Resenha Livro #118 “Bom Crioulo” – Adolfo Caminha – Ed. Atica –
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O escritor cearense Adolfo Caminha foi pouco conhecido em
seu tempo (fins do século XIX) e persiste tão pouco conhecido hoje. Em parte
explica-se tal fato pelo pouco tempo de vida do escritor naturalista: Caminha
morreu com apenas 30 anos de idade, vítima de Tuberculose.
Nascido em 1867 na então denominada província de Aracati,
perdeu a mãe logo cedo e teve uma infância difícil: sabe-se que nos anos de
1877 uma seca assolou o nordeste e com o pai doente, foi mandado ao Rio de
Janeiro em 1883, onde se matriculou na Escola Naval. Tal informação torna-se
relevante já que em “O Bom Crioulo” boa parte do cenário dá-se justamente em
embarcações de marinheiros aportados na então capital do Brasil. Outro dado
importante: em 1883 o Brasil ainda era uma Monarquia em que vigorava as
relações de trabalho escravo. Em 1884, numa solenidade escolar, enfrentando um
ambiente conservador, Caminha durante solenidade na escola, fez discurso em que
se declarava “contra o anacronismo da escravidão e do Império”.
De volta a Fortaleza, Caminha envolve-se com grupos
literários tendo como influência artística o naturalismo. O naturalismo no
romance tem como características a descrição objetiva tanto dos personagens
quanto da paisagem, uma objetividade tão marcante que equipara muitas vezes as
penas do escritor à lupa de um cientista que observa os fenômenos desde o seu
laboratório. Trata-se aqui de uma reação ao subjetivismo da escola romântica,
tendo como expoentes Émile Zola, na França, Eça de Queirós em Portugal e, no
Brasil, o mais conhecido representante Aluísio de Azevedo, autor de “Casa de
Pensão” e “O Mulato”.
Importante destacar, outrossim, que o naturalismo tem como
marca a influência de uma série de correntes de pensamento que estão em voga no
final do século XIX – como não poderia deixar de ser, arte e filosofia se
interpenetram num dado período da história criando o que podemos chamar
genericamente de uma cultura dominante correspondente àquele período histórico.
O final do séc. XIX é marcado pela expansão imperialista do capitalismo
na África, na Ásia e em menor medida na América Latina o que, no plano
ideológico, vinha sendo justificada por teorias como a do determinismo (a partir da qual se legitimava a missão
re-colonizadora do europeu) e a do darwinismo social (mais uma vez dentro de
uma lógica em que as ciências humanas e as ciências biológicas se equiparam, o
que se observa na narrativa naturalista).
No que se refere ao romance naturalista, há de se destacar
sempre a primazia do interesse egoístico e dos instintos animais sobre os
valores e a moral. O homem, dentro dos parâmetros do determinismo, é antes de
tudo escravo de seus instintos: este ponto de vista estará vivamente presente
na trama de “O Bom Criolo”.
“O Bom Criolo” foi escrito em 1895. O que chama a atenção do
leitor de 2014 é a temática da história, que está certamente à frente de seu
tempo – e que eventualmente contribuiu para deixar a obra no ostracismo.
Trata-se de um triângulo amoroso envolvendo o amor
homossexual de dois marujos – Bom Criolo, um ex-escravo e marinheiro, e Aleixo,
um jovem marinheiro e branco – e uma portuguesa. Caminha trabalhou na imprensa
e, segundo nos é relatado, compôs sua história baseado em fatos reais. O amor
homossexual entre os marujos teve origem naquele contexto traçado com detalhes
pelo autor, qual seja, a vida à bordo dos marinheiros no Brasil de fins do séc.
XIX, talvez um dos elementos mais interessantes do romance. São pintados
vivamente episódios de castigos corporais com as respectivas explicações de
todas as formalidades e os motivos para as aplicações das penalidades, fato
importante dentro do contexto das lutas sociais no Brasil já que dentro de
poucos anos rebentaria a revolta da chibata; logo no início destaca-se o fato
de Bom Mulato ter fugido de uma fazenda de escravos com 18 anos de idade e de
ter encontrado na Marinha uma primeira forma de experimentar a liberdade –
elemento essencial da história do país desde que as forças armadas tiveram
papel político decisivo no movimento da abolição da escravatura; são narrados
finalmente o dia a dia dos marujos, as conversas de corredor, as pilhérias, as
saudades da terra, as folgas e os passeios, e finalmente o relacionamento
amoroso homossexual entre dois marujos.
Um elemento a se destacar no relacionamento é como se
interpenetra a antiga condição de escravo do Bom Crioulo e a forma como os seu
sentimento de amor transformado em ciúmes doentio e finalmente em violenta
vingança. Em outros termos a relação de propriedade que perpassou os seus
primeiros 18 anos como escravo se expressa nos últimos momentos da trama,
quando assassina Aleixo, o marinheiro, branco, por quem estava apaixonado,
furioso após ter descoberto a traição.
Observa-se como o mesmo tipo de relação de domínio que se
perpetua ao longo do tempo toma conta do Bom Criolo, quem, como o nome sugere,
aparecia para todos como alguém justo e supostamente incapaz de cometer crimes
maiores do que a embriaguez eventual.
“Era um misto de ódio,
de amor e de ciúme, o que ele experimentava nesses momentos. Longe de apagar-se
o desejo de tornar a possuir o grumete (Aleixo), esse desejo aumentava em seu
coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele
devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar
aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída
pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma
coisa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado,
brutal como as cóleras de Otelo”
Percebe-se como o Bom Crioulo curiosamente reproduz junto a
Aleixo (homem mais jovem e branco) uma desejo relacionado a uma noção de
propriedade (erga omnes) que em muito
poderia remeter a do seu antigo proprietário – lembrando que Bom Crioulo antes
de ser marujo, é escravo fugido. De todo modo, pela linha dada por Adolfo
Caminha, o coração de Bom Crioulo é nobre. Se ele comete um crime, é antes de
tudo um crime passional e irracional. A equiparação entre a manifestação de
amor homossexual e decadente relação de trabalho escravista ficam para o
intérprete do texto.
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