segunda-feira, 25 de março de 2024

Os Contos de Lygia Fagundes Telles

 Os Contos de Lygia Fagundes Telles



Resenha Livro – “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos” – Lygia Fagundes Telles – Ed. Ática

“Quero te dizer que nós as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões”. (“As Meninas” – Lygia Fagundes Telles).

No próximo dia 03 de abril fará dois anos da morte da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, falecida quando tinha 103 anos de vida.

A longevidade da autora de “Ciranda de Pedra” também se revela no vasto número de romances, contos e crônicas jornalísticas por ela escritos até o fim da vida. Basta dizer que no ano de 2016, quando tinha 92 anos de idade, foi a primeira mulher brasileira indicada ao prêmio Nobel de literatura.

Lygia Fagundes da Silva Telles nasceu no dia 19 de abril de 1918 em São Paulo/SP. Passou, porém, a maior parte da sua infância em diferentes cidades do interior paulista, em função do trabalho de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, este último procurador, promotor público, advogado distrital, comissário de polícia e juiz.

Sua mãe, conhecida como Zazita, era uma pianista habilidosa que não pôde prosseguir na carreira artística, dada a época em que às mulheres eram reservados apenas os trabalhos e cuidados domésticos.

Em 1936 os pais de Lygia separaram-se, fazendo com que a escritora e sua mãe retornassem à São Paulo para uma vida de classe média empobrecida. O tema da separação conjugal é significativo, posto que vivenciada na prática por mãe e filha.

No caso de Lygia, sua separação foi um ato de coragem, considerando que naquele tempo, ou mais exatamente no ano de 1960, o divórcio não era admitido no ordenamento jurídico brasileiro. O fato tornou-se um escândalo ainda maior pelo fato de Lygia ter se casado com  Gofredo Teles Júnior, renomado professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de Francisco, deputado constituinte de 1946 e principal redator da “Carta aos Brasileiros” (1977), considerado o primeiro manifesto público em defesa da democracia nos tempos da Ditadura Civil Militar brasileira.

Lygia foi aluna de Gofredo Teles Júnior nas Arcadas. Quando ingressou na Academia de Direito de São Paulo, era uma das seis mulheres numa turma de cerca de cem alunos.

Da mesma forma, a autora iniciou sua trajetória artística numa época em que poucas mulheres eram admitidas no mundo literário.

O primeiro livro de contos de Lygia Fagundes Telles foi publicado no ano de 1938 quando tinha vinte anos de idade. Porém, de acordo com a escritora, conhecida por um agudo senso autocrítico, sua estreia literária só se daria no ano de 1951, quando lançou o romance “Ciranda de Pedras” e tornou-se conhecida nacionalmente.

É provável que esse livro ainda hoje seja o mais lembrado pelo público, especialmente pelo fato de ter sido objeto de duas adaptações para telenovelas.

Contudo, as coletâneas de contos correspondem ao grosso da produção literária da escritora paulistana.

Através das técnicas do fluxo de consciência e do monólogo interior, Lygia retrata histórias essencialmente situadas em ambiente urbano, com temas universais (não regionalistas).

Suas histórias falam de amor, romance, paixão, medo e morte.

Nos contos, vemos verdades subterrâneas de criaturas ambiguamente disfarçadas no comportamento social. É o caso do conto “O Noivo”, uma história fantástica em que o narrador é despertado e surpreendido com a notícia de que aquele era o dia do seu casamento.

Contraditoriamente, o noivo não lembra nem remotamente desse casamento, nem tão pouco de quem seria a sua futura esposa.

“Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável, nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E eu nem isso tenho. Ou tenho?”.

Essas verdades subterrâneas se revelam em pequenos detalhes. No caso do conto que dá título ao livro “Venha ver o pôr-do-sol”, serve de exemplo os leques de rugas ao redor dos olhos de Ricardo, nos momentos em que revela raiva por ter sido preterido por sua ex namorada Raquel.

São expressões faciais, comportamentos contraditórios, silêncios eloquentes, comentários acessórios apenas aparentemente não relacionados com aquilo que os personagens pensam e sentem.

Neste sentido, pode-se dizer que a escritora mostra os fatos ao invés de contá-los: ou, em outros termos, os fatos e as histórias são contados por si mesmos.

É o caso do conto “Natal na Barca” em que o protagonista passa a festa natalina numa viagem de barco ao redor de alguns desconhecidos, dentre eles uma mulher que carregava um filho pequeno.

Ao escutar as falas dessa mulher, e seu depoimento sobre a morte trágico de outro filho pequeno, falecido num acidente doméstico, a escritora desnuda não só fatos, mas as cogitações profundas que passam no íntimo dos personagens. Muitas histórias são ditas através de pequenos detalhes captados pela escritora:

“Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não  bastasse a pobreza que espiava pelos remendos de sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda vai pairar uma sobra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.”.

A intensidade dos sentimentos humanos, retratada através de frases curtas, com economia de palavras; trata-se de uma escritora capaz de captar a complexidade da alma humana através de pequenas histórias em forma de contos. 

Neste quadro, não são poucos aqueles que consideram Lygia Fagundes Teles como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX.

terça-feira, 19 de março de 2024

A Literatura de Léo Vaz

 A Literatura de Léo Vaz



Resenha Livro – “O Burrico Lúcio” – Léo Vaz – Ed. Jabuti

Não são muitas as informações disponíveis na internet acerca da vida e da obra do escritor do paulista Léo Faz (1890/1973).

Apesar de ter sido um jornalista e escritor popular ao seu tempo, os seus dois romances mais conhecidos, “Professor Jeremias” (1920) e “O Burrico Lúcio” (1951), aguardam há muito tempo a iniciativa de um editor que queira reeditá-los.

O que seria desejável considerando a rara qualidade literária do escritor de Capivari/SP, apelidado por Monteiro Lobato, amigo e editor de Léo Vaz, como um “Machado de Assis sem gagueira”.

O paralelo traçado pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo tem o seu fundamento: ambos os escritores reuniam o dom da ironia e da difícil simplicidade e o pleno domínio da linguagem contadora de causos.

No prefácio de “O Burrico Lúcio”, o crítico Gomes Freire reforça a comparação, indicando que a obra de Vaz é tão simples, natural e de fácil assimilação, que poderia alguém jugar estar ao alcance de qualquer pena. O que antes revelava uma experiência de décadas de redação e um domínio textual raro.

“O Burrico Lúcio é a nosso ver como “O Memorial de Aires” (Machado de Assis) a conquista de um ideal literário, a chegada à Utopia dos Escritores, o remate de uma obra, feita com seriedade e desvelo. O alpinista das letras Léo Faz alcançou o píncaro sonhado; já se acha, pois, perto das nuvens, no ar limpo, rarefeito. A perfeição é simplificação. Isso explica a curteza das frases, o pequeno tamanho do romance. Só os jovens são extensos, por falsa experiência.”  (Gomes Freire).

Leonel Vaz de Barros, mais conhecido como Léo Vaz, iniciou sua carreira literária no jornalismo, na Gazeta de Piracicaba. No ano de 1918 muda-se para São Paulo e assim que chega à capital, é apresentado a Oswald de Andrade e convidado a participar de reuniões literárias, na qual estão presentes Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida e Menotti del Pecchia.

Trabalhou como periodista em diversos órgãos da imprensa paulistana, até ser convidado a integrar a equipe do Estadão, onde foi diretor e publicou textos até a sua morte, em março de 1973.

“O Burrico Lúcio” é uma adaptação do conto de mesmo nome de autoria de Luciano de Samósata (125 – 180), este último um contador de histórias satíricas e críticas da sociedade romana dos tempos do reinado de Marco Aurélio.

Para Léo Vaz, o escritor romano seria uma versão a frente de seu tempo de Anatole France: ambos portadores da mais alta cultura científica e literária de seu tempo, críticos mordazes dos homens e das instituições, irreverentes ao encararem as crenças e religiões, divertindo-se e divertindo o seus leitores com a sua ironia.

 

O livro conta a história de Lúcio, jovem romano da cidade de Patras, convocado por seu pai a viajar até Hipata com o objetivo de cobrar pessoalmente um devedor usuário que insistia em não restituir o dinheiro que lhe fora emprestado.

