Saias na USP: Alguns
apontamentos sobre tática, estratégia e opressões
A questão da tática e da
estratégia foi, no movimento socialista, objeto de interesse pelos marxistas somente a partir da III Internacional. Isso significa que até a II
Internacional, não havia uma delimitação clara entre estratégia e tática, diluindo-se
a primeira na segunda, não se condicionando a segundo às exigências da primeira. “Isso não era casual, tinha a ver com a entrada
naquilo que Lenin chamou de “época de crises, guerras e revoluções”, e com a
enorme experiência adquirida a partir da revolução de outubro, e em geral com
os grandes enfrentamentos entre revolução e contrarrevolução que se sucederam”[1].
A luta revolucionária do
proletariado envolve a constituição de uma vanguarda (organizada
necessariamente em partido revolucionário) que se coloque a altura dos desafios
históricos, que dirija as massas exploradas e oprimidas pelo capital, a partir
de um movimento que, de forma unificada e orquestrada, golpeie com todas as
forças sociais disponíveis a burguesia, expropriando-a de seu poder econômico e
político. A expropriação política diz respeito à dissolução imediata do estado
e suas instituições adjacentes, processo que só pode ser forjado em meio a um
processo ou conjuntura revolucionária, com a criação de organismos de duplo
poder (como os Sovietes entre fevereiro e outubro de 1917 na Rússia), com o
esmagamento do aparato repressivo-ideológico do estado burguês, expulsão de
todos políticos profissionais, magistrados, burocratas de alto escalão e
partidos políticos da grande e média burguesia, apenas se permitindo a
existência política dos partidos que apoiam as bandeiras da revolução: a
ditadura do proletariado como a forma social transitória que caminha para o
comunismo, uma nova sociedade não mais fracionada em classes, infinitamente
mais livre e igual que a sociedade capitalista.
E mais: a luta pelo poder
envolve a constituição de milícias operárias e o armamento do proletariado,
concomitante à dissolução da polícia e de todo aparato repressivo do estado
burguês, para garantir o processo de transição, sendo necessária uma
generalização mundial da revolução. Do ponto de vista político, há a construção
de um novo poder a partir dos órgãos de produção, os conselhos de fábrica ou os
"soviets", baseando-se o movimento no método do coletivismo, da
democracia direta e da horizontalidade/igualdade entre os distintos partidos
que apoiam a revolução. Todos os órgãos de representação e decisão política
passam a ser controlados diretamente pela base, por meio de mandatos
revogáveis.
Para assegurar a vitória
política sobre a burguesia, para além da dissolução de todos os seus órgãos de
poder, no plano moral é necessária a mais total disciplina partidária da
vanguarda que deve, de forma coordenada, dirigir a revolução sem substituir o
sujeito histórico (afastando-se de todo subsititucionismo ou blanquismo), mas
atuando de forma permanente junto ao povo e aos trabalhadores, criando as bases
de uma nova democracia socialista. É necessário igualmente um controle estrito
das direções políticas pelas bases como forma de se evitar a burocratização do
poder que, ao longo do séc. XX, conduziu ou vem conduzindo experiências
revolucionárias à restauração capitalista.
Estes são alguns dos
elementos gerais de estratégia a partir do qual devemos pensar as táticas
políticas. A vitória tática é uma vitória episódica de uma batalha específica
contra a burguesia. A vitória estratégica é a vitória histórica da guerra
travada entre os capitalistas e o proletariado (a frente das massas exploradas,
incluindo os camponeses, dirigidos pelo proletariado industrial e urbano) em
nível mundial.
Nos principais processos
revolucionários do séc. XX, os movimentos sociais e o movimento dos
trabalhadores, via de regra, não conseguiram ir além do momento democrático da
luta revolucionária, ocorrendo vitórias de "batalhas" (tática) e
quase nenhuma vitória de “guerra” (estratégia). A exceção de uma experiência
pós-capitalista (revolução social) é Outubro de 1917. Neste sentido, quanto às
vitórias táticas, podemos citar a queda da ditadura na Nicarágua pela revolução
Sandinistas, a Revolução de 1959 em Cuba, a Revolução dos Cravos em Portugal, a
Revolução Vietnamita, os enfrentamentos de Allende no Chile nos anos 1970 ou
mesmo a Revolução Iraniana (ainda que dirigida pelo clero islâmico, houve lá
uma revolução política), como desenlaces de vitórias ou avanços no plano da
tática: comparando-se à Revolução Russa, as principais revoluções do século XX
não passaram de "fevereiro", não implicaram em revoluções não só
políticas, mas sociais, que tivessem como perspectiva a superação do modo de
produção capitalista e não apenas a remoção de ditaduras, de regimes corruptos
ou obscenamente subordinados ao imperialismo.
Neste debate entre o que
é tático e o que é estratégico, é necessário estabelecer alguns critérios de
diferenciação, para pensar o que determina e o que é determinante na luta pelo
socialismo. Deve-se como ponto de partida perceber como estes dois elementos
relacionam-se entre si: deve-se entender a tática como algo indissociado da
estratégia. Para manter a analogia com a linguagem militar, podemos dizer que
uma guerra só é vencida após a vitória das diversas batalhas decisivas. Por
outro lado, uma vitória tática só pode ser considerada como tal quando nos
aproxima de algum modo da nossa estratégia. Sob este critério elementar (a
indissociabilidade entre tática e a estratégia e a repercussão de uma verdadeira
vitória tática sobre o desenlace da luta estratégica) é que devemos afirmar
onde há uma vitória e onde há uma derrota, quando nos aproximamos ou quando nos
afastamos do fim geral do movimento, a emancipação dos trabalhadores e dos
homens frente ao mundo do capital.
