradas e persistentes, desses sacrifícios que quase não se contam e no entanto são tão úteis para a construção das Revoluções e do Partido quanto a trágica condição dos presos, dos emparedados e dos assassinados. Um dia o mestre disse que é bem mais fácil morrer pela Revolução do que viver pela Revolução. Há os que morrem heróis só porque sentiram a vibração de um momento e se jogaram numa trincheira. Muitos destes talvez não resistissem a um mês de vida ilegal, de diária miséria, de trabalho diário, de cabeça contra a parede, tendo que romper o muro da reação e do fascismo com os pobres punhos débeis.”    

 

Dissemos que tradicionalmente se divide a produção literária de Jorge Amado em duas fases. A primeira fase se relaciona com a visão social e política comunista do autor. Consta que um evento teria afastado Jorge Amado daquelas ideias políticas: as denúncias de Nikita Khrushchov sobre o estalinismo no XX Congresso do PCUS no ano de 1956.


São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966). O que não significa que não deixa de merecer interesse esta obra mais tardia: há em algumas delas algo de um realismo fantástico com uma continuação no enaltecimento geral da cultura popular, visto na interessantíssima novela “A morte e a morte de Quincas Berro d’Água” de 1959, talvez a mais bem escrita novela da literatura brasileira desde “O Alienista” de Machado de Assis. Em qualquer caso, trata-se de uma obra, seja com maior ou menor conotação política, imprescindível para se conhecer o Brasil e seu povo. Conhecer os humildes em sua intimidade, com as suas contradições, sem com isso deixar de acreditar no seu protagonismo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Helenira Resente e a Guerrilha do Araguaia

 

Helenira Resente e a Guerrilha do Araguaia

 




“Apesar de esquecido pela maioria, o nome de Helenira está gravado na memória do povo pobre de Faveira, Caianos e Gameleira, municípios localizados no Estado do Pará e no médio Tocantins, onde se desenvolveu a Guerrilha do Araguaia, o maior foco de resistência à ditadura no Brasil. Helenira Resende foi uma das mais conhecidas combatentes desse movimento que atuou na selva amazônica e travou três grandes combates contra as tropas do governo. Sua coragem, disciplina e bravura fizeram com que ela chegasse a ser vice comandante de um destacamento guerrilheiro. Helenira ressaltou também o papel da mulher brasileira na luta pela liberdade”. Bruno Ribeiro

 

A guerrilha do Araguaia, situada no sul do Pará no meio da floresta amazônica, foi o mais longo episódio de enfrentamento armado à ditadura militar brasileira, constituída no ano de 1964.

 

O PCdoB realizou o seu IV congresso já no ano de 1966, quando a maioria do partido apoiou a tese da luta armada para derrubar a ditadura.

 

Os principais dirigentes do PCdoB eram João Amazonas e Maurício Grabois.  

 

João Amazonas foi feito comandante em chefe da guerrilha: quando morreu em 2002 foi feita a sua vontade de ter suas cinzas depositadas no Araguaia. Maurício Grabois, que já havia participado do levante comunista de 1935 e foi deputado constituinte em 1946, participou pessoalmente da guerrilha, já  sexagenário, e tombou com armas nas mãos no dia 25 de Dezembro de 1973.

 

Participaram da Guerrilha do Araguaia 69 militantes do PCdoB e 30 camponeses apoiadores do movimento. Dos participantes, apenas três saíram vivos, entre eles o futuro dirigente petista José Genoíno. Do lado do exército foram 16 o número de baixas oficiais.

 

Enquanto grupos como a ALN de Marighella, o MR-8, a VPR e VAR-Palmares optaram pela luta nos centros urbanos, o PCdoB tinha uma tática diferente: acreditavam que o melhor caminho era iniciar uma luta de longa duração, numa área de difícil acesso, afastada dos grandes centros urbanos.  

 

É importante lembrar que a Revolução Cubana, baseada na guerrilha camponesa desde a Sierra Maestra, promovia uma significativa influencia na consciência daqueles militantes de esquerda. A experiencia vietnamita, também baseada na guerrilha rural, também contava bastante. A ideia não era propriamente a de desencadear desde o início uma luta armada contra o estado desde as distantes florestas amazônicas. Os militantes PCdoB tinham a noção de que deveriam começar se instalando nesta região e desenvolver um trabalho paciente de mobilização e esclarecimento da população local, de forma a ganha-la aos poucos para a guerrilha.