Ao chegar ao seu destino, é convidado a ficar por alguns dias na cidade, hospedado pelo usuário e por sua mulher, que logo revelou ser uma bruxa:

“A única coisa, porém, que em parte abonava a má-língua dos informantes, era o jeito da mulher de Hiparco: magra, ecolhida, de cabelos ralos, duros e escorridos, olhos pequeninos e fugidios, ladeando um narigão recurvo e agudo que nem bico de coruja, a tal criatura dava a impressão de ser mesmo uma bruxa das mais autênticas e perigosas deste mundo.”.

As suspeitas do jovem logo se revelaram verdadeiras: conduzido por uma criada da casa aos aposentos da bruxa, observa por uma fresta da porta a mulher fazendo os seus rituais religiosos.

Em certo momento, a velha bebe uma porção mágica e entra em metamorfose. O seu corpo diminui até o tamanho de uma anã, cobre-se de penas, e seus pés se transformam em garras de gavião, até se converter num pássaro repulsivo que sai grasnando em direção à janela até se perder de vista.

Lúcio, garoto ingênuo e inexperiente, pede à criada que lhe ungisse a mesma porção mágica para transformá-lo num pássaro possante. Por um engano de sua amiga, que pega o frasco errado, Lúcio se transforma num burrico.

As aventuras do jumento, que é vendido para um grupo de salteadores, depois arrematado num leilão, depois adquirido por oportunistas que o utilizam para obter doações, e assim por diante, tem como pano de fundo a sátira da sociedade romana.

Em Léo Vaz, ela se dá na forma de um humor sutil, não agressivo nem ridiculizador, dotado de compaixão humana, e não raro combinando o trágico e cômico, tal qual as histórias de Machado de Assis.  




terça-feira, 12 de março de 2024

A Literatura de Carmen Dolores

 A Literatura de Carmen Dolores



Resenha Livro - “A Luta” – Carmen Dolores – Ed. Iba Mendes Editor Digital

Carmen Dolores foi um dos pseudônimos da escritora carioca Emília Moncovo Bandeira de Mello (1852-1910), que ao seu tempo foi uma das mulheres mais lidas no Brasil e hoje é absolutamente desconhecida do público, e até mesmo dos estudiosos da literatura nacional.

Dolores publicou, entre 1905/1909, crônicas literárias e jornalísticas no “O Paiz”, jornal situado no Rio de Janeiro, então capital da incipiente República, e com maior tiragem e circulação no Brasil.

As publicações no jornal revelam ao estudioso de hoje como a escritora foi popular ao seu tempo. Basta constatar que a sua coluna era lançada aos domingos (dia em que o jornal é mais vendido) e em coluna de destaque.

Sua popularidade pode ser comparada a outra escritora daquele mesmo período dos 1900: Júlia Lopes de Almeida, idealizadora da Academia Brasileira de Letras, também colunista d’o Paiz e para alguns a mais popular escritora do Brasil da Republica Velha.

A existência de duas grandes escritoras do sexo feminino não nos autoriza pensar que havia grande participação das mulheres na produção literária da época.

Numa entrevista concedida a João do Rio em 1905, Lopes de Almeida conta que na adolescência fazia versos escondida: fechava-se num quarto, abria a secretária, escrevia seus poemas e silenciosamente os guardava na gaveta fechada à chave, já que uma mulher produzir versos era algo inimaginável.

Já na literatura de Carmen Dolores vê-se a descrição e crítica da condição da mulher ao seu tempo. Momento em que a mulher não podia ser vista em público sem a presença de um homem que a acompanhasse, sob pena de ser encarada com desconfiança e sujeita à reputação de libertina. Além disso, o abandono do lar conjugal constituía crime, o que é um dos elementos centrais do seu romance “A Luta” (1911).  

De fato, um dos aspectos da obra de Dolores que a singulariza se refere à constante participação de personagens femininas como protagonistas das histórias. Os romances, crônicas e contos se centram na figura de amantes entristecidas, esposas entediadas, mãe desamparadas, beatas moralistas.

