terça-feira, 14 de junho de 2016

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz




Resenha Livro  225 - “Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros
               
                
A escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) pode ser descrita como um dos principais expoentes da Segunda Fase do Modernismo Literário brasileiro. Seu romance de estreia, “O Quinze” de 1930 (ver resenha em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2011/03/o-quinze-rachel-de-queiroz.html) , tem a mesma relevância pioneira de autores e obras que marcaram época como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Fogo Morto” de José Lins do Rego e “A Bagaceira” de José Américo de Almeida.

O que o unifica todos estes autores ao ponto de se poder falar numa escola literária é a tendência às referências paisagísticas e aos contextos dos romances que tiveram como foco o regionalismo, à crítica social, às menções aos problemas da seca, das imigrações, das relações patriarcais e de domínio entre coronéis, seus pátrio poder, agregados e escravos. De certa maneira a 2ª fase do Modernismo é um aprofundamento mesmo do modernismo de vanguarda de 1922 que já tinha em suas cogitações a preocupação por uma arte essencialmente nacional, em sua forma e conteúdo.

A decorrência lógica deste norte seria uma imersão pelos vastos recantos do interior do Brasil, com destaque especial para o sertão nordestino. Um aspecto interessante que também perpassa a obra de todos aqueles autores é um novo estatuto humano dado aos personagens tão simples e humildes que protagonizam as histórias regionalistas. Pela primeira vez, pode-se falar que as narrativas fazem verdadeira imersão sobre a consciência seja de um Luís da Silva de “Angústia” ou seja mesmo da criança “Doidinho” do romance de mesmo nome de José Lins do Rego: o que se pontua aqui é que a pobreza e os personagens a ela submetidos não são vistos como algo pitoresco como num “Memória de Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida ou de uma forma superficial, sem uma abordagem profunda de suas cogitações, esperanças e desenganos, como num “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Basta recordarmos mais uma vez o personagem Luís da Silva de “Angústia”, um personagem afundado na miséria como um burocrata de terceira categoria que é assolado por sentimentos de desejo sexual amoroso frustrados, culpa, ódio e remorso, remetendo ao memorável estudante Rodion Raskólnikov de “Crime Castigo” do escritor russo F. Dostoiévski.   

“Memorial de Maria Moura” foi escrito em 1992, num momento de plena maturidade artística de Rachel de Queiroz. Vai além de um mero romance regionalista e nas suas 600 e poucas páginas traça uma verdadeira epopeia na qual relata diversas histórias que se entrelaçam tendo como fundo paisagístico o sertão nordestino e um momento histórico que podemos especular durante o século XIX antes da abolição da Escravatura.

A personagem Maria Moura teve como inspiração, segundo o prefácio, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1533-1603, e sua trajetória dentro de um contexto radicalmente violento, baseado no domínio regional de coronéis sem qualquer jurisdição estatal, demonstra a bravura de uma sinhazinha que, devido às circunstâncias da vida, transforma-se numa líder de um bando fortemente armado de cangaceiros que viria a instalar uma casa forte em terras distantes em meio ao sertão, tornando-se temida e respeitada por léguas a fio.

Maria Moura era órfã de pai e morando no Limoeiro com sua mãe, a vê se relacionando com o oportunista Liberato. A certa altura, descobre sua genitora enforcada no quarto numa cena simulando suicídio. Depois descobre que tudo fora obra do padrasto com o fim de adquirir a herança da Fazenda. A descoberta da mãe enforcada revela uma cena dramática de forte impacto:

“Eu que descobri. Minha mãe morta, enforcada no armador da parede. Em redor do pescoço, um cordão de punho de rede, os pés a um palmo do chão, o rosto contra a parede. Tombado no tijolo, o tamborete em que ela subiu para acabar com a vida.

Vendo aquilo, eu soltei um grito que me rasgou a garganta e o peito. E me agarrei com Mãe: ela já estava fria, o corpo duro. Gritando sempre, abraçada com ela, me parecia que eu estava afundando num poço sem fim, na escuridão, apavorada”.

A pequena Sinhá desde cedo já começa a revelar a sua força e seduz um criado da fazenda com algumas mentiras para que o mesmo mate Liberato. A execução é bem sucedida. Como depois o criado seduzido passa a cobrar casamento de Maria Moura, recorre a João Rufo, amigo da casa e numa tramoia por meio de um plano muito bem executado, mais uma execução é cometida.
Posteriormente, Tonho e Irineu (primos mal intencionados de Moura) comparecem à casa de Limoeiro – entendem que com a morte da Mãe, fazem jus à propriedade do Limoeiro. Ameaçam-na expulsar de casa. E agora num plano ainda mais extraordinário, enquanto espera a vinda dos homens, Maria Moura espalha fogo por toda a residência (para não deixar um vintém aos oportunistas) e a partir daí parte em fuga com um punhado de homens com algumas poucas armas em direção à Serra dos Padres, onde seu avô contava haver terras de seu dote.

Começaria a partir daqui a epopeia supracitada em que o leitor é levado a conhecer vilarejos e ranchos semi-abitados e abandonados, como se dava a viagem de tropeiros numa época em que não havia estradas e os meios de comunicação para o transporte de bens mínimos como a carne e o sal, da forma mais insalubre, casos verossímeis de pessoas que viviam tão isoladas do mundo no sertão, colhendo água do açude ou fios de água e caçando preá para sobreviver, tal qual índios: um roteiro que interessa não só a apreciação literária, mas o conhecimento da história e geografia do Brasil.

Voltando à Maria Moura, seu bando executa roubos à beira da estrada e com o rendimento das ações adquire cavalos e munições. A protagonista para se fazer respeitada usa roupa de homem e corta seus cabelos curtos, não admite intimidade com seus cabras, adota um forte regramento de hierarquia e efetivamente adquire o respeito deles, e dos demais que se somam ao seu grupo. Trata-se aqui de um verdadeiro empoderamento feminino que envolve acima de tudo a capacidade de liderar, sem hesitar e vacilar por parte de “Dona Moura” (que, assim gostava de ser chamada). Um dos traços de personalidade da protagonista certamente era a valentia. Como discutimos em “Um Certo Capitão Rodrigo” de Érico Veríssimo, não se trata de uma valentia desprendida e inconsequente como do capitão: Dona Moura nas suas cogitações pessoais, revela medos pessoais, mas a valentia aqui significa não a ausência de medo, mas agir a despeito do medo.

“Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava meus cabras – os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas, na hora da precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, para homem como ele, só serve para dar faniquito. Pois comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. Vou procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser para mim outro começo de vida. Mas garantida com os meus cabras. Para ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu”.

Sabe-se que Rachel de Queiróz tinha restrições ao movimento feminista de seu tempo. A seu turno, “Memorial de Maria Moura”, além dos interesses históricos e sociológicos referentes à narrativa literária regionalista, mostra-nos um outro viés de empoderamento feminino positivo, diferente do movimento feminista, este negativo, que rebaixa a mulher à vítima, trata-a como hipossuficiente. São muitos os motivos, portanto, para conhecer esta obra.  




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