quinta-feira, 19 de maio de 2016

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho



Resenha Livro - 223- “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho – Ed. Companhia das Letras

“Bestializado” é uma palavra que tem diferentes conotações. O sentido empregado pelo livro remete à ideia de “perplexo”, “atônito” ou “espantado”. Aristides Lobo, propagandista da República, assim se referiu à reação popular quanto aos acontecimentos que culminaram na proclamação da República em 1889. Certamente o povo esteve ausente daquele evento político: a derrocada do Império e a ascensão republicana esteve muito longe de ser o resultado de uma insurreição popular, da pressão de um movimento de massas, mas foi antes aquilo que alguns sociólogos chamam de um caminho pela “via prussiana”, um arranjo político projetado pela elite. Foi um fato político em que teve papel central a abolição da escravatura (1888) e com ela a falta de apoio do partido brasileiro (grandes proprietários fundiários) bem como a crise do regime junto às forças armadas.

Atônito, o povo mal entendia o que acontecia com a mudança de regime e conta-se que alguns confundiram-no com uma mera parada militar. Entra aqui em questão o problema da cidadania, ou seja, a relação/vínculos entre o povo e as instituições políticas desde que a República envolve dentre outras coisas a ideia da soberania popular – uma ideia que era sinceramente defendida por alguma parcela do movimento republicano brasileiro.

O problema da cidadania é tema já recorrente nos trabalhos de José Murilo de Carvalho. Escreveu um livro mais amplo sobre o tema, “A cidadania no Brasil”. Aqui ele faz um recorte temático e escolhe o Rio de Janeiro do período de transição entre o Império e a República para identificar o problema da integração política do povo (ou a falta dela), bem como suas raízes, o que envolve um olhar sobre a sociedade, a política e a cultura daquele contexto. O Rio de Janeiro tem particularidades que eventualmente expressam dificuldades estruturais do Brasil no que se refere à cidadania em geral: desde 1808 com a vinda de D. João XI a cidade é elevada a sede administrativa do reino e na cidade é montada um aparato administrativo com milhares de gestores advindos da corte portuguesa; a cidade ainda tem um peso considerável de estrangeiros, principalmente portugueses que ocupam postos de trabalho na área de comércio e são proprietários de imóveis locatários, causa de rivalidades que, no contexto de embates entre monarquistas e republicanos, resultariam em conflitos, não raro, com mortos. No censo de 1902 estima-se em 26% de população estrangeira no Rio de Janeiro. A ampla maioria de cidadãos era de ex-escravos que vão compor um perfil étnico com lastros importantes na cultura e na religião. Se num primeiro olhar superficial tem-se a impressão de que há um povo despolitizado, eventualmente mesquinho e egoísta, observa-se que da política vai-se para outras formas de organização social, movimentos comunitários, associações de mútuo auxílio, ora de caráter religioso, ora de caráter esportivo. José Murilo de Carvalho remete-nos aqui à Max Webber que dentro de uma tradicional divisão de formas associativas, demonstra o modelo anglo saxão, individualista que resulta em associações e um modelo ibérico (que é o brasileiro) de tipo mais comunitário e coletivista.

“A cidade mantinha suas repúblicas, seus nódulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante da política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem.”

Como se sabe, do ponto de vista Institucional a República Velha era marcada pela exclusão eleitoral e pela violência e corrupção durante os pleitos. Estavam excluídos da participação formal da política as mulheres, os menores de 21 anos, os analfabetos, os estrangeiros e os praças. Considerando os abusos e a violências no escrutínio, o comparecimento nas urnas era algo em torno de 5% da população ou menos. Obviamente a participação eleitoral é apenas uma parte do agir politicamente, do ser cidadão – o que se constata é que além das restrições legais, o não comparecimento ao voto dava-se pela constatação por todos da fraude e pelo próprio risco com eventuais incidentes de violência:

“Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados. A República combateu os capoeiras, mas o uso de capangas para influenciar o processo eleitoral só fez crescer. Fiel cronista da cidade, Lima Barreto observa em Os Bruzundangas que às vésperas de eleição ela parecia pronta para uma batalha. Conhecidos assassinos desfilavam em carros pelas ruas ao lado dos candidatos”.