 

Outro ponto a ser destacado: as guerrilhas foram o resultado direto da violência do regime e não o contrário.

 

O local escolhido pelo partido era inóspito, distante e habitado por camponeses extremamente pobres. Os militantes acreditavam que nestas circunstâncias seria mais fácil conquistar o apoio do povo para uma luta que viria a seguir.

 

A concepção que orientava o Partido era de que a guerra revolucionária só seria possível se um trabalho em longo prazo fosse feito com as massas. Ho Chi-minh, o grande revolucionário vietnamita, era citado nas reuniões: ´É preciso comer, trabalhar e viver com o povo”. Só assim, acreditavam os companheiros, eles conquistariam a confiança da população. Uma confiança que entre os camponeses só podia vir de ações concretas de exemplos diários, e não de discursos ideológicos. Apesar de se diferenciarem dos moradores locais pela aparência e pelo modo de falar, os guerrilheiros – chamados de “paulistas” pela população – não demoraram a se adaptar à vida no interior”. Bruno Ribeiro

 

Helenira Resende foi uma das primeiras militantes a chegar na região designada pelo partido, em 1969. Tinha então 25 anos de idade e alguma experiencia militante atrás de si. Foi eleita vice presidente da UNE no histórico congresso de Ibiúna no ano de 1968. Dois dias após o início do congresso, a polícia cercou a fazenda onde ocorria o evento e prendeu 800 estudantes, entre eles, Helenira. Foi transferida para o odioso Departamento de Ordem Política e Social (DOPs), na região da Luz, em São Paulo. Foi interrogada e torturada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mesmo que chefiou a captura e assassinato de Carlos Marighella.   

 

Saiu da prisão e ato contínuo entrou na clandestinidade.

 

Um livro que marcou aquela geração de jovens dispostos a pegar em armas contra a ditadura foi o “Mini Manual do Guerrilheiro Urbano” de Carlos Marighella. Como se sabe, trata-se de um período posterior à ruptura do dirigente baiano com o PCB: igualmente influenciado pelas vitoriosas revoluções em Cuba e China (Marighella esteve pessoalmente nos dois países), rompeu com a direção do maior partido de esquerda brasileiro da época, suscitando críticas relacionadas ao alinhamento irrestrito dos comunistas com figuras burguesas como Goulart, bem como denunciando a  confiança despropositada na legalidade e no dispositivo militar.

 

Palavras como estas eram marcantes para Helenira e outros jovens de sua geração:

 

“O guerrilheiro urbano não é um homem de negócios em uma empresa comercial, nem é um artista numa obra. A guerrilha urbana, assim como a guerrilha rural, é uma promessa que o guerrilheiro se faz a si mesmo. Quando já não pode fazer frente às dificuldades, ou reconhece que lhe falta paciência para esperar, então é melhor entregar seu posto antes de trair sua promessa, já que lhe faltam as qualidades básicas necessárias para ser um guerrilheiro”. Carlos Marighella. 

 

Como dizíamos, a intenção dos guerrilheiros era instalar bases nas áreas rurais e desenvolver um trabalho local de conscientização antes de iniciar o enfrentamento armado com a ditadura. Era certo para os militantes e para a direção do partido que não seria possível uma vitória sem o apoio das massas. Contudo, o processo de trabalho junto ao povo estava apenas no seu início quando o movimento foi descoberto pelos militares. Tiveram que iniciar a luta em condições desfavoráveis.

 

Em 12/04/1972 o exército chegou no Araguaia. Foram ainda assim necessárias 3 grandes ofensivas até o completo aniquilamento da guerrilha, contando com helicópteros e aviões que bombardeavam a área com napalm fornecido pelos EUA. Na terceira campanha de setembro de 1973 a março de 1975 as tropas desencadearam uma forte repressão contra as massas, prendendo todos os homens da região, deixando nas roças apenas as crianças e  mulheres. Muitos inocentes foram torturados e mortos.

 

Helenira foi morta em 29/09/1972 pouco antes da terceira ofensiva, enquanto montava guarda na floresta – resistiu aos policiais  a bala, matando um soldado e ferindo um segundo na perna. Foi barbaramente torturada e assassinada com golpes de baioneta na cabeça. Desde então, os seus restos mortais, como o de seus companheiros, jamais foram encontrados.  