Pessoalmente a escritora defendeu pautas avançadas para a época como o direito ao divórcio e ao acesso das mulheres ao trabalho.

A centralidade das personagens femininas e a crítica do casamento dão o tom do romance “A Luta (romance naturalista)” publicado postumamente em 1911.

A história se centra num casamento infeliz envolvendo temperamentos opostos: a passividade bovina de Alfredo Galvão e a personalidade instável e impulsiva de Celina.

Alfredo Galvão é amanuense, de hábitos previsíveis, pessoa sem dinheiro, sem brilho e sem posição. É o quinto e único filho vivo de D. Margarida, viúva beata, sempre vestida de preto. Justamente por ser o único parente que lhe resta, trata o filho com rigor e exerce sobre ele total domínio.

Celina por sua vez é filha de D. Adozinda,  também viúva, porém de hábitos mais liberais, dona de uma pensão no bairro de Santa Tereza, onde vive com as filhas e os demais inquilinos, muitos deles homens. As filhas vivem um ambiente de liberalidade, sendo cotejadas pelos estudantes da pensão e tendo autorização para passeios sem estarem acompanhadas pela mãe.

O casamento se dá após a partida de Gilberto, um namorado de Celina, para Minas Gerais. Galvão, mostrando a todo momento sua fraqueza, pede consentimento à mãe para pedir a mão de Celina, que a contragosto autoriza o casamento, mesmo diante da má reputação de D. Adozinda e suas duas filhas.

Celina vive um casamento com as duas sentinelas (o marido e a sogra) tolhendo-lhe a liberdade e fazendo da sua vida uma prisão. Confronta a alegria do lar familiar em Santa Tereza com a austeridade da casa da sogra. 

“Ah! Não! Era uma monotonia, um isolamento! O Alfredo parecia uma máquina: levantava-se, deitava-se, comia, palitava os dentes, saía, voltavam com uma regularidade de pêndula. E nunca tinha dinheiro para um passeio, um teatro, uma coisa imprevista, nada! Os dias arrastavam-se, sempre iguais, pesados, lentos; e ainda por cima a sogra a mandar, a dirigir, a prender e ensinar, como senhora de tudo...”.

Busca fugir do cativeiro inventando pretextos: numa suposta visita a um dentista, encontra num bonde seu ex namorado Gilberto acompanhando com enlevo de namorado sua irmã caçula Olga. Já desiludida do casamento e reacendendo o amor dos tempos de adolescente, confronta publicamente os dois e se retira para a casa da mãe, abandonando o lar conjugal.

A luta, que dá o nome do livro, se dá em torno do combate travado no espírito de Celina entre a liberdade perdida do passado e os deveres e responsabilidade de mulher casada do presente. Essa luta se desdobra no conflito final, quando a mãe de Alfredo Galvão vai até o Hotel de Santa Tereza confrontar a nora e compeli-la ao retorno do lar conjugal.

Nas entrelinhas, o combate se dá em torno do conservadorismo e do que àquele tempo era progressismo: o respeito absoluto às normas do casamento contra a liberação da mulher pelo direito ao divórcio.

E assim termina o livro “A Luta”:

“Em tais meios, a luta jamais cessa: continua sempre, entre exploradoras e exploradas. É a terrível, infindável, a eterna luta! É o renhido jogo dos interesses inconfessáveis”

domingo, 25 de fevereiro de 2024

“O Jesuíta” – José de Alencar

 “O Jesuíta” – José de Alencar



 

Resenha Livro - “O Jesuíta” – José de Alencar – Ed.  Iba Mendes Editor Digital

 

“Brasil! ... Minha pátria! ... Quantos anos ainda serão precisos para inscrever o seu nome, hoje obscuro, no quadro das grandes nações? ... Quanto tempo ainda serás uma colônia entregue à cobiça de aventureiros, e destinada a alimentar com as tuas riquezas o fausto e o luxo de tronos vacilantes (Pausa; arrebatado pela inspiração) Antigas e decrépitas monarquias da velha Euroopa! ... Um dia compreendereis que Deus quando semeou com profusão nas entranhas desta