Resenha
livro #110 “Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da
propriedade rural” – Tarso de Melo – Ed. Outras Expressões
Estes
estudo corresponde à tese de mestrado na Faculdade de Direito da USP do prof.
Tarso de Melo. Há aqui uma proposta de discussão crítica acerca do tema da
função social da propriedade, um tema em si só prenhe de sentidos. A orientação
teórico-metodológica apresentada por Tarso de Melo é a perspectiva crítica: as
referências ao direito e à ideologia decorrem do pensamento de Marx e
pensadores marxistas como o l.Mézáros, N. Poulantzas e Allaor Caffé, este
último, verdadeiro precursor dos estudos referentes às relações entre direito e
marxismo no Brasil.
No que tange a tais
pressupostos teórico-metodológicos, como não poderia deixar de ser, a pesquisa
de Tarso está longe de estar pautada pela dogmática, pela pesquisa tradicional
de leis, jurisprudência e doutrina mais autorizada. Trata-se antes de um estudo
interdisciplinar que em contraponto ao positivismo jurídico busca fazer uma
análise crítica do direito analisando-o em sua totalidade, o que envolve
encará-lo nas suas múltiplas relações, com a história da Brasil, com a nossa
questão agrária, com a conformação de nossas instituições jurídicas... Trata-se,
pois, de uma obra preciosa tanto pelo método quanto pelo tema: ao estudar a
questão da função social da propriedade, Tarso passará necessariamente por um
protagonista social de peso no país no âmbito da luta pela terra, o MST.
Vale pontuar que são
infelizmente ainda muito raros estudos deste tipo, que fogem do padrão
dogmático, pautado por uma racionalidade auto-explicativa, que justifica e
legitima a si própria única e exclusivamente a partir do texto legal. Assim,
ainda há muitas questões em aberto e diversas possibilidades de pesquisas que
façam avançar uma compreensão crítica com relação ao direito, que supere por um
lado eventuais ilusões reformistas sobre a prática jurídica e por outro vá além
da mera negação do direito, entendido em bloco como instrumento de opressão de
uma classe pela outra.
Aqui, Tarso fala em “ambiguidades”
decorrentes do próprio direito e da sua relação com o mundo concreto. Trata-se
de tentar se afastar de duas perspectivas igualmente reducionistas. A primeira
seria aquela passível de ser caracterizada como “ingênua” ou, talvez, excessivamente
otimista segundo a qual seria possível empreender importantes alterações
sociais – em especiais no sentido da redução das desigualdades entre as classes
– por meio do direito e suas ferramentas. A outra perspectiva é a de descartar
o direito, as normas jurídicas e eventuais lutas por mudanças nas leis ou novas
leis, como movimentos não convenientes na medida em que as leis e o direito são
em última instância instrumentos de dominação de classe.
Com relação à primeira
ilusão, ela vem a ser mais comum e decorre, entre outros fatores, da hegemonia
do positivismo jurídico que já encontra assento no Brasil já dentro das escolas
de direito. Das faculdades ao exame da OAB, basicamente o “operador do direito”
é graduado para manipular o ordenamento jurídico conforme um determinada
quantidade de circunstâncias mais ou menos premeditadas pelos manuais: ao invés
de haver um diálogo entre o processo ou as normas jurídicas e a realidade
fática (encarada de forma dinâmica dentro de sua processualidade histórica) é como se o conjunto de normas jurídicas posto
necessariamente desse conta de toda a realidade fática (não há um “dialogo”,
mas uma linha transversal partindo da norma jurídica em direção à realidade
fática).
E as hipóteses em que a
lei não dê qualquer resposta ao caso concreto? Ainda assim é possível
reportar-se ao art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:
Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito.