 

Sua história, como a da guerrilha do Araguaia, aguarda ser contada ao nosso povo e inserida em definitivo nos livros de história do Brasil. A pequena biografia escrita pelo jornalista Bruno Ribeiro, pela editora expressão popular, é um passo decisivo neste sentido.   

 

 Bibliografia   

 

RIBEIRO, Bruno. “Helenira Resende e a Guerrilha do Araguaia”. Ed. Expressão Popular . 2007.

Notas Sobre Luiz Gama

 

Notas Sobre Luiz Gama




 

“Para o coração não há códigos; e, se a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos, em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”. Luiz Gama

 

Quando Luiz Gama proferiu estas palavras durante um tribunal do Júri na comarca de Araraquara, as palavras provocaram tumulto, a ponto de o juiz determinar a suspensão da sessão.

 

Ex-escravo por 8 anos, alfabetizado aos 17 anos de idade e com conhecimentos jurídicos oriundos de leituras e presença nas aulas de direito da Faculdade de São Paulo na condição ouvinte, Luiz Gama notabilizou-se como precursor do movimento abolicionista no Brasil.

 

Atuava como rábula ou provisionado. No Brasil do século XIX, o rábula era o advogado sem formação acadêmica em Direito, que obtinha autorização junto aos órgãos competentes (judiciário ou o instituto dos advogados), para exercer em primeira instância a postulação em juízo. Luiz Gama atuava em defesa de escravos acusados de crimes ou cativos que postulavam judicialmente a alforria mediante pagamento de indenização.

 

 “Perante o Direito, é justificável o crime de homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”. Esta ideia que ainda nos dias de hoje suscita uma orientação de radicalidade e intransigência políticas  devia certamente deixar assombrados os membros das classes proprietárias e escravistas do Brasil Imperial.

 

O que vale chamar atenção aqui é que Luiz Gama desenvolveu sua luta em prol de na abolição da escravatura e pela república de maneira pioneira, já nos anos de 1850. Nomes como José do Patrocínio, Castro Alves e Joaquim Nabuco apenas ganhariam projeção 30 anos depois. O Brasil seria o último país das Américas a abolir a escravidão no ano de 1888 – nos livros de história ficou dito que a abolição foi uma concessão generosa da Princesa Isabel, quando é certo que a abolição da escravatura era uma necessidade frente ao risco de uma insurreição popular que colocasse em xeque a dominação da classe proprietária de conjunto.

 

Desde a revolução hatiana em 1791/1804 até a revolta dos malês na Bahia em 1935, já havia sinais de uma situação explosiva. Ações individuais de escravos assassinando seus donos, destruindo fazendas e fugindo do cativeiro eram recorrentes nos tribunais.

 

O medo das elites acerca dos malefícios da escravidão foi objeto de um livro insuspeito de Joaquim Manuel de Macedo chamado “Vítimas Algozes”, que  recomendados a leitura. É uma prova inequívoca de que mesmo um monarquista bastante moderado politicamente já em 1869 defendia ardorosamente a abolição, não pelas razões humanitárias e igualitaristas de Luiz Gama, mas pelos inconvenientes da escravidão para a própria classe dominante brasileira.  

 

VIDA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Não existem muitos livros e fontes biográficas de Luiz Gama. Além da pequena biografia de Mouzar Benedito publicada pela editora Expressão Popular, ficou ao leitor de hoje a carta escrita pelo próprio Luiz Gama ao jornalista e amigo Lúcio de Mendonça, em 25 de Julho de 1880, dois anos antes de morrer.

Instado pelo amigo, Luiz Gama faz um breve relato de sua vida na carta.

 

O documento nos serve de referência neste artigo.  

 

Luiz Gonzada Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia, em 21 de Julho de 1830. Sua mãe era uma negra livre chamada Luíza Mahin. Consta que Luíza era quitandeira e idealista, tendo não só participado mas atuado como uma das lideranças da Revolta dos Malês de 1835. Consta que antes de 1835, a Bahia já havia sido palco de levantes negros em 1807, 1809, 1926 e 1830. A revolta dos Malês foi articulada para estourar em 25 de Janeiro, data do fim do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos. Malê é uma corruptela de “imale” que na língua ioruba significa muçulmano – os males eram negros cultos e rebeldes que não aceitavam passivamente a escravidão. Salvador naquela época tinha 20 mil habitantes e estima-se que da rebelião participavam entre 600 e 1.500 pessoas, entre escravos com ou sem origem muçulmana, além de negros libertos. Contudo, antes de a revolta estourar, houve uma delação e no dia 24 janeiro foi desencadeada a repressão estatal – na luta morreram cerca de 70 negros e 10 soldados.

