sábado, 9 de agosto de 2014

“Bom Crioulo” – Adolfo Caminha


Resenha Livro #118 “Bom Crioulo” – Adolfo Caminha – Ed. Atica – (1)

O escritor cearense Adolfo Caminha foi pouco conhecido em seu tempo (fins do século XIX) e persiste tão pouco conhecido hoje. Em parte explica-se tal fato pelo pouco tempo de vida do escritor naturalista: Caminha morreu com apenas 30 anos de idade, vítima de Tuberculose.

Nascido em 1867 na então denominada província de Aracati, perdeu a mãe logo cedo e teve uma infância difícil: sabe-se que nos anos de 1877 uma seca assolou o nordeste e com o pai doente, foi mandado ao Rio de Janeiro em 1883, onde se matriculou na Escola Naval. Tal informação torna-se relevante já que em “O Bom Crioulo” boa parte do cenário dá-se justamente em embarcações de marinheiros aportados na então capital do Brasil. Outro dado importante: em 1883 o Brasil ainda era uma Monarquia em que vigorava as relações de trabalho escravo. Em 1884, numa solenidade escolar, enfrentando um ambiente conservador, Caminha durante solenidade na escola, fez discurso em que se declarava “contra o anacronismo da escravidão e do Império”.

De volta a Fortaleza, Caminha envolve-se com grupos literários tendo como influência artística o naturalismo. O naturalismo no romance tem como características a descrição objetiva tanto dos personagens quanto da paisagem, uma objetividade tão marcante que equipara muitas vezes as penas do escritor à lupa de um cientista que observa os fenômenos desde o seu laboratório. Trata-se aqui de uma reação ao subjetivismo da escola romântica, tendo como expoentes Émile Zola, na França, Eça de Queirós em Portugal e, no Brasil, o mais conhecido representante Aluísio de Azevedo, autor de “Casa de Pensão” e “O Mulato”.

Importante destacar, outrossim, que o naturalismo tem como marca a influência de uma série de correntes de pensamento que estão em voga no final do século XIX – como não poderia deixar de ser, arte e filosofia se interpenetram num dado período da história criando o que podemos chamar genericamente de uma cultura dominante correspondente àquele período histórico.

O final do séc. XIX é marcado pela expansão imperialista do capitalismo na África, na Ásia e em menor medida na América Latina o que, no plano ideológico, vinha sendo justificada por teorias como a do determinismo  (a partir da qual se legitimava a missão re-colonizadora do europeu) e a do darwinismo social (mais uma vez dentro de uma lógica em que as ciências humanas e as ciências biológicas se equiparam, o que se observa na narrativa naturalista).

No que se refere ao romance naturalista, há de se destacar sempre a primazia do interesse egoístico e dos instintos animais sobre os valores e a moral. O homem, dentro dos parâmetros do determinismo, é antes de tudo escravo de seus instintos: este ponto de vista estará vivamente presente na trama de “O Bom Criolo”.

“O Bom Criolo” foi escrito em 1895. O que chama a atenção do leitor de 2014 é a temática da história, que está certamente à frente de seu tempo – e que eventualmente contribuiu para deixar a obra no ostracismo.

Trata-se de um triângulo amoroso envolvendo o amor homossexual de dois marujos – Bom Criolo, um ex-escravo e marinheiro, e Aleixo, um jovem marinheiro e branco – e uma portuguesa. Caminha trabalhou na imprensa e, segundo nos é relatado, compôs sua história baseado em fatos reais. O amor homossexual entre os marujos teve origem naquele contexto traçado com detalhes pelo autor, qual seja, a vida à bordo dos marinheiros no Brasil de fins do séc. XIX, talvez um dos elementos mais interessantes do romance. São pintados vivamente episódios de castigos corporais com as respectivas explicações de todas as formalidades e os motivos para as aplicações das penalidades, fato importante dentro do contexto das lutas sociais no Brasil já que dentro de poucos anos rebentaria a revolta da chibata; logo no início destaca-se o fato de Bom Mulato ter fugido de uma fazenda de escravos com 18 anos de idade e de ter encontrado na Marinha uma primeira forma de experimentar a liberdade – elemento essencial da história do país desde que as forças armadas tiveram papel político decisivo no movimento da abolição da escravatura; são narrados finalmente o dia a dia dos marujos, as conversas de corredor, as pilhérias, as saudades da terra, as folgas e os passeios, e finalmente o relacionamento amoroso homossexual entre dois marujos.

Um elemento a se destacar no relacionamento é como se interpenetra a antiga condição de escravo do Bom Crioulo e a forma como os seu sentimento de amor transformado em ciúmes doentio e finalmente em violenta vingança. Em outros termos a relação de propriedade que perpassou os seus primeiros 18 anos como escravo se expressa nos últimos momentos da trama, quando assassina Aleixo, o marinheiro, branco, por quem estava apaixonado, furioso após ter descoberto a traição.

Observa-se como o mesmo tipo de relação de domínio que se perpetua ao longo do tempo toma conta do Bom Criolo, quem, como o nome sugere, aparecia para todos como alguém justo e supostamente incapaz de cometer crimes maiores do que a embriaguez eventual.

“Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimentava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete (Aleixo), esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma coisa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo”

Percebe-se como o Bom Crioulo curiosamente reproduz junto a Aleixo (homem mais jovem e branco) uma desejo relacionado a uma noção de propriedade (erga omnes) que em muito poderia remeter a do seu antigo proprietário – lembrando que Bom Crioulo antes de ser marujo, é escravo fugido. De todo modo, pela linha dada por Adolfo Caminha, o coração de Bom Crioulo é nobre. Se ele comete um crime, é antes de tudo um crime passional e irracional. A equiparação entre a manifestação de amor homossexual e decadente relação de trabalho escravista ficam para o intérprete do texto.  

Um comentário: