Resenha Livro 59# “Ler Marx” – E. Renault, G. Duménil e M. Löwy – Ed. Unesp
Este livro pode ser
indicado como um guia introdutor das ideias de Karl Marx. A obra reúne três
grandes ensaios que abordam as ideias de Marx desde a perspectiva da ciência
política, da filosofia e da economia política, nesta ordem.
Os autores têm
clareza de que existe certa arbitrariedade em dividir a obra de Marx em torno
destas três grandes disciplinas. Toda esta obra é basicamente interdisciplinar,
ainda que cada uma acabe dando relevo ora à política, ora à história, ora à
sociologia, ora à filosofia ou teoria do conhecimento, ora à economia política.
Outrossim, a divisão tem caráter didático e certamente ajuda a organizar toda produção
de Marx (boa parte da qual inconclusa ou escrita de forma fragmentada) e
orientar os rumos de cada uma de suas preocupações, conforme a respectiva disciplina.
Agrupar o conhecimento ajuda a melhor compreendê-lo também como um todo. Outro
ponto favorável ao esquema de organização do livro pensado pelos três pesquisadores
franceses é o de buscar algumas sínteses decorrentes de uma leitura que
acompanha a evolução histórica do pensamento de Marx, sínteses da política, da
filosofia e da economia marxistas.
No âmbito da
filosofia, as diferenciações entre o jovem e o velho Marx são mais
significativas: Marx parte de determinada percepção que o localizava no campo
dos jovens hegelianos de esquerda, supera a perspectiva idealista da história
introduzindo a ideia da materialidade da vida social implicar em relações de
propriedade e esquema jurídico-político correspondente, chegando a sua fase de
maturidade com a “Ideologia Alemã”, em que a filosofia converte-se em filosofia
da História. Por suposto, a análise filosófica de Marx, a cargo de E. Renault
não poderia deixar de destrinchar as 11 teses de Feuerbach, culminando na
talvez mais especial contribuição do marxismo à filosofia: para além de
interpretar, é necessário transformar o mundo.
O ensaio sobre a
política é de autoria de Michael Löwy. Como não poderia deixar de ser, uma
análise sobre a perspectiva da política segundo Marx caminha junto com a sua
própria experiência de vida e de militância. Assim, textos vitais como “O
Manifesto Comunista” também são instrumentos de propaganda política e não
propriamente estudos de ciência política decorrentes de uma pesquisa
científica, como no caso dos três volumes do Capital. Mais uma vez, a obra
acompanha a evolução do pensamento de Marx: da esquerda hegeliana ao comunismo,
tendo como texto fundamental aqui a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel
(1843). Segundo Löwy, “essas notas dão testemunho da rápida radicalização do
pensamento do jovem Marx ao longo do ano; constituem seu rompimento não apenas
com a identificação hegeliana entre Estado racional e Estado prussiano, mas com
toda concepção hegeliana de estado”. A
desmistificação da política e do estado criaria as condições para uma teoria
política cuja prática envolvesse a superação e supressão do aparato estatal.
Os textos políticos
evoluem e vão dialogando com os acontecimento que Marx vivencia, dentre eles o
da conformação da 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores, para quem Marx
escreveu o preâmbulo dos estatutos da associação. Este pequeno texto, de uma
objetividade e profundidade intrigantes, prescreve: que a emancipação dos
trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores (independência de
classe); que a luta dos trabalhadores não é uma luta por privilégios de classe,
mas pelo fim de toda dominação de classe; a sujeição econômica é o fundamento
da servidão no capitalismo, implicando, no trabalhador, aviltamento intelectual
e dependência política; a necessidade de solidariedade entre os trabalhadores
das diferentes profissões num mesmo país e união fraterna entre os
trabalhadores dos diversos países (internacionalismo); entre outros.
Outro momento chave
na produção filosófica e política de Marx decorre da experiência da Comuna de
Paris, a partir da série de textos reunidos sob o nome de “Guerra Civil na
França”. As maiores atrocidades praticadas pela burguesia, pelo clero e pelas
classes proprietárias da França – dirigidos por Thiers – expôs de forma
verdadeiramente pornográfica aquilo que já vinha sendo discutido desde a
crítica a filosofia do direito de Hegel, a projeção dos interesses de classe na
política e no estado. Nas palavras de Marx, “A civilização e a justiça da ordem
burguesa revelam-se sob sua luz sinistra sempre que os escravos dessa ordem se
levantam contra os seus mestres”.
Continua Marx,
delimitando a perspectiva de superação do estado e sua confrontação com os
episódios da comuna: “Não foi portanto, uma revolução contra essa ou aquela
forma de poder do estado, legitimista, constitucionalista, republicano ou
imperial. Foi uma revolução contra o próprio estado, e esse aborto sobrenatural
da sociedade; foi a tomada pelo povo e para o povo de sua própria vida social.
Não foi uma revolução para transferir esse poder de uma fração das classes
dominantes para outra, mas uma revolução para acabar com esse terrível aparelho
de dominação de classe”.
Não há qualquer
escapatória. A leitura dos textos originais de Marx não autorizam
interpretações que de alguma forma compatibilizam o marxismo como ferramenta
filosófica e de prática política e uma estratégia de reformas ou de ajustes do
estado capitalista. Marx já ridicularizava e combatia tal posição ainda em
vida, como é visto em “Crítica do Programa de Gotha” (1875). Diz Marx, de forma
a dissipar qualquer dúvida quanto à radicalidade de seu projeto: “Acreditar que
se pode construir uma nova sociedade com o apoio do estado como se constrói uma
nova estrada de ferro é digno da imaginação fértil de Lassale (...) Entre a
sociedade capitalista e a sociedade comunista situa-se o período de
transformação revolucionária de uma em outra, ao qual corresponde um período de
transição política, em que o estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do
proletariado”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário