terça-feira, 8 de abril de 2014

“Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo

“Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo


Resenha livro #110 “Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo – Ed. Outras Expressões




            Estes estudo corresponde à tese de mestrado na Faculdade de Direito da USP do prof. Tarso de Melo. Há aqui uma proposta de discussão crítica acerca do tema da função social da propriedade, um tema em si só prenhe de sentidos. A orientação teórico-metodológica apresentada por Tarso de Melo é a perspectiva crítica: as referências ao direito e à ideologia decorrem do pensamento de Marx e pensadores marxistas como o l.Mézáros, N. Poulantzas e Allaor Caffé, este último, verdadeiro precursor dos estudos referentes às relações entre direito e marxismo no Brasil.   

No que tange a tais pressupostos teórico-metodológicos, como não poderia deixar de ser, a pesquisa de Tarso está longe de estar pautada pela dogmática, pela pesquisa tradicional de leis, jurisprudência e doutrina mais autorizada. Trata-se antes de um estudo interdisciplinar que em contraponto ao positivismo jurídico busca fazer uma análise crítica do direito analisando-o em sua totalidade, o que envolve encará-lo nas suas múltiplas relações, com a história da Brasil, com a nossa questão agrária, com a conformação de nossas instituições jurídicas... Trata-se, pois, de uma obra preciosa tanto pelo método quanto pelo tema: ao estudar a questão da função social da propriedade, Tarso passará necessariamente por um protagonista social de peso no país no âmbito da luta pela terra, o MST.

Vale pontuar que são infelizmente ainda muito raros estudos deste tipo, que fogem do padrão dogmático, pautado por uma racionalidade auto-explicativa, que justifica e legitima a si própria única e exclusivamente a partir do texto legal. Assim, ainda há muitas questões em aberto e diversas possibilidades de pesquisas que façam avançar uma compreensão crítica com relação ao direito, que supere por um lado eventuais ilusões reformistas sobre a prática jurídica e por outro vá além da mera negação do direito, entendido em bloco como instrumento de opressão de uma classe pela outra.

Aqui, Tarso fala em “ambiguidades” decorrentes do próprio direito e da sua relação com o mundo concreto. Trata-se de tentar se afastar de duas perspectivas igualmente reducionistas. A primeira seria aquela passível de ser caracterizada como “ingênua” ou, talvez, excessivamente otimista segundo a qual seria possível empreender importantes alterações sociais – em especiais no sentido da redução das desigualdades entre as classes – por meio do direito e suas ferramentas. A outra perspectiva é a de descartar o direito, as normas jurídicas e eventuais lutas por mudanças nas leis ou novas leis, como movimentos não convenientes na medida em que as leis e o direito são em última instância instrumentos de dominação de classe.

Com relação à primeira ilusão, ela vem a ser mais comum e decorre, entre outros fatores, da hegemonia do positivismo jurídico que já encontra assento no Brasil já dentro das escolas de direito. Das faculdades ao exame da OAB, basicamente o “operador do direito” é graduado para manipular o ordenamento jurídico conforme um determinada quantidade de circunstâncias mais ou menos premeditadas pelos manuais: ao invés de haver um diálogo entre o processo ou as normas jurídicas e a realidade fática (encarada de forma dinâmica dentro de sua processualidade histórica)  é como se o conjunto de normas jurídicas posto necessariamente desse conta de toda a realidade fática (não há um “dialogo”, mas uma linha transversal partindo da norma jurídica em direção à realidade fática).

E as hipóteses em que a lei não dê qualquer resposta ao caso concreto? Ainda assim é possível reportar-se ao art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:  

Art. - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.


Esta perspectiva positivista tem um efeito ideológico importante. A ideologia não é o simples desvirtuamento total da realidade. Se assim o fosse, não seria plenamente eficaz, não seria ideologia. A ideologia necessita encerrar elementos de convencimento para sustentar suas respectivas relações sociais de dominação. A ideologia corresponde aos interesses de uma classe específica, dominante, transvestido de interesses comuns, de interesses gerais. O discurso positivista, segundo o qual o direito equivale à lei, é um discurso profundamente ideológico. Por meio dele, garante-se que o operador do direito, e, mais importante, que aqueles impactados de alguma forma pelo direito e pelo estado, não questionem as razões (se justas ou não) de uma reintegração de posse em favor de uma empresa devedora de tributos; ou que não questione o acórdão de um Tribunal Regional do Trabalho declarando “abusiva” uma greve de uma categoria profissional super-explorada, como a de garis.

Falávamos que existem dois caminhos a serem evitados dentro da perspectiva crítica do direito apresentada por Tarso. A primeira é a do positivismo jurídico, que é a dominante e, como vimos, tem forte viés ideológico. A segunda é mais específica da tradição marxista e reporta-se às teses de Marx acerca da natureza do estado e do direito. É certo que Marx e Engels têm uma vasta produção teórica e em certo sentido fragmentária: ainda assim, é possível dizer que revolucionaram distintas áreas do saber, como a filosofia, a sociologia, a teoria da história e a economia política. Apesar de sua formação em Direito, não há em Marx propriamente um estudo detalhado e específico sobre o Direito: é um tema que perpassa sua obra, há nuanças ao longo da sua própria evolução intelectual e uma análise sobre o tema vai muito além da proposta desta resenha.

Tentaremos aqui ir direto ao ponto que parece ser mais controverso: se o direito e em última instância o estado burguês são instrumentos de dominação da classe detentora dos meios de produção (burguesia) contra a classe que vende a sua força de trabalho (trabalhadores) em que medida é possível ainda pensar numa atuação progressista no âmbito do direito? Acreditamos que é necessário sim travar lutas por direitos democráticos do povo e da classe trabalhadora e, aqui, é necessário, talvez, esclarecer um pressuposto que comumente surge de forma disvirtuada nos debates da esquerda. Nem Marx, nem nenhum marxista digno desta tradição advogou algum dia a linha do “quanto pior melhor”, qual seja, a suposta piora das condições materiais engendrariam condições mais rápidas para o desenvolvimento da revolução. Basta olhar para o Manifesto Comunista (1848) para constatar objetivos muito claros e pontuais relacionados à melhora da condição de vida dos trabalhadores, redução da jornada de trabalho além da questão do labor da mulher e da criança, etc. O que se destaca aqui é que a reforma não é um óbice para a revolução, mas, muito pelo contrário, deve ser um elemento que impulsione a revolução. Da mesma forma, a luta por direitos – desde que feita sem perdida de vista o horizonte estratégico e sem se afastar daquele horizonte – é um momento fudamental para organizar o poder popular.

Mas, voltando ao direito, nossas reservas vão no sentido de fazer com que eventuais conquistas pontuais no âmbito do judiciário burguês não se traduzam em “retrocesso” de consciência de classe: ganha-se na justiça uma liminar suspendendo mandado de reintegração de posse – o que ocorreu no Pinheirinho – e cria-se uma falsa ilusão de vitória e desmobiliza-se o povo para, posteriormente, um outro juiz reformar inteiramente a sentença e executar o mandado – o que, mais uma vez, ocorreu no Pinheirinho.

Esta questão da relação entra a consciência dos oprimidos pelo capital e a sua relação com as lides jurídicas é apenas um dos pontos que este escriba aventou após ler atentamente o estudo do Sr. Tarso de Melo. Saudamos o autor por seu livro e ficamos no aguardo de sua próxima publicação “A Função Ideológica do Direito nas Lutas Sociais” pela mesma editora.      

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