Por outro lado, não se pode dizer que a ausência de participação política formal resultara em completa apatia. O que se destaca neste período são também as revoltas populares. Revoltas por motivos econômicos como a Revolta do Vintém em 1879 em decorrência da cobrança de tributo sobre as passagens dos bondes. Condutores foram escorraçados, bondes e trilhos foram destruídos, um verdadeiro motim popular foi deflagrado, sendo necessária ajuda do exército. José Murilo de Carvalho dedica um capítulo inteiro à revolta mais conhecida do período, a Revolta da Vacina. O prefeito nomeado Pereira Passos iniciou uma série de reformas na cidade, com a abertura de avenidas, fechamento de cortiços e a imposição de uma série de normas de higiene com o condão de transformar a cidade, fazer uma reforma modernizadora tal qual Paris – apenas para a abertura da Avenida Central foram recrutados 1800 operários e derrubados 640 prédios. A obrigatoriedade da vacina contra a varíola tendo à frente o Diretor de Serviço de Saúde Oswaldo Cruz era na verdade o desenvolvimento de um projeto de lei que efetivasse o ingresso de agentes públicos nas residências de forma impositiva e aplicasse a vacina – a obrigatoriedade em si já constava de norma jurídica desde os tempos do Império, mas não era cumprida. Enquanto o projeto era discutido, muito descontentamento com os possíveis desdobramentos do projeto foram sendo expressos pela imprensa, em reuniões ou discussões coletivas. Dentre a elite pensante, os positivistas, dentro de sua filosofia política, colocavam em dúvida a eficácia da vacina. E, pior, dentre as classes baixas, foi surgindo rumores de tipo moralista segundo o qual o pai de família enquanto estivesse fora no labor deixaria os agente públicos aplicarem a vacina pelas pernas de suas filhas e esposas de forma lasciva, exibindo suas partes íntimas.

A intransigência do governo e a retórica de setores médios (Lauro Sodré) que insuflavam o movimento que ganhou o apoio de estudantes, operários, capoeiras, o lupem e até setores do exército culminou numa revolta radicalizada com barricadas, destruição de bondes e troca de tiros com a polícia, incluindo mortos.

“Antes do assalto final a Porto Artur, repórteres do “Jornal do Commercio” e “O Paiz” conseguiram visitar a fortaleza, que constava de barricadas ao longo de toda a rua da Harmonia, desde a praça da Harmonia até a esquina com a rua Gamboa. Bondes virados, carroças, calçamento arrancado, árvores derrubados, lampiões destruídos, chão cobertos de latas, garrafas, colchões, um berço de vime. Na barricada principal, do lado direito, na ponta de um bambu, uma bandeira vermelha. Do lado esquerdo, no pano branco, a inscrição, “Porto Artur”. Duas casas de armas da rua Senador Pompeu tinham sido assaltadas e saqueadas. O repórter do “Jornal do Commercio” impressionou-se com “aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garrucha e navalha à mostra outros”.


Diante da constatação de que houve luta e de que para além da política oficial o povo esteve em busca de formas de colaboração e organização, é de se questionar se os limites da cidadania não se remetem antes às instituições e às ideias que lhe dão sustentação do que ao povo propriamente dito. O liberalismo e o positivismo de nossas elites, que se remeteram às ideias estrangeiras, demonstrou não ter o condão de dar engrenagem às instituições com efetiva soberania popular, mesmo porque este não era o projeto da maior parte da elite dominante. Se o povo assistiu bestializado aos eventos de 1889, chegará o dia em que as elites assistirão bestializadas à tomada de poder pelo povo, à nossa revolução democrático-popular.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário