"Marx Sociologia" - Otávio Ianni
Resenha livro #58 “Marx: Sociologia” – Org. Octávio Ianni / Coordenação Florestan Fernandes Ed. Ática
Tivemos acesso a esta obra, que
corresponde a um dos livros de toda uma coleção de textos de sociologia dos
principais autores desta disciplina entre os séculos XIX e XX. Como se sabe, os
pensadores que iniciam a análise da sociedade desde um ponto de vista “científico”
(considerando a noção particular de ciência na história das ideias de fins do
séc. XIX) são E. Durkheim, francês, para quem a sociedade possuiria um caráter
orgânico, funcionando a totalidade das relações sociais como um corpo humano.
(Havendo, nos momentos de desequilíbrio orgânico, aquilo que o sociólogo
francês chamava de Anomia). Max Webber seria o segundo autor fundamental da
sociologia, destacando-se seus estudos que relacionam o desenvolvimento do
capitalismo com os valores e a ética introduzida pelas diversas variantes do
protestantismo, dando destaque a uma de suas alas mais radicais, o Calvinismo.
Finalmente, Marx é objeto de um livro particular na coleção, havendo uma seleção
de textos por conta do sociólogo da USP Otávio Ianni.
Ainda que o próprio marxismo
sugira um olhar totalizante das relações sociais, propiciando a criação de
obras interdisciplinares, é possível destacar nos diversos textos de autoria de
Marx ênfases em determinadas disciplinas, dado os aspectos mais específicos das
pautas, questões, na sociologia, decorrentes das relações sociais, das relações
de produção dominantes e de sua expressão enquanto relações de propriedade ou
formas jurídico-estatais de arranjar todas as exigências de valorização do
capital.
Assim,
para quem tem interesse em conhecer mais do Marx historiador, é válida a
leitura do “18 de Brumário”, quando o autor não só analisa a experiência da
França sob a direção de Napoleão III mas oferece, por meio das análises, pistas
de qual é o procedimento teórico-metodológico para se desvendar o sentido da
história. Assim, sob a perspectiva marxista, o movimento da história deve ser
analisado a partir da expressão dos embates de classes, da conformação, da
força e das deficiências das classes sociais, além do estudo do grau de
desenvolvimento das forças produtivas comparando-o com o estágio de
desenvolvimento histórico das relações de produção, de forma a se constatar se
a conjuntura aproxima-se ou distancia-se de uma situação revolucionária.
De outra monta, para aqueles que
têm interesse em analisar Marx enquanto economista político, sua obra de maior
envergadura, o Capital, oferece a mais bem acabada análise do capitalismo, suas
formas sutis de exploração, além de introduzir conceitos chaves para a
compreensão daquele modo de produção: valor, trabalho, mais valia absoluta,
mais valia relativa, etc.
No que se refere à sociologia,
há de se perceber que a tarefa de sistematizar textos de Marx sobre o tema
envolve um trabalho mais complexo. Como dissemos, ainda que seja possível
dividir a obra do filósofo revolucionário alemão a partir das disciplinas
determinantes de cada obra, esta separação possui algo de arbitrário e
contraria certamente a orientação metodológica de Marx. Assim, ainda que o tema
da Economia Política esteja premente em “O Capital”, a obra também possui
desenlaces de filosofia (quando busca analisar o que é alienação) e política
(quando a crítica da economia política possui por trás de si a intenção de
revolucionar o mundo). No que se refere à sociologia, o trabalho de Otávio
Ianni certamente revela o enorme domínio do sociólogo da USP sobre o tema
objeto de estudo. Afinal, as questões de sociologia – a produção da sociedade,
as classes sociais e suas contradições, a questão da consciência, o papel
social do estado e sua relação com a sociedade civil – vão aparecer não em um
ou dois livros específicos de Marx, mas em trechos particulares de praticamente
todas as suas obras.
O
ponto de partida da crítica de Marx envolve o questionamento da filosofia
clássica alemã (desde o rompimento com o hegelianismo de esquerda, invertendo a
dialética, do céu à terra, da terra ao céu); a crítica do socialismo utópico
francês, havendo no livro, trechos da obra “Miséria da Filosofia” em que Marx
combate desvios idealistas e evolucionistas quanto à história em Proudhon; e a
crítica da economia política clássica inglesa, que encontra seus limites justamente
por não se propor a questionar e ir além do modo de produção dominante.
Por
meio da crítica destas três linhas de pensamento, Marx desenvolve uma teoria
segundo a qual a anatomia da sociedade está nas suas relações de produção – e aqui
há o pulo do gato, o salto qualitativo quanto à contribuição de Marx à sociologia,
a partir do momento em que Marx equipara a totalidade da vida social a edifício
cujas bases estão nas relações de produção (estrutura) a partir da qual se
projeta a política, o direito, as artes, a religião e a cultura (elementos da
superestrutura).
Outra
preocupação sociológica discutida por Marx é a questão do estado. Este, como já
dito, define as relações de propriedade dominantes, que por sua vez são implicações
das relações de produção. Existe no que tange ao estado uma aparência que omite
ou obscurece as relações de exploração e dominação – as classes dominantes são
capazes de impor os seus interesses de classe a toda a sociedade civil como se
fossem interesses universais. O Estado em Marx é assim uma colossal
superestrutura, um poder organizado de uma classe sobre a outra, ainda que
surja como um ente que representaria todas as classes. Nas palavras de Marx “O
Estado se funda na contradição entre o público e a vida privada, entre o
interesse geral e o particular. (.,.) O governo moderno não é senão um comitê
administrativo dos negócios da classe burguesa”.
Entretanto,
desde que a história é a história da luta de classes, o domínio de uma classe
sobre a outra nem sempre é pacífico: ocorre por vezes o que poderíamos chamar
de anomalias históricas, a exemplo do bonapartismo a partir da eleição francesa
de 1984 – que pelo sufrágio universal masculino e por meio do voto
predominantemente camponês levou ao poder Napoleão III. Trata-se de um momento
da história de crise de hegemonia, situação em que nenhuma classe ou fração de
classe vê-se capaz de assumir os rumos do estado, fazendo com que o mesmo
aparentemente “pairasse” sobre a sociedade e sobre as classes sociais.
Entretanto, o bonapartismo é também um mecanismo burguês de perpetuação do
capitalismo: trata-se de um regime necessário para a própria sobrevivência das
classes possuidoras, exprimindo-se em alguma medida também alguns interesses da
classe antagônica à burguesia, o proletariado.
O
conjunto de textos utilizados como base para a coleção são: Contribuição à
Crítica da Economia Política; O Capital; A Sagrada Família; a Miséria da
Filosofia; 18 de Brumário e Cartas a Kugelmann; Revolução e Contra Revolução na
Alemanha; e a Ideologia Alemã. A seleção cumpre importante papel para
aprofundamento das análises sociológicas do marxismo envolvendo os temas da
política, das classes sociais, do estado, da consciência e da teoria da
história. Sua leitura e estudo são fundamentais, ainda hoje.
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