“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz
Resenha Livro 225 - “Memorial de Maria Moura” – Rachel de
Queiroz – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros
A
escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) pode ser descrita como um
dos principais expoentes da Segunda Fase do Modernismo Literário brasileiro.
Seu romance de estreia, “O Quinze” de 1930 (ver resenha em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2011/03/o-quinze-rachel-de-queiroz.html)
, tem a mesma relevância pioneira de autores e obras que marcaram época como “Vidas
Secas” de Graciliano Ramos, “Fogo Morto” de José Lins do Rego e “A Bagaceira”
de José Américo de Almeida.
O que o
unifica todos estes autores ao ponto de se poder falar numa escola literária é
a tendência às referências paisagísticas e aos contextos dos romances que tiveram
como foco o regionalismo, à crítica social, às menções aos problemas da seca,
das imigrações, das relações patriarcais e de domínio entre coronéis, seus
pátrio poder, agregados e escravos. De certa maneira a 2ª fase do Modernismo é
um aprofundamento mesmo do modernismo de vanguarda de 1922 que já tinha em suas
cogitações a preocupação por uma arte essencialmente nacional, em sua forma e
conteúdo.
A decorrência lógica deste norte seria uma imersão pelos
vastos recantos do interior do Brasil, com destaque especial para o sertão
nordestino. Um aspecto interessante que também perpassa a obra de todos aqueles
autores é um novo estatuto humano dado aos personagens tão simples e humildes
que protagonizam as histórias regionalistas. Pela primeira vez, pode-se falar
que as narrativas fazem verdadeira imersão sobre a consciência seja de um Luís
da Silva de “Angústia” ou seja mesmo da criança “Doidinho” do romance de mesmo
nome de José Lins do Rego: o que se pontua aqui é que a pobreza e os
personagens a ela submetidos não são vistos como algo pitoresco como num “Memória
de Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida ou de uma forma
superficial, sem uma abordagem profunda de suas cogitações, esperanças e
desenganos, como num “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Basta recordarmos mais
uma vez o personagem Luís da Silva de “Angústia”, um personagem afundado na
miséria como um burocrata de terceira categoria que é assolado por sentimentos
de desejo sexual amoroso frustrados, culpa, ódio e remorso, remetendo ao memorável
estudante Rodion Raskólnikov de “Crime Castigo” do escritor russo F. Dostoiévski.
“Memorial de Maria Moura” foi escrito em 1992, num momento
de plena maturidade artística de Rachel de Queiroz. Vai além de um mero romance
regionalista e nas suas 600 e poucas páginas traça uma verdadeira epopeia na
qual relata diversas histórias que se entrelaçam tendo como fundo paisagístico
o sertão nordestino e um momento histórico que podemos especular durante o
século XIX antes da abolição da Escravatura.
A personagem Maria Moura teve como inspiração, segundo o
prefácio, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1533-1603, e sua trajetória
dentro de um contexto radicalmente violento, baseado no domínio regional de
coronéis sem qualquer jurisdição estatal, demonstra a bravura de uma sinhazinha
que, devido às circunstâncias da vida, transforma-se numa líder de um bando
fortemente armado de cangaceiros que viria a instalar uma casa forte em terras
distantes em meio ao sertão, tornando-se temida e respeitada por léguas a fio.
Maria Moura era órfã de pai e morando no Limoeiro com sua
mãe, a vê se relacionando com o oportunista Liberato. A certa altura, descobre
sua genitora enforcada no quarto numa cena simulando suicídio. Depois descobre
que tudo fora obra do padrasto com o fim de adquirir a herança da Fazenda. A
descoberta da mãe enforcada revela uma cena dramática de forte impacto:
“Eu que descobri. Minha mãe morta, enforcada no armador da
parede. Em redor do pescoço, um cordão de punho de rede, os pés a um palmo do
chão, o rosto contra a parede. Tombado no tijolo, o tamborete em que ela subiu
para acabar com a vida.
Vendo aquilo, eu soltei um grito que me rasgou a garganta e
o peito. E me agarrei com Mãe: ela já estava fria, o corpo duro. Gritando
sempre, abraçada com ela, me parecia que eu estava afundando num poço sem fim,
na escuridão, apavorada”.
A pequena Sinhá desde
cedo já começa a revelar a sua força e seduz um criado da fazenda com algumas
mentiras para que o mesmo mate Liberato. A execução é bem sucedida. Como depois
o criado seduzido passa a cobrar casamento de Maria Moura, recorre a João Rufo,
amigo da casa e numa tramoia por meio de um plano muito bem executado, mais uma
execução é cometida.
Posteriormente, Tonho e Irineu (primos mal intencionados de
Moura) comparecem à casa de Limoeiro – entendem que com a morte da Mãe, fazem
jus à propriedade do Limoeiro. Ameaçam-na expulsar de casa. E agora num plano
ainda mais extraordinário, enquanto espera a vinda dos homens, Maria Moura
espalha fogo por toda a residência (para não deixar um vintém aos oportunistas)
e a partir daí parte em fuga com um punhado de homens com algumas poucas armas
em direção à Serra dos Padres, onde seu avô contava haver terras de seu dote.
Começaria a partir daqui a epopeia supracitada em que o
leitor é levado a conhecer vilarejos e ranchos semi-abitados e abandonados,
como se dava a viagem de tropeiros numa época em que não havia estradas e os
meios de comunicação para o transporte de bens mínimos como a carne e o sal, da
forma mais insalubre, casos verossímeis de pessoas que viviam tão isoladas do
mundo no sertão, colhendo água do açude ou fios de água e caçando preá para
sobreviver, tal qual índios: um roteiro que interessa não só a apreciação
literária, mas o conhecimento da história e geografia do Brasil.
Voltando à Maria Moura, seu bando executa roubos à beira da
estrada e com o rendimento das ações adquire cavalos e munições. A protagonista
para se fazer respeitada usa roupa de homem e corta seus cabelos curtos, não
admite intimidade com seus cabras, adota um forte regramento de hierarquia e
efetivamente adquire o respeito deles, e dos demais que se somam ao seu grupo.
Trata-se aqui de um verdadeiro empoderamento feminino que envolve acima de tudo
a capacidade de liderar, sem hesitar e vacilar por parte de “Dona Moura” (que,
assim gostava de ser chamada). Um dos traços de personalidade da protagonista
certamente era a valentia. Como discutimos em “Um Certo Capitão Rodrigo” de
Érico Veríssimo, não se trata de uma valentia desprendida e inconsequente como
do capitão: Dona Moura nas suas cogitações pessoais, revela medos pessoais, mas
a valentia aqui significa não a ausência de medo, mas agir a despeito do medo.
“Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava
meus cabras – os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado
suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas, na hora da
precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força
contra soldado. Mulher, para homem como ele, só serve para dar faniquito. Pois
comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus
homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. Vou
procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser para mim outro começo de
vida. Mas garantida com os meus cabras. Para ninguém mais querer botar o pé no
meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu”.
Sabe-se que Rachel de Queiróz tinha restrições ao movimento
feminista de seu tempo. A seu turno, “Memorial de Maria Moura”, além dos interesses
históricos e sociológicos referentes à narrativa literária regionalista,
mostra-nos um outro viés de empoderamento feminino positivo, diferente do
movimento feminista, este negativo, que rebaixa a mulher à vítima, trata-a como
hipossuficiente. São muitos os motivos, portanto, para conhecer esta obra.
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