“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy
Castro
Resenha Livro 226 - “Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada
da Corte” – Ruy Castro
O
escritor e jornalista mineiro Ruy Castro deve ter a maior parte de sua
reputação nas letras decorrente de seu trabalho como biógrafo. Escreveu sobre a
vida de Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico” – 2002) e dois trabalhos que
lhe renderam o prêmio Jabuti de Livro do Ano: biografias sobre Carmem Miranda (“Carmem
– Uma Biografia” – 2005) e Garrincha (“Estrela solitária – Um brasileiro
chamado Garrincha” - 1995). Tal experiência, somada aos trabalhos particulares
que remetem à cidade do Rio de Janeiro em “Chega de Saudade” (1990) sobre a
Bossa Nova e “Carnaval no Fogo” (2003) sobre supracitada cidade, remetem
diretamente ao livro “Era no Tempo do Rei”.
Trata-se
de um gênero literário criativo e particular, uma mistura de ficção e história,
um romance que se passa no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a vinda da
família real portuguesa ao Brasil, com o fato político que, nos termos do
historiador Caio Prado Jr., põe termo ao nosso período colonial: a elevação do
país à condição de reino unido à Portugal e Algarves; a abertura dos portos às
nações amigas e o fim do regime colonial baseado no exclusivismo comercial; e
iniciativas modernizadoras desde a criação da biblioteca nacional, da imprensa
régia e da fundação do Banco do Brasil.
Todos
estes elementos históricos surgem como pano de fundo de uma história cuja forma
é contada em forma de romance. E sintomaticamente os dois personagens
principais são retirados, um da história, e outro do romance “Memórias de
Sargento de Milícias” (1852-53) de Manuel Antônio de Almeida. D. Pedro, príncipe
regente, então com doze anos e Leonardo, filho do português e meirinho aqui no
Brasil Leonardo Pataca, os dois retratados como dois peraltas. O que os igualam
é a capacidade de dar nó e pingo d’água em adultos e crianças com diabruras que
o colocam como pivetes muito acima da média: o que o separam é a origem social,
o que, como se observa frequentemente, não é lá algo impeditivo para duas
crianças brincarem, divertirem-se: após se conhecerem, têm toda a cidade do Rio
de Janeiro como cenário de suas aventuras.
Os
limites tênues entre ficção e história vão se extrapolando adiante com
personagens reais como Carlota Joaquina, rainha e tratada como vilã, desleal
para com o generoso bonachão D. João VI., seu marido, disposta a conjurar junto
a súditos ingleses com quem mantém relações extraconjugais, com o olho na
restauração do trono em Espanha pós napoleão e nas Províncias Cisplatinas – sua
predileção pelo filho D. Miguel em detrimento de D. Pedro teve efetiva
repercussão nos fatos históricos reais e mais uma vez nos deparamos com esta
interface entre história e literatura.
“Não
que Pedro tivesse alguma coisa contra os ingleses. Ao contrário, pelo que ouvia
dos mais velhos, os franceses é que eram os vilões do novo século, os
republicanos insidiosos, os vampiros da realeza. Com a falta de cerimônia com
que, até bem pouco, guilhotinavam as cabeças coroadas, ninguém de sangue azul
estava salvo na Europa. O festival de cabeças cortadas terminara, mas, agora, a
França caíra nas mãos de um homem chamado Napoleão, que se autoproclamara
imperador e estava ameaçando abocanhar todas as casas reais – a própria Família
Real inglesa, para se garantir, botara as barbas de molho. É verdade que, além
da vaidade de pretender dominar o mundo, Napoleão tinha razões pessoais para
tentar se espalhar pela Europa e pelo norte da África”.
E para
além dos fatos políticos e personagens oficiais que remetem ao que
historiadores chamam de história oficial, o romance é rico em descrições vivas
de costumes, festas típicas, os beija-mãos junto ao Imperador, a riqueza
paisagística dos bairros, sendo perceptível a preocupação do biógrafo em
retratar o Rio do século XIX efetivamente conforme a cidade se estabelecia,
reproduzindo o nome antigo dos bairros, ruas e morros. O carnaval nos é
relatado de forma a nos conduzir a uma festa efetivamente popular, com ocupação
de rua e práticas interessantes como a borradeira de água de pimenta nos
transeuntes ou ainda pior: a prática do entrudo em que algum espertalhão
sorrateiramente jogava de cima de algum prédio farinha, ovo, ou a combinação de
ambos nos passantes. Com alguma frequência ocorria alguma briga entre folião e
alguém pego de surpresa e dentro da narrativa a segurança na cidade era levada
a cabo pelo temido Major Vidigal, memorável personagem do “Memórias”.
Outro fato político bastante comentado pelos historiadores
diz respeito às grandes mudanças produzidas na cidade do Rio de Janeiro com a
vinda da Família Real. Aquelas mudanças urbanísticas e paisagísticas são frutos
de um fato único em toda a história mundial: pela primeira vez uma colônia
passaria a ser a sede de uma corte europeia.
“Muitos desses hábitos, como o dos enterros noturnos e em
cova rasa, não demorariam a ficar esquecidos no passado carioca. A vinda da
Família Real começava a mudar a face do Rio. O intendente Paulo Fernandes
Viana, encarregado geral da cidade, estava disposto a acabar com o ranço
colonial e, em dois tempos, fazer do Rio uma capital digna de um reino, apta a
receber as embaixadas estrangeiras, os fidalgos de outras cortes e a elite
dinheirosa da metrópole – mesmo porque, agora, o Rio é que era a metrópole.
Viana parecia picado pelo bicho-carpinteiro. Começou por
obrigar os proprietários a derrubar as gelosias de suas janelas – as platibandas
de treliça que isolavam as casas do que se passava na rua e contribuíam para o
ar abafado e doentio das habitações. No que as janelas se escancararam, o sol
entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas mulheres
que elas escondiam”.
Pode
ser bastante rica esta combinação de ficção e história reproduzida em “Era no Tempo
do Rei”. No âmbito do ensino da história, em tempos em que o incentivo à
leitura torna-se um ato militante, este tipo de trabalho pode ser fonte de
estudos para aprendizado de história, em especial para jovens – e a ser
estudado enquanto método para desenvolvimento a ser trilhado em outras obras
acerca da história do brasil, rica também em vasta literatura, de forma a fazer
com que a aprendizado da história também possa ser cativante e divertido. Esta
é só uma possibilidade elencada aqui a título de exemplo. Que apareçam mais
obras com esta perspectiva nas letras brasileiras.
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