Resenha Livro #98 “A Esquerda Militar no Brasil: da conspiração
republicana à guerrilha dos tenentes” – João Quartim de Moraes – Edições Siciliano
Tivemos acesso ao primeiro volume
da história da esquerda militar no Brasil de João Quartim de Moraes. O volume
vai dos momentos iniciais da formação do exército nacional após a independência,
conflitos sociais e a ação do exército durante a regência e o Império, da
conspiração republicana, do movimento abolicionista, do movimento
florianista, da relação entre os militares e as chamadas políticas de salvação
nos estados, dos primeiros levantes armados rebeldes como a revolta da armada (pela
direita) e a revoluta da chibata (pela esquerda), pela resistência do forte de Copacabana
(1922), até o movimento tenentista a partir de 1924.
Ainda que o foco do ensaio seja a
especificidade das forças progressistas (“de esquerda”) do exército, como não
poderia deixar de ser, esta história envolve a história dos militares
brasileiros e a história política brasileira, do Império ao fim da República
Velha, até a revolução de 1930.
Existem duas maneiras de se
entender as diferenciações entre “esquerda” e “direita”. Como se sabe, esta
denominação decorre da revolução francesa: à esquerda as forças progressistas
relacionadas a projetos de transformação no sentido do igualitarismo; à direita
as forças retrógradas, ou conservadoras da ordem desigual ou francamente
reacionárias.
Já desde o ponto de vista
marxista, a distinção entre “esquerda” e “direita” assumiria um sentido menos
indefinido e vago. A esquerda marxista é revolucionária e alinha-se às classes
produtoras e exploradas, que no capitalismo, são eminentemente o proletariado.
Já a direita, desde o ponto de vista marxista, é o partido de todas as classes
exploradoras, a burguesia nacional e internacional. No que tange a história da “esquerda
militar”, como não poderia deixar de ser, estamos nos referindo ao sentido
derivado da revolução francesa e não do marxismo.
E aqui aparece o que há de mais
original e interessante neste ensaio de João Quartim de Moraes. Trata-se de
seus balanços históricos – eventos históricos entendidos como progressista ou
retrógrado. O que o autor faz é, na em medida que resgata a história política
brasileira e os vários embates envolvendo os militares, o historiador vai
delineando as posições progressistas e conservadoras de cada etapa histórica. O
sentido marxista de “esquerda” não se enquadraria num país inteiramente
agrário, virtualmente sem operariado. Assim, a “esquerda” militar foi, no final
do séc. XIX, sintomaticamente denominada “jacobina”.
E os balanços dos vários embates
políticos dentro dos quais os militares tomaram parte, ora penderam para a direita
ora para a esquerda. Assim, no que tange ao problema da abolição, as forças
armadas, e em particular o exército, tomam partido da liberação dos escravos,
contra a vontade das classes latifundiárias que lutavam para perpetuar este
odioso regime de trabalho. Segundo Quartim de Moraes, foi Nelson Werneck Sodré
o primeiro a explicar o espírito abolicionista dos militares: na falta de
contingentes para lutar na Guerra do Paraguai, o Império teve de se valer dos
cativos, que lutavam heroicamente junto aos praças e oficiais mobilizados. Com
o fim da Guerra, o retorno daqueles praças à condição de cativos revoltou seus
colegas de farda.
E assim, segue a trajetória da
esquerda militar brasileira. Um primeiro levante relacionado às más condições
de vida dos Marujos foi a Revolta da Chibata liderada por João Cândido. O
movimento teve como estopim justamente a punição de um marujo com 250
chibatadas. A repressão do governo foi brutal – e aqui não é difícil delinear
qual era a “esquerda” e a “direita” no âmbito daquele conflito. Mesmo com
promessas de anistias, os insurgentes foram presos, torturados e expulsos das
forças armadas. Alguns anos mais tardes uma divisão análoga dentro das forças
armadas pôde ser observada no movimento tenentista – alta patente em defesa da
ordem e do governo e média e baixa patentes, além de voluntários do povo, junto
às colunas rebeldes.
Os tenentes iniciaram o 2º
levante em São Paulo (o primeiro fora derrotado nas areias de Copacabana) e,
concomitantemente, no Rio Grande do Sul. O objetivo do movimento era a
derrubada do corrupto regime oligárquico: lutavam por eleições limpas, queria
tirar do poder a elite agrário-exportadora que controlava a República, a
valorização do exército e pela modernização do país. O plano inicial dos tenentes envolvia a rápida
tomada de São Paulo e a concentração de forças naquela cidade para a marcha até
a capital, na época Rio de Janeiro.
A tomada de São Paulo não foi
alcançada, mas os tenentes conseguiram bater em retirada de forma organizada e
eficiente, após alguns dias de luta e bombardeio em São Paulo. Duas colunas,
uma de São Paulo e outra do Rio Grande do Sul unir-se-iam em Foz do Iguaçu
dando início à denominada Coluna Prestes, que percorreu 30 000 KM – mais espaço
do que a Grande Marcha da Revolução Chinesa.
Um dos objetivos da obra de
Quartim de Moraes delineado já na introdução é justamente desmentir pela
história uma suposta inelutável tendência direitista das forças armadas no
Brasil. Após o tenentismo, a esquerda militar daria mostras de existência pelo
menos até 1964 com a revolta dos sargentos no RJ e sua adesão à campanha pelas
Reformas de Base de Goulart.
Com o Golpe Militar direitista,
houve sim a virtual eliminação de qualquer núcleo de esquerda dentro das forças
armadas. Outrossim, é olhando para a história dos militares que veremos como em
outras ocasiões, intervieram pela “esquerda” ou mais precisamente de forma “progressista”.
A doutrina positivista – hoje certamente
retrógrada – conferiu aos militares do séc. XIX um elemento ideológico
importante para a derrubada da monarquia – e certamente o fim da monarquia a
instituição da república (ainda que fosse uma república dominada pelos clãs
rurais) corresponderia a um avanço histórico. Hoje, o mínimo que se espera do
exército é a sua não intervenção em assuntos internos – e mesmo na chamada “re-democratização”
foi vista a utilização do exército para reprimir greves, como no caso de Volta
Redonda, que culminou na morte de operários. Dada a nossa história política
recente, temos razões para manter desconfiança junto às forças armadas, em
especial caso ela opte por retomar o seu papel de interventora política nos
momentos de crise – pelo lado da reação conservadora. Por outro lado, é certo
que o projeto da Revolução Brasileira envolve uma frente militar, sendo também certo
que a atual pecha direitista das forças armadas não signifique que novas
intervenções pela esquerda não possam partir dos militares.
Alto comando da Coluna Prestes em Porto Nacional, Goiás, 1925
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