Resenha #96 - “Fogo Morto” – José Lins do Rego – Ed. José Olympio
Tivemos acesso à 36ª edição deste
consagrado romance do escritor paraibano José Lins do Rego. O Volume conta com
um prefácio redigido pelo jornalista (e amigo do autor) Otto Maria Carpeaux. Conta
ademais com uma pequena resenha de Mário de Andrade, além de ilustrações e uma
pequena nota biográfica.
Quanto à biografia, vale a pena
reproduzir algumas linhas redigidas pelo próprio Lins do Rego, quando já era
autor consagrado:
“Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia dúzia de
fios brancos, um metro e 74 centímetros, casado, com três filhas e um genro, 86
quilos bem pesados, muita saúde e muito medo de morrer. Não gosto de trabalhar,
não fumo, não durmo com muitos sonos e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho
saudade do sol, se faz calor, tenho saudade da chuva. Sou homem de paixões
violentas. Temo os poderes de Deus, e fui devoto da Nossa Senhora da Conceição.
Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo dos meus amigos e capaz de tudo se me
pisarem nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Não sou mau pagador.
Se tenho, pago, mas, se não tenho, não pago e não pero o sono por isso. Afinal
de contas, sou um homem como os outros. E Deus queira que assim continue”.
Dentro da evolução histórica da
literatura nacional, José Lins do Rego costuma ser interpretado como expoente
da 2ª Geração do Modernismo. O Modernismo no Brasil teria como marco e ponto de
partida a Semana de Arte Moderna de 1922. Ao mesmo tempo em que aquele período
realçava novas tendências artísticas da Europa, o modernismo, no Brasil, diz
respeito a uma primeiro e bem sucedido esforço de criar uma arte genuinamente
Brasileira, que abordasse a nossa especificidade e o fizesse sem se adequar a
modelos europeus, como o romantismo e o realismo-naturalismo. Aliás, tratava-se
de um esforço que não se resumia às artes. Nas ciências sociais, as obras “Casa
Grande e Senzala” de Gylberto Freire, “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de
Hollanda e “Formação dó Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior lançavam as
bases, respectivamente, de uma nova antropologia nacional, de uma nova sociologia
nacional e de uma nova historiografia nacional.
A 2ª fase do Modernismo, da qual
Lins do Rego é expoente, implica num passo adiante em torno do esforço de
criação de uma arte brasileira em sua forma e conteúdo. No caso, ganha destaque
o regionalismo e obras de cunho social, que analisam e dissecam as relações
sociais, o ambiente regional, os trejeitos e modos de se falar, o mundo e a
vida em particular no interior nordestino, onde graça o coronelismo, o
latifúndio e o cangaço. Romances regionalistas foram escritos por Graciliano
Ramos, Rachel de Queiróz e Amando Fontes. E José Lins do Rego.
“Fogo Morto” é um típico romance
regionalista. Como bem coloca Otto Maria em seu ensaio, é uma obra sociológica
mas que ao mesmo tempo transcende o sociológico. O interesse pela vida social,
pelos costumes, pelas crendices religiosas, todo um cenário de uma época perpassa
todo o romance. Trata-se de histórias vividas no interior nordestino entre
meados e fins do séc. XIX. Observa-se em primeira mão a decadência da sociedade
açucareira, em particular no caso do engenho de Lula de Hollanda, que decai
economicamente, em grande parte pelo desleixo do seu dirigente, além de ir
paulatinamente caindo aquela família fidalga na desgraça do povo, no
esquecimento e na pobreza. Em “Fogo Morto” aqueles engenhos que outrora foram a
base econômica da colônia e do império, com a expansão do café no sul e com a
competição do açúcar do Caribe e do açúcar de beterraba europeu, houve aquela
regressão econômica e social com implicações dramáticas nas vidas dos
personagens.