 

O pai de Luiz Gama era de origem portuguesa:

 

“Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país constituem  perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando seu nome”.

 

Consta que o pai de Luiz Gama, reduzido à pobreza, vendeu o filho como escravo a bordo do patacho “Saraiva” remetido ao Rio de Janeiro. Como foi dito, nosso advogado  era filho de uma negra liberta, o que pela legislação da época, impedia que fosse vendido como escravo. Ainda assim, ficou ilicitamente cativo durante 8 anos. Luiz Gama relata que foi rejeitado por interessados e possíveis compradores pelo fato de ser baiano: influenciados pela revolta de 1835, os proprietários viam os escravos baianos como potencialmente rebeldes e encrenqueiros. Na casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, foi alfabetizado por um hóspede da casa e estudante. Aos 18 anos, fugiu da casa do alferes e foi assentar praça.

 

Mencionamos que Luiz Gama assistia aulas de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo, na condição de ouvinte. A receptividade dos alunos ao negro não foi nada solícita. Segundo Raul Pompeia, “a generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o Santo Estêvão, e as apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos”.

 

Do ponto de vista político, além do abolicionismo, Luiz Gama defendia o republicanismo. Chegou inclusive a pertencer ao velho Partido Liberal do Império. Participou do primeiro congresso republicano em São Paulo em 1873, mas não aderiu ao movimento vez que dele participavam latifundiários paulistas que não eram favoráveis à abolição. O seu republicanismo dizia respeito antes ao seu igualitarismo e sua inequívoca consciência de justiça e igualdade social, num momento em que socialismo ainda não era parte do vocabulário político: o período de atuação de Luiz Gama coincide com a época da publicação de trabalhos em vida de Marx e Engels, quando os próprios ainda eram minoritários no movimento europeu e praticamente desconhecidos no Brasil.

 

Ainda assim, Luiz Gama já a seu tempo, foi granjeando o respeito e admiração de muitos: negros libertos, escravos e mesmo brancos como Raul Pompeia, escritor naturalista e admirador do advogado. Já por volta de 1880, a saúde debilitada de Luiz Gama, decorrente de uma diabetes, foi afastando o rábula dos tribunais. Há referências de que ao final da vida, passou a ter menos esperança na transformação da realidade por meio dos tribunais e sim  por meio da insurreição.  Sua morte em 25 de agosto de 1882 foi um acontecimento inédito na cidade de São Paulo. Uma multidão toma conta das ruas no enterro: negros, mulatos e brancos, gente simples, intelectuais e até senhores da elite paulistana. Sobre este momento do enterro, narra Raul Pompeia:

 

“O orador reforçou o gesto e intimou a multidão a jurar sobre o cadáver que não se deixaria morrer a ideia pela qual combatera aquele gigante. Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se do cemitério. As mãos estedenderam-se abertas para o cadáver... A multidão jurou”.

 

Bibliografia

BENEDITO, Mouzar. “Luiz Gama – O Libertador de Escravos e Sua Mãe Libertária, Luíza Mahin” – Ed. Expressão Popular – Recortes Perfis – Viva o Povo Brasileiro  

  

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

FIDEL CASTRO E A REVOLUÇÃO CUBANA

 

FIDEL CASTRO E A REVOLUÇÃO CUBANA

 

 


 

“O que primeiro temos que nos perguntar, aos que fizemos esta revolução, é com que intenção a fizemos. Se em algum de nós se escondia a ambição, ânsia de mandar, o propósito desleal. Se em cada um dos combatentes desta revolução havia um idealista, ou se com o pretexto do idealismo, tinha outros fins. Se fizemos esta revolução pensando que, quando a tirania fosse derrotada, desfrutaríamos dos ofícios do poder. Se cada um de nós subiria num carro “rabo de pato”[1], se cada um de nós viveria como um rei, se cada um de nós teria um palacete, e daí para frente a vida, para nós, seria um passeio, já que para isso havíamos sido revolucionários e havíamos derrotado a tirania. Se o que estávamos pensando era tirar uns ministros para colocar outros, se o que estávamos pensando era simplesmente tirar uns homens para colocar outros homens. Ou se, em cada um de nós, havia um verdadeiro desinteresse, se em cada um de nós havia um verdadeiro espírito de sacrifício, se em cada um de nós havia o propósito de dar tudo em troca de nada e se, de antemão, estávamos dispostos a renunciar a tudo que não continuasse cumprindo sacrificadamente com o dever de sinceros revolucionários. Temos que nos fazer essa pergunta porque o futuro de Cuba, o nosso e o do povo, pode depender muito do nosso exame de consciência”. Fidel Castro - 08/01/1959

 

As palavras supracitadas correspondem a parte do discurso pronunciado por Fidel Castro quando da sua chegada a Havana, na Cidade Liberdade, em 08/01/1959.

 

Fazia sete dias que os revolucionários do Movimento 26 de Julho haviam derrotado a ditadura de Batista, que perdurara por 11 anos, desde o golpe de estado de março de 1953.

 

O ditador Batista fugiu de Cuba para a República Dominicana na madrugada de 1 de janeiro de 1959. Fidel tinha então 33 anos: líder inequívoco dos revolucionários cubanos, já tinha atrás de si alguns anos de prisão, exílio e luta revolucionária.

 

Na verdade, foi o mal sucedido ataque ao quartel de Moncada em 26 de julho de 1953, quatro anos antes, portanto, o verdadeiro ponto de partida da Revolução Cubana: o ataque ao quartel militar corresponde ao ponto de partida da luta armada revolucionária na ilha. 43 revolucionários tombaram e Fidel Castro, então um jovem advogado, foi condenado a 15 anos de prisão.

 

Da reclusão, formulou sua conhecida defesa, “A história me absolverá[2]”.

 

Após a saída de Fidel da cadeia em 12/06/1955, foi fundado o Movimento 26 de julho que dirigiria a luta armada a partir da Sierra Maestra. Em Julho daquele mesmo ano, os revolucionários no exílio no México prepararam politicamente e militarmente a luta. Foi neste período que Fidel conheceu Che Guevara, então um jovem médico que, nas palavras de Castro, se dedicava então a dissecar corpos de coelhos para estudo. Aprenderiam a arte militar na prática.

 

O embarque no Gramna no porto mexicano de Tuypaan ocorreu em 24/11/1956, barco que conduziu os 82 revolucionários pioneiros que desencadeariam uma luta guerrilheira no campo durante 3 anos, até a derrubada violenta da ditadura. Estavam no grupo Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro.

 

No dia 18 de dezembro de 1956 ocorre o encontro de Fidel com Raúl e cinco outros expedicionários, em Cinco Palmas. Consta ter havido o seguinte diálogo, após um emocionante abraço:

 

“- Quantos fuzis trazem? – pergunta Fidel

 

- Cinco – responde Raúl.

 

- Com os dois que tenho eu, sete! Agora, sim, ganhamos a guerra!”

 

Muitos anos depois, Fidel Castro, já presidindo Cuba, diria que a política é a arte de tornar possível o impossível. As diversas vitórias que a revolução alcançaria ao longo das décadas subsequentes certamente reafirmam este espírito nitidamente revolucionário de tornar o improvável uma realidade.

 

É certo que a Revolução Cubana de 1959 não foi uma revolução socialista, como o Outubro de 1917 na Rússia.

 

O caráter socialista da revolução foi declarado em 16/04/1961: a proclamação do caráter socialista da revolução é uma resposta à agressão imperialista perpetrada por mercenários articulados pela CIA com a invasão da praia Girón e morte de sete cubanos.

 

O acirramento da violência entre a revolução cubana e o imperialismo norte americana acentuou-se com as medidas democráticas tomadas após a vitória de 1959. Por exemplo, uma lei de reforma agrária estabeleceu a desapropriação de latifúndios e terras detidas por estrangeiros, mediante uma indenização paga pelo estado por títulos públicos de prazo de 10 anos. Houve a nacionalização das refinarias de petróleo, das 36 centrais açucareiras e das companhias telefônicas e de eletricidade, em resposta ao cancelamento da cota açucareira por parte do governo dos EUA.

 

Mesmo com a atuação da contrarrevolução e sob sua ameaça, Cuba conseguiu, no ano de 1961, a proeza de extinguir o analfabetismo na Ilha. Tudo num prazo de um ano! Já a lei da reforma agrária beneficiou 200 mil famílias. Saúde e educação tornaram-se serviços de alcance universal. Até os jogos de basebol, esporte querido dos cubanos, tornaram-se necessariamente gratuitos, estabelecendo-se o direito ao lazer.

