quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

"Fogo Morto" - José Lins do Rego

Resenha #96 - “Fogo Morto” – José Lins do Rego – Ed. José Olympio



Tivemos acesso à 36ª edição deste consagrado romance do escritor paraibano José Lins do Rego. O Volume conta com um prefácio redigido pelo jornalista (e amigo do autor) Otto Maria Carpeaux. Conta ademais com uma pequena resenha de Mário de Andrade, além de ilustrações e uma pequena nota biográfica.

Quanto à biografia, vale a pena reproduzir algumas linhas redigidas pelo próprio Lins do Rego, quando já era autor consagrado:

“Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia dúzia de fios brancos, um metro e 74 centímetros, casado, com três filhas e um genro, 86 quilos bem pesados, muita saúde e muito medo de morrer. Não gosto de trabalhar, não fumo, não durmo com muitos sonos e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho saudade do sol, se faz calor, tenho saudade da chuva. Sou homem de paixões violentas. Temo os poderes de Deus, e fui devoto da Nossa Senhora da Conceição. Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo dos meus amigos e capaz de tudo se me pisarem nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Não sou mau pagador. Se tenho, pago, mas, se não tenho, não pago e não pero o sono por isso. Afinal de contas, sou um homem como os outros. E Deus queira que assim continue”.

Dentro da evolução histórica da literatura nacional, José Lins do Rego costuma ser interpretado como expoente da 2ª Geração do Modernismo. O Modernismo no Brasil teria como marco e ponto de partida a Semana de Arte Moderna de 1922. Ao mesmo tempo em que aquele período realçava novas tendências artísticas da Europa, o modernismo, no Brasil, diz respeito a uma primeiro e bem sucedido esforço de criar uma arte genuinamente Brasileira, que abordasse a nossa especificidade e o fizesse sem se adequar a modelos europeus, como o romantismo e o realismo-naturalismo. Aliás, tratava-se de um esforço que não se resumia às artes. Nas ciências sociais, as obras “Casa Grande e Senzala” de Gylberto Freire, “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Hollanda e “Formação dó Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior lançavam as bases, respectivamente, de uma nova antropologia nacional, de uma nova sociologia nacional e de uma nova historiografia nacional.

A 2ª fase do Modernismo, da qual Lins do Rego é expoente, implica num passo adiante em torno do esforço de criação de uma arte brasileira em sua forma e conteúdo. No caso, ganha destaque o regionalismo e obras de cunho social, que analisam e dissecam as relações sociais, o ambiente regional, os trejeitos e modos de se falar, o mundo e a vida em particular no interior nordestino, onde graça o coronelismo, o latifúndio e o cangaço. Romances regionalistas foram escritos por Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz e Amando Fontes. E José Lins do Rego.

“Fogo Morto” é um típico romance regionalista. Como bem coloca Otto Maria em seu ensaio, é uma obra sociológica mas que ao mesmo tempo transcende o sociológico. O interesse pela vida social, pelos costumes, pelas crendices religiosas, todo um cenário de uma época perpassa todo o romance. Trata-se de histórias vividas no interior nordestino entre meados e fins do séc. XIX. Observa-se em primeira mão a decadência da sociedade açucareira, em particular no caso do engenho de Lula de Hollanda, que decai economicamente, em grande parte pelo desleixo do seu dirigente, além de ir paulatinamente caindo aquela família fidalga na desgraça do povo, no esquecimento e na pobreza. Em “Fogo Morto” aqueles engenhos que outrora foram a base econômica da colônia e do império, com a expansão do café no sul e com a competição do açúcar do Caribe e do açúcar de beterraba europeu, houve aquela regressão econômica e social com implicações dramáticas nas vidas dos personagens.