A sensação dada ao leitor é o de
que aquele cenário caminha numa marcha inexorável do fim, de uma época
histórica que vai se esgotando. O eixo econômico e político do país passara à
são Paulo e rio de janeiro em decorrência do desenvolvimento do café – na verdade
já antes com o início do ciclo da mineração vinha a decadência dos engenhos. Esta expansão econômica do café deslocou o
centro do poder para a nova oligarquia produtora que afirma sua força durante a
República Velha. E no nordeste, os velhos métodos de produção arcaicos, a
utilização de escravos, tudo vai em sentido contrário à modernização no sul.
O livro se insere num momento de transição, em
que a abolição surge como uma mudança formal: a maioria dos escravos
deixa-se ficar com seus senhores, com exceção dos cativos do engenho do Coronel
Lula, homem conhecido pela brutalidade com os cativos. Mas, o que é mais
importante, é que a abolição não alterou em substância a condição do negro e
este ainda é visto como um animal de trabalho, de última categoria, mesmo pelo Mestre José Amaro e Vitoriano, dois
homens do povo, mas brancos.
A falta da mão de obra foi um dos
elementos da ruína daquela elite dos engenhos de açúcar. Fogo Morto remete a
ideia de algo que se passou e esta é a sensação do leitor: estar em contato com
um mundo em vias de decomposição e desaparecimento, o mundo da casa grande e da
senzala, de negros tratados como animais de carga, de casamento determinado
pela vontade do pai, senhor absoluto do lar, tempo de crendices criadas nas
conversas dos negros na cozinha e reverberadas junto à família sobre lobisomem,
curupira e o capeta. Tempo da política movida à bala, do coronelismo e do
cangaço. Na verdade, retificamos! Talvez fogo morto signifique a ideia de que
algo esteja morto e vivo: a chama do fogo perpetua-se, ao contrário da vida que
tem morte. O que queremos colocar é que todos aqueles elementos “arcaicos” do
cenário de Fogo Morto mostram-se mortos e de alguma forma vivos, ainda que sob
novas formas. A brutalidade do Tenente que busca o cangaceiro Capitão Antônio
Silvino, chega a prender e torturar o velho
Vitoriano e um velho, negro, cego e
inocente. A ironia de ver pessoas da lei torturando um cego acusado de manter
contato com o bando do cangaceiro. Pois a intervenção da polícia militar nas
favelas e morros do Brasil do séc. XXI é de igual ou maior brutalidade. Quanto
às crendices, as igrejas evangélicas estão cheias hoje. Quanto à condição do
negro, houve abolição, mas o racismo impera. Assim, a nossa conclusão acerca do
livro é a seguinte: (i) é um livro maravilhoso, escrito pelas mãos de um “contador
de histórias”, que recria os ambientes e explora aspectos da psicologia dos
personagem que vão além de uma certa literatura que se diz popular e apresenta
o povo como um ente uniforme e superficial. Lins do Rego tem a mesma capacidade
de Graciliano Ramos de introjetar o leitor na consciência de personagens que
são simples na origem social, mas que expressam enormes contradições pessoais[1].
(ii) Conforme dizia Otto Maria, Fogo Morto
transcende o aspecto sociológico. Além de ser um documento em forma de
fotografia da sociedade agrária do nordeste brasileiro em seu tempo de
decadência/ruína econômica, política e moral. Além do interesse para as
ciências sociais, Fogo Morto é uma bela história, uma preciosa obra de arte
escrita por um brasileiro nascido na Paraíba.
[1]
Um adendo se faz necessário. A forma como o autor divide o romance implica num
corte na narrativa muito revelador. Revela como a forma como entendemos uma personagem
sempre é relativa, relativa à sua relação com às demais. Cada uma das partes
tem o nome de personagens centrais da história: (i) Mestre José Amaro (ii)
Coronel Lula Hollanda (iii) Vitoriano. E em cada parte cada personagem
corresponde ao núcleo da história. Assim, ficamos conhecendo Vitoriano desde o
ponto de vista do seu compadre Mestre José Amaro. Aqui Vitoriano aparece como
fracassado e fraco. Era assim que o via o mestre seleiro. E no capítulo em que Vitoriano próprio passa a ser o centro da
narrativa, nossa percepção sobre ele muda, ao conhecê-lo melhor somos
tentados a vê-lo com mais empatia e simpatia.
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