quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

“Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes

“Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes



Resenha Livro # 139 - “Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular

Uma das características das análises do prof. e sociólogo marxista Florestan Fernandes é a alta densidade teórica de seus textos, um olhar acurado e profundo desde o ponto de vista da história e das relações sociais dos objetos de estudos, o que exige permanente atenção do leitor. O que é curioso é observar a alta capacidade do intelectual combinada com sua humildade e generosidade como pessoa - este último um dado de sua biografia.

Diz a “Nota Explicativa” deste livro de Florestan Fernandes sobre a Revolução Cubana que o material surgiu a partir de sugestão de editar anotações feitas para curso ministrado na pós graduação da PUC-SP em 1979 e posteriormente aos alunos da FFLCH-USP por meio do seu Centro Acadêmico:

“Depois de ouvir diversos tipos de razões e de convencer-me, mas ainda muito relutante, pedi a Antônio Candido de Mello e Souza, Heloisa Rodrigues Fernandes e Atsuko Haga que fizessem uma leitura das anotações e considerassem se seria realmente oportuno dar lume a um trabalho que fora projetado para fim restrito (introduzir os estudantes ao estudo da revolução cubana). A opiniões foram favoráveis à publicação e acatei-as”.

E assim saiu ganhando leitores que hoje a partir de edição da Expressão Popular têm acesso a uma história da revolução bem como uma descrição de sua evolução político-social entre os anos de 1960-70 privilegiada: como socialista e marxista, Florestan não incorre em qualquer ilusão de neutralidade desde seu ponto de vista e encara seu trabalho como um sociólogo mas também como um apoiador da revolução (o que não significa deixar de indicar as dificuldades políticas da construção do poder popular, os riscos de burocratização, posicionar-se contra a ideia da reprodução do modelo de guerrilhas desde os demais países latino-americanos como defendido por Che, e em certa medida por Carlos Marighella, etc).

É preciso esclarecer bem este ponto. Florestan Fernandes em primeiro lugar tem como objeto de estudo Cuba, um caso específico de país colonial cuja luta por libertação e emancipação, dada as suas especificidades, foi resultar em última instância numa luta anticapitalista e socialista – de onde vem a especificidade de Cuba? Como ignorar uma país que impõe um novo padrão de desenvolvimento histórico para todo um continente? O que representa aquela revolução diante das experiências de emancipação meramente formal e de continuidade da relação de dependência econômica (revolução “dentro da ordem”) que marcam os demais países latino-americanos? Apenas estas perguntas em si já atrairiam o olhar e a preocupação do sociólogo.

Todavia, e aqui ressalta-se a honestidade intelectual do pesquisador marxista, Florestan é um defensor da Revolução Cubana e sua produção é uma contribuição intelectual para a construção do socialismo naquele país, refletindo vivamente sobre o passado colonial, a economia e a sociedade sob o socialismo e o problema do estado revolucionário e do poder popular. Cada um dos tópicos sempre buscando desvendar criticamente as informações disponíveis e apresentando perspectivas para o futuro. Não existe neutralidade possível quando se trata da seleção de fatos, da forma como se descreve eventos e evidentemente quando se extrai conclusões sociológicas. O pressuposto teórico metodológico marxista tem como ponto de chegada o pressuposto político socialista em Florestan: ele é um aliado da revolução.

As especificidades de Cuba

Talvez os capítulos mais interessantes para o leitor brasileiro, especialmente diante da ausência de fontes históricas disponíveis, referem-se ao passado colonial e neocolonial de Cuba.

Colonial diz respeito à dominação espanhola que perdura até meados do séc. XIX quando a partir de 1868 com a Guerra de 10 anos observa-se o primeiro movimento de libertação nacional. Ainda que não lograsse o êxito, lançaria as bases para a efetiva Guerra de Independência de 1895.

Cuba durante a maior parte do período colonial correspondia a uma base militar sem grandes ocupações econômicas. Devido à sua posição estratégica, os espanhóis ocupavam a ilha e de lá buscavam ouro e diamantes e viviam da agricultura e pecuária. Seria após o levante dos escravos do Haiti (1791-1804), com a interdição da produção de açúcar naquela colônia que os Espanhóis a partir do início do XIX iniciariam uma efetiva promoção da colonização da ilha cubana.

Os dois principais produtos de exportação de Cuba seriam a Cana de Açúcar – produzidas nos engenhos sob a forma dos latifúndios e o Tabaco, já com a constituição diferente, produzido em unidades de produção menores e em maior proximidade com os centros urbanos.

A partir do séc. XIX muda-se radicalmente a composição social da ilha com larga introdução do trabalho escravo. E paulatinamente o capital norte-americano iria operar na indústria do açúcar até efetuar o completo domínio desta economia, complementando o domínio por via indireta da vida política cubana – colonização indireta após a Guerra de Independência Hispano-Americana (1895-1898).

Esta colonização tardia dentre outros traria especificidades que seriam como elementos detonadores da revolução:

“Primeiro, Cuba é o único país na América Latina no qual a descolonização foi apreendida como realidade total e no qual a prática política se organizou para extinguir todos os fatores, efeitos e resíduos do colonialismo e do neocolonialismo. Os revolucionários cubanos – com Fidel Castro à frente – fizeram uma crítica implacável da dominação colonial e da dominação neocolonial, embora observando a máxima de José Martí de conter a explicação da denúncia e de não precipitar os embates decisivos. A crítica foi feita com igual profundidade com relação aos fatores daquela dominação que organizava a partir de dentro e a partir de fora da sociedade cubana” (P. 33)

Ressalta-se que a partir de dentro havia uma elite política extremamente subserviente aos EUA que tinha como ponto de apoio a economia do açúcar – e portanto a dependência e vulnerabilidade econômica criaram na realidade uma situação em que Cuba era cinicamente administrada indiretamente de acordo com os interesses dos EUA.

A Emenda Platt seria o elemento jurídico que mais simbolizava aquela subserviência e transformava na prática Cuba num protetorado norte-americano. Firmada após a Guerra De Independência (1895-98), a norma jurídica consagrada na constituição cubana estabelecia que os EUA poderiam  intervir naquele país a qualquer momento em que interesses recíprocos de ambos os países fossem ameaçados. A situação seria agravada com a denominada política do “Big Stick” (Grande Porrete) nos primeiros anos do Séc. XX segundo a qual a América deveria ser área de influência exclusiva dos americanos – leia-se de dominação imperialista norte-americana.

Para além do Florestan historiador do passado colonial Cubano – e aqui há uma chave explicativa decisiva para entender a especificidade daquela experiência história mesmo para entender porque da sua não repetição em outros países da América Latina – as aulas do professor trataram de temas relacionados às relações sociais e políticas na Ilha. Temas como a participação dos trabalhadores na vida política,  a forma como se dava as tomadas da decisão, organogramas da estrutura de poder, formas de eleição para o PCC e dirigentes sindicais, e sondagens de opinião sobre a nova vida sob o socialismo são relatadas a partir de fontes secundárias.

Concordamos em suma com Florestan Fernandes quando fala a respeito do fascínio de seu objeto de estudo:


“O fascínio do estudo de Cuba está em que ela desmente todos os dogmatismos possíveis, tanto os “especificamente científicos” quanto os “puramente socialistas”. O dogmatismo, é certo, não passa de uma simplificação, feita em nome do pensamento sobre a “essência”, a “verdade”, o “modo de ser” da realidade pensada. Feito em termos científicos, o dogmatismo desloca a crítica das teorias em favor da verdade absoluta; feito em termos socialistas, ele desloca a crítica dos fatos em favor da única escolha possível. Ora, nenhum cientista social e nenhum socialista revolucionário poderia prever, ante eventu, a revolução cubana. Precisamos evocar isso em nosso ponto de partida para não caminharmos do recente para trás, como se a clareza que possuímos sobre muitos acontecimentos e processos históricos fosse dada de antemão e não construída ex post facto. Havia uma razão ideológica e política que iluminou a visão prospectiva de alguns revolucionários e ela se mostrou sob muitos aspectos correta. Ainda assim, só um homem, Fidel Castro, chegou ao fundo dessa razão e hoje são evidentes as aproximações e as incertezas que impregnaram suas lutas políticas. Diante de algo tão grande e valioso como essa revolução, recomenda-se, pois, que se evitem as simplificações, para apanhá-la o mais possível em seu fluir, em sua totalidade e em sua beleza intrínseca.”

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