 

É certo que Fidel e seus companheiros conheciam o marxismo leninismo antes de 1961. Contudo, mesmo antes como depois da declaração formal do caráter socialista da revolução, parece que aquelas lutas eram mais inspiradas em José Martí e às jornadas de independência latino americana, do que em Marx, Engels e Lênin. Sobre o assunto, talvez seja sintomático que a denominação do partido dirigente revolucionário como Partido Comunista Cubano (PCC) só tenha ocorrido em 01/10/1965.

 

Muitos anos depois, Cuba exportaria especialistas militares e militantes internacionalistas para lutar pela independência de países na África, mesmo contando com críticas e reservas por parte das direções soviéticas. Cuba contribuiu diretamente com a liberação de Argélia, Angola e Guiné Bissau – só em Angola, os cubanos enviaram 300 mil combatentes em face de tropas fascistas sul-africanas, apoiadas pelos EUA.

 

É certo que houveram dificuldades e necessidade de retificações, de modo que a revolução cubana não se diferencia das demais no que se refere a existência de contradições. Nos discursos de Fidel referentes ao período que vai entre 1959/1961 há a defesa da mudança do regime econômico por meio da educação, do sacrifício individual, da disciplina consciente. Em 1961, os dirigentes cubanos, entre eles Che, suscitavam o trabalho voluntário e a necessidade de se criar um novo homem. Posteriormente, em pronunciamentos dos anos 1970, Fidel reconhece que os estímulos materiais podem ser necessários para o incremento da produtividade: para alcançar o comunismo, é necessário desenvolver as forças produtivas, desenvolver a produção para permitir que os produtos cheguem a todos.

 

É certo que o realismo dos dirigentes cubanos nunca foi um impeditivo para que aquele povo lograsse alcançar grandes objetivos, metas que poderiam parecer utópicas. No ano de 2000, Cuba tinha o maior número per capta de médicos e professores do mundo. Mesmo após a derrota do socialismo no leste europeu, os cubanos seguem com sua experiência revolucionária, inclusive após a morte de seu principal dirigente em novembro de 2016. Chamado de ditador por anticomunistas e liberais, Fidel Castro manifestou o desejo, antes de morrer, no sentido que seu nome não fosse inscrito em nenhuma rua, bustos e/ou estátua de Cuba.

 

 Bibliografia: Fidel e a Revolução- Judith Elaine dos Santos e Edgar Jorge Kolling (orgs.). Ed. Expressão Popular. 2017.



[1] “Rabo de pato”: expressão utilizada em Cuba para os luxuosos automóveis dos anos 1950, cuja parte traseira era semelhante a um “rabo de pato” e simbolizava o privilégio das elites dominantes.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

“Memórias da Casa dos Mortos” – Fiódor Dostoiévski

 

“Memórias da Casa dos Mortos” – Fiódor Dostoiévski

 


 

 

Resenha Livro - “Memórias da Casa dos Mortos” – Fiódor Dostoiévski – Tradução e Notas: Oleg Almeida – Ed. Martin Claret

 

“Três dias depois de chegar ao presídio, recebi a ordem de proceder ao trabalho. Lembro-me, sobretudo, daquele primeiro dia de trabalhos forçados, se bem que, no decorrer dele, não me tivesse acontecido nada de muito incomum, pelo menos levando em consideração tudo quanto era incomum por si só naquele meu estado. Aliás, era também uma das primeiras impressões minhas, continuando eu ainda a examinar, sôfrego, tudo ao meu redor. Passei os três primeiros dias atormentado pelas sensações mais penosas. “Eis o fim da minha viagem: estou na cadeia!” – repetia a mim mesmo a cada minuto. “Eis o meu paradeiro por muitos e longos anos, meu canto em que entro com tanta desconfiança, com uma sensação tão dolorosa...E quem sabe mesmo? Talvez eu chegue, quando o deixar daqui a muitos anos, a ter saudades dele!...” – acrescentava não sem mesclar às minhas lamúrias aquela malvadez que resulta, por vezes, na necessidade de a gente irritar, deliberadamente, a sua ferida, como se quisesse desfrutar da sua dor, como se encontrasse um verdadeiro prazer na consciência de toda a imensidão da sua desgraça. A própria ideia de que chegaria, com o passar do tempo, a lamentar aquele meu canto enchia-me de pavor: já então é que pressentia em que grau monstruoso o homem se adapta ao seu ambiente. Mas isso estava ainda por vir e, por enquanto, tudo o que me rodeava era hostil e medonho...”.

 

Em Janeiro de 1850, Dostoiévski, aos 29 anos e com dois livros já publicados, ingressou na chamada Casa dos Mortos, presídio de regime especial na cidade siberiana de Omsk, município “sujo, militarizado e depravado no mais alto grau”, nas palavras do escritor.

 

Consta que desde 1847 Dostoiévski frequentava as reuniões de um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski, um político e filósofo russo que intentava implantar no seu país as ideias do socialista utópico  francês Charles Fourier. O contexto histórico é o da Rússia dos czares, ou, mais especificamente, do reinado de Nikolai I (1825/1855), um período particularmente difícil para aqueles que tencionavam a reconstrução liberal do Império Russo.

 

O grêmio foi considerado subversivo e foi desmantelado em 23/04/1849. Consta que Dostoiévski quando de sua prisão, não negou a sua afinidade com as ideias do socialismo utópico: “Sou livre pensador no mesmo sentido em que podem chamar de livre pensador toda pessoa que sente, no fundo do seu coração, o direito de ser cidadão e de desejar o bem de sua pátria, pois encontra no coração o amor por ela e a consciência de que nunca a prejudicou de maneira alguma”.

 

O processo judicial contra o grupo de Petrachévski foi concluído em novembro de 1949. Dostoiévski foi punido com a cassação dos seus direitos civis e oito anos de trabalhos forçados em presídios siberianos.

 

Neste livro de memórias da prisão siberiana, não há muitas menções às opiniões políticas do escritor e ao programa de reformas liberais defendido pelo grêmio do qual fazia parte. Trata-se antes de uma relato objetivo das condições de vida carcerária, com retratos dos demais presos que conviveram com autor, dos hábitos de contrabando, das bebedeiras de vinho, dos trabalhos forçados, dos castigos corporais, das tentativas de fuga, etc.   

 

Um ponto que chama atenção ao longo da narrativa é como o regime social derivado da servidão, com a divisão de classes entre fidalgos e servos, proprietários e mujiques, se expressa no ódio e desconfiança da esmagadora maioria dos presos com os poucos ricos com quem compartilham a prisão – incluído o próprio escritor, que é visto pelos companheiros de cela como um dos “fidalgos”. A desconfiança e a convivência forçada com os presos que nitidamente não gostam dos proprietários torna a experiência da cadeia torturante.

 

Os relatos sobre os castigos corporais das prisões russas são bastante interessantes, não só pelo conhecimento histórico que proporcional, mas pelo retrato literário com que o escritor descreve estas situações limites. O medo do castigo é agudo e suprime toda a essência moral do homem - as sentenças preveem até 3 ou 4 mil golpes de varas, quando 400/500 açoitadas já são suficientes para matar um homem.

 

Talvez as passagens em que o escritor suscita uma crítica social sejam  justamente quando tece críticas aos castigos corporais. Para o autor o direito de aplicar castigos corporais degenera e degrada o homem. O medo do castigo faz não raro que o preso cometa um novo crime, como atacar fisicamente um soldado, com o escopo de promover um novo julgamento e postegar, ainda que por alguns dias, o momento apavorante das açoitadas.

 

O comércio ilegal de bebida, no caso o vinho, também é algo que ocupa parte importante do tempo dos presos. Toda a bestialidade do preso é revelada com a bebedeira.  Os mesmos passam, um ou dois anos economizando, de copeque em copeque, trabalhando duro na cadeia,  para gastar todo o montante em um dia de farra e bebedeira.  Como numa espécie de ciclo, após a farra, recomeça-se o trabalho árdua e a economia com vista exclusiva à próxima farra.

 

O povo da Rússia chama o crime de desgraça e o criminoso de desgraçado. A compaixão pelos presos se revela nas esmolas dadas aos detentos e nas festas religiosas, como o natal. Com uma habilidade de descrever a psicologia das personagens para além do aspecto puramente moral (não se esquecendo que se trata de criminosos, em geral assassinos, parricidas, ladrões, etc.) é notável como estas memórias, escritas em meados do século retrasado na longínqua Sibéria, remonta-nos a homens que nos parecem próximos ou até íntimos.