É nestes marcos, desde
uma reflexão envolvendo tática e estratégia, que, acreditamos, deve ser pensado
o debate sobre opressões, como um momento de uma luta tática com potencialidade
de repercutir favoravelmente no plano da estratégia. As opressões de
gênero/raça/orientação sexual são em primeiro lugar expressões colaterais da
exploração essencial do modo de produção capitalista, a luta entre capital e
trabalho. O machismo reserva às mulheres os mais baixos salários, e a uma
segunda ou tripla jornada de trabalho, envolvendo não só o emprego menos
qualificado, mas tarefas como cozinhar, arrumar a casa, cuidar dos filhos,
lavar e passar a roupa, etc. O machismo combina-se com o racismo, reservando à
mulher negra as ocupações ainda mais precarizadas nas relações de trabalho:
para quem está na universidade, basta observar a massa de trabalho terceirizado
de limpeza, composto basicamente por mulheres e negras, sem direito, na universidade,
à creches, lavanderias públicas e restaurantes gratuitos, eliminando a 2ª ou 3ª
jornada. A violência contra LGBTT's envolve uma cultura homofóbica criada por
certa indústria cultural que reitera padrões de heteronormatividade e não
acolhe a diversidade de fato, ainda que o faça eventualmente no âmbito do
discurso. Desde os programas de humor, até a propaganda, o cinema e a internet,
o padrão hegemônico de heteronormatividade, machista, racista e homofóbico, se
inserem na lógica do capital através dos meios mais insólitos. É válido citar
os resultados da inadequação de homens e mulheres aos padrões heteronormativos:
patologias como anorexia, bulimia e a depressão, trotes universitários
opressores em diversos níveis, chistes e agressões a gays, lésbicas, travestis
e trans, seguranças de festas e shoppings reprimindo manifestações de amor de
homossexuais, etc. Poderíamos continuar por horas citando os exemplos, sendo
válido mencionar apenas mais um: a apropriação pela indústria cultural da
cultura racista, machista e homofóbica para a produção de qualquer tipo de
bem/mercadoria cultural destinada ao consumo: dos programas humorísticos, até
novelas e peças publicitárias que se servem das opressões para alimentar o
lucro da Indústria Cultural.
Se consideramos as
opressões como algo decorrente das exigências de valorização do capital, passa
a ser incompatível lutar por diversidade e não lutar contra o sistema de
miséria material e moral que produz a violência contra LGBTTs, que naturaliza a
violência contra a mulher ou mesmo a responsabiliza pela violência sexual por
meio de julgamento acerca da roupas usadas, além da violência cotidiana
perpetrada pela polícia a jovens negros e negras das periferias. Como algo
associado ao modo de produção capitalista, mais uma vez, percebemos como o
problema da tática e da estratégia não podem ser dissociados, mas entendidos como
dos momentos de uma luta comum, momentos que informam dialeticamente um ao
outro. Assim, lutamos contra o capitalismo (estratégia) por que lutamos contra
as opressões (tática). Lutamos contra as opressões (tática) por que lutamos
contra o capitalismo (estratégia). A luta contra as opressões, cada batalha
específica é um movimento tático que pode ou não nos aproximar da estratégia.
Nestes marcos, acreditamos ser necessário tornar de forma prioritária as
manifestações das opressões mais abertamente associadas à exploração do capital,
como ponto de partidas: aqui as opressões podem ser mais facilmente
desnaturalizadas por estarem mais diretamente relacionadas com as condições
materiais de existência. Neste sentido, falta ao movimento, na universidade,
lutar por creches, lavanderias e restaurantes públicos, combatendo as
extenuantes duplas/triplas jornadas de trabalho.
Da luta tática avança-se
na própria luta por uma percepção crítica do que é o trabalho sob o
capitalismo, como o mundo se apoia na exploração do trabalho para a extração de
mais-valia e o processo de valorização do capital. Quanto à violência contra
LGBTT's, cada denúncia de ataques deve ser respondida igualmente sob o ângulo
da estratégia, buscando, desde o caso concreto, fazer as mediações entre a
brutalidade dos homofóbicos e a conivência do poder instituído (dado um
parlamento que se nega a criminalizar a homofobia), denunciando igualmente as
igrejas que ganham fartos dinheiros por meio de isenção de impostos ao mesmo
tempo em que sustentam discursos de ódio ou pregando uma "cura" gay.
No que tange o racismo, o patriarcalismo dominante numa ex-colônia escravista
como a nossa deixa explícito como a acumulação inicial de capital comercial no
ambito do colonialismo serviu-se da exploração escravista: a escravidão
persiste explicando o racismo no Brasil. Todas as opressões, batalhas táticas,
apenas avançarão pontualmente quando aproximarem-se da luta estratégica, pelo
fim do capitalismo e pelo socialismo.
Saudamos a iniciativa dos companheiros que, em solidariedade ao colega vítima de homofobia na EACH, estão utilizando saias como forma de mostrar apoio. Entretanto, nossa intenção com este artigo foi a de, a partir da discussão sobre tática e estratégia, dar uma proposta de interpretação da questão das opressões sob o capitalismo, assinalando que uma luta consequente, que vá até a raiz do problema, envolve necessariamente revolucionar o mundo.
Paulo Henrique de
Oliveira Marçaioli – Independente da Juventude às Ruas
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