A sensação dada ao leitor é o de que aquele cenário caminha numa marcha inexorável do fim, de uma época histórica que vai se esgotando. O eixo econômico e político do país passara à são Paulo e rio de janeiro em decorrência do desenvolvimento do café – na verdade já antes com o início do ciclo da mineração vinha a decadência dos engenhos.  Esta expansão econômica do café deslocou o centro do poder para a nova oligarquia produtora que afirma sua força durante a República Velha. E no nordeste, os velhos métodos de produção arcaicos, a utilização de escravos, tudo vai em sentido contrário à modernização no sul.

O livro se insere num momento de transição, em que a abolição surge como uma mudança formal: a maioria dos escravos deixa-se ficar com seus senhores, com exceção dos cativos do engenho do Coronel Lula, homem conhecido pela brutalidade com os cativos. Mas, o que é mais importante, é que a abolição não alterou em substância a condição do negro e este ainda é visto como um animal de trabalho, de última categoria, mesmo  pelo Mestre José Amaro e Vitoriano, dois homens do povo, mas brancos.

A falta da mão de obra foi um dos elementos da ruína daquela elite dos engenhos de açúcar. Fogo Morto remete a ideia de algo que se passou e esta é a sensação do leitor: estar em contato com um mundo em vias de decomposição e desaparecimento, o mundo da casa grande e da senzala, de negros tratados como animais de carga, de casamento determinado pela vontade do pai, senhor absoluto do lar, tempo de crendices criadas nas conversas dos negros na cozinha e reverberadas junto à família sobre lobisomem, curupira e o capeta. Tempo da política movida à bala, do coronelismo e do cangaço. Na verdade, retificamos! Talvez fogo morto signifique a ideia de que algo esteja morto e vivo: a chama do fogo perpetua-se, ao contrário da vida que tem morte. O que queremos colocar é que todos aqueles elementos “arcaicos” do cenário de Fogo Morto mostram-se mortos e de alguma forma vivos, ainda que sob novas formas. A brutalidade do Tenente que busca o cangaceiro Capitão Antônio Silvino, chega a prender e torturar o velho 
Vitoriano e um velho, negro, cego e inocente. A ironia de ver pessoas da lei torturando um cego acusado de manter contato com o bando do cangaceiro. Pois a intervenção da polícia militar nas favelas e morros do Brasil do séc. XXI é de igual ou maior brutalidade. Quanto às crendices, as igrejas evangélicas estão cheias hoje. Quanto à condição do negro, houve abolição, mas o racismo impera. Assim, a nossa conclusão acerca do livro é a seguinte: (i) é um livro maravilhoso, escrito pelas mãos de um “contador de histórias”, que recria os ambientes e explora aspectos da psicologia dos personagem que vão além de uma certa literatura que se diz popular e apresenta o povo como um ente uniforme e superficial. Lins do Rego tem a mesma capacidade de Graciliano Ramos de introjetar o leitor na consciência de personagens que são simples na origem social, mas que expressam enormes contradições pessoais[1].  (ii) Conforme dizia Otto Maria, Fogo Morto transcende o aspecto sociológico. Além de ser um documento em forma de fotografia da sociedade agrária do nordeste brasileiro em seu tempo de decadência/ruína econômica, política e moral. Além do interesse para as ciências sociais, Fogo Morto é uma bela história, uma preciosa obra de arte escrita por um brasileiro nascido na Paraíba.


       




[1] Um adendo se faz necessário. A forma como o autor divide o romance implica num corte na narrativa muito revelador. Revela como a forma como entendemos uma personagem sempre é relativa, relativa à sua relação com às demais. Cada uma das partes tem o nome de personagens centrais da história: (i) Mestre José Amaro (ii) Coronel Lula Hollanda (iii) Vitoriano. E em cada parte cada personagem corresponde ao núcleo da história. Assim, ficamos conhecendo Vitoriano desde o ponto de vista do seu compadre Mestre José Amaro. Aqui Vitoriano aparece como fracassado e fraco. Era assim que o via o mestre seleiro. E no capítulo em que Vitoriano próprio passa a ser o centro da narrativa, nossa percepção sobre ele muda, ao conhecê-lo melhor somos tentados a vê-lo com mais empatia e simpatia.

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