“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo
Resenha Livro 224 – “Um Certo Capitão Rodrigo” – Coleção Folha
Grandes Escritores Brasileiros 5
Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. A
assertiva é particularmente correta para este romance neorrealista do escritor
gaúcho Érico Veríssimo. O livro compõe o compêndio “O Continente” (1949), faz
parte da primeira parte “O Tempo e o Vento”, uma série sobre a história do Rio
Grande do Sul.
O autor se serve de sua origem regional para criar uma
narrativa que leva o leitor a conhecer a paisagem histórica, personagens,
cultura, música, sotaques, enfim todo o passado do Brasil meridional. A figura
do gaúcho, nesta narrativa ilustrada particularmente na figura de seu protagonista,
o valente Rodrigo Carambá, vai muito além de uma mera caricatura ou da
construção de um tipo ideal que vai ressaltando elementos pitorescos ou
folclóricos – o escritor vai muito além e busca construir um tipo
verdadeiramente humano, conduzindo o leitor a realmente estar em contato com o
Brasil meridional do séc. XIX.
Como se sabe o sul do Brasil historicamente foi objeto de
importantes conflitos e guerras em função dos limites territoriais. Por muito
tempo durante a fase colonial os limites formais eram os do Tratado de Tordesilhas,
que logo ficou obsoleto até a assinatura do Tratado de Madrid (1750) que
assinalou o princípio do uti possidetis ita possideatis (quem possui de fato,
deve possuir de direito), significando que os limites deveriam respeitar uma
situação de ocupação do território consolidada. Ainda assim conflitos junto aos
castelhanos persistiram – trata-se de região da Bacia do Rio da Prata, localização
estratégica para os Espanhóis terem livre acesso às lucrativas minas no Peru.
“Um Certo Capitão Rodrigo” tem seu início no ano de 1828,
quando Rodrigo Cambará, um veterano de guerra, desde menino habituado a viver
sem residência fixa, se assomando a tropas, insurreições e fazendo de sua vida
uma eterna aventura, atinge o povoado de Santa Fé. Trata-se de uma pequena
província de 30 poucas casas cuja autoridade pertence à família Amaral, que tem
o controle político e de direito da cidade.
“Toda gente tinha achado estranha a maneira como o Cap.
Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo
ninguém sabe de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela
cabeça de macho altivamente erguida e aquele seu olhar de gavião que irritava e
ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos
trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chinelas de preta
e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões
de metal. Tinha um violão a tira colo; sua espada, apresilhada aos arreios,
rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que
trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.
São muitos os traços de personalidade de Rodrigo Cambará: altivo,
destemido, gozador, amante da liberdade, da bebida, do jogo e das mulheres. Mas
talvez o maior signo de distinção do protagonista seja sua desmedida coragem.
Para ficar com apenas um exemplo para ilustrar. Rodrigo Cambará logo nos primeiros
dias em Santa Fé apaixona-se por Bibiana que também é disputada por Bento
Amaral, herdeiro do todo poderoso mandante da província. Durante um fandango de
casamento, após um desentendimento diante da dúvida sobre quem dançaria com a
moça, os homens se desentendem e diante da iminente briga, fica arranjado a
execução de um duelo entre Cambará e Amaral; um duelo com facas – a cena do
duelo tem um tom cinematográfico e é uma das passagens altas do romance.
Rodrigo consegue dominar o adversário e escrever um “P” em
sua testa – “faltou só a perna”, diria depois aos amigos. Bento Amaral em sua
covardia levara uma arma e atirara à queima roupa em Rodrigo Cambará que é
levado quase morto para casa de seu amigo Juvenal Terra. Aqui constata-se o
ponto alto de sua coragem em nossa opinião: Rodrigo está num estado terminal em
função da bala e outro amigo, o Padre Lara, deseja confessar Cambará para que
este não vá ao inferno. Mesmo mal conseguindo se comunicar, Cambará responde
piscando os olhos. Quando o padre solicita que se arrependa dos seus pecados,
Rodrigo pisca sinalizando um não. E quando o cura insiste, faz uma figa num
verdadeiro escárnio, pontuando não temer as consequências espirituais da morte.
Se a literatura é o retrato da sociedade, a questão política
se faz presente mesmo naquele povoado longínquo de Santa Fé. É interessante
observar dentre outros a noção que se tinha acerca do governo, aqui nas
palavras do personagem Pedro Terra:
“Ao pensar na Corte, Pedro pensou em governo. Para ele governo
era uma palavra que significava algo de temível e ao mesmo tempo odioso. Era o
governo que cobrava impostos, que recrutava os homens para a guerra, que
requisitava gado, mantimentos e às vezes até dinheiro, e que nunca mais se
lembrava de pagar tais requisições...Era o governo que fazia as leis – leis que
sempre vinham em prejuízo do trabalhador, do agricultor, do pequeno
proprietário. Antigamente, quem dizia governo dizia Portugal, e a gente tinha
uma certa má vontade para com tudo que fosse português, começando por
antipatizar com o jeito de falar dos “galegos”. Mas que se passava agora que o
país havia proclamado a independência e possuía o seu imperador? Não tinha
mudado nada, nem podia mudar. No fim das contas d. Pedro I era também
português. Vivia cercado de políticos e oficiais “galegos”.
Ali mesmo na
Província já se dizia que nas tropas quem mandava eram os oficiais portugueses;
murmurava-se que eles estavam conspirando para fazer o Brasil voltar de novo ao
domínio de Portugal”.
Certamente, o leitor interessado em história do Brasil será
recompensado pela leitura de “Um Certo Capitão Rodrigo”. Há alguns personagens
que de certa forma marcam o leitor pela qualidade de sua composição. Podemos
citar Macunaíma de Mario de Andrade, Dom Casmurro de Machado de Assis ou Luís
da Silva (Angústia) de Graciliano Ramos. Não vemos porque não colocar Rodrigo
Cambará neste mesmo patamar.
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