Esta perspectiva
positivista tem um efeito ideológico importante. A ideologia não é o simples
desvirtuamento total da realidade. Se assim o fosse, não seria plenamente
eficaz, não seria ideologia. A ideologia necessita encerrar elementos de
convencimento para sustentar suas respectivas relações sociais de dominação. A
ideologia corresponde aos interesses de uma classe específica, dominante, transvestido
de interesses comuns, de interesses gerais. O discurso positivista, segundo o
qual o direito equivale à lei, é um discurso profundamente ideológico. Por meio
dele, garante-se que o operador do direito, e, mais importante, que aqueles
impactados de alguma forma pelo direito e pelo estado, não questionem as razões
(se justas ou não) de uma reintegração de posse em favor de uma empresa
devedora de tributos; ou que não questione o acórdão de um Tribunal Regional do
Trabalho declarando “abusiva” uma greve de uma categoria profissional
super-explorada, como a de garis.
Falávamos que existem dois
caminhos a serem evitados dentro da perspectiva crítica do direito apresentada
por Tarso. A primeira é a do positivismo jurídico, que é a dominante e, como
vimos, tem forte viés ideológico. A segunda é mais específica da tradição marxista
e reporta-se às teses de Marx acerca da natureza do estado e do direito. É
certo que Marx e Engels têm uma vasta produção teórica e em certo sentido
fragmentária: ainda assim, é possível dizer que revolucionaram distintas áreas
do saber, como a filosofia, a sociologia, a teoria da história e a economia
política. Apesar de sua formação em Direito, não há em Marx propriamente um
estudo detalhado e específico sobre o Direito: é um tema que perpassa sua obra,
há nuanças ao longo da sua própria evolução intelectual e uma análise sobre o
tema vai muito além da proposta desta resenha.
Tentaremos aqui ir
direto ao ponto que parece ser mais controverso: se o direito e em última
instância o estado burguês são instrumentos de dominação da classe detentora
dos meios de produção (burguesia) contra a classe que vende a sua força de
trabalho (trabalhadores) em que medida é possível ainda pensar numa atuação
progressista no âmbito do direito? Acreditamos que é necessário sim travar
lutas por direitos democráticos do povo e da classe trabalhadora e, aqui, é
necessário, talvez, esclarecer um pressuposto que comumente surge de forma
disvirtuada nos debates da esquerda. Nem Marx, nem nenhum marxista digno desta
tradição advogou algum dia a linha do “quanto pior melhor”, qual seja, a
suposta piora das condições materiais engendrariam condições mais rápidas para
o desenvolvimento da revolução. Basta olhar para o Manifesto Comunista (1848)
para constatar objetivos muito claros e pontuais relacionados à melhora da
condição de vida dos trabalhadores, redução da jornada de trabalho além da
questão do labor da mulher e da criança, etc. O que se destaca aqui é que a
reforma não é um óbice para a revolução, mas, muito pelo contrário, deve ser um
elemento que impulsione a revolução. Da mesma forma, a luta por direitos –
desde que feita sem perdida de vista o horizonte estratégico e sem se afastar
daquele horizonte – é um momento fudamental para organizar o poder popular.
Mas, voltando ao
direito, nossas reservas vão no sentido de fazer com que eventuais conquistas
pontuais no âmbito do judiciário burguês não se traduzam em “retrocesso” de
consciência de classe: ganha-se na justiça uma liminar suspendendo mandado de
reintegração de posse – o que ocorreu no Pinheirinho – e cria-se uma falsa
ilusão de vitória e desmobiliza-se o povo para, posteriormente, um outro juiz
reformar inteiramente a sentença e executar o mandado – o que, mais uma vez,
ocorreu no Pinheirinho.
Esta questão da relação
entra a consciência dos oprimidos pelo capital e a sua relação com as lides
jurídicas é apenas um dos pontos que este escriba aventou após ler atentamente o
estudo do Sr. Tarso de Melo. Saudamos o autor por seu livro e ficamos no
aguardo de sua próxima publicação “A Função Ideológica do Direito nas Lutas
Sociais” pela mesma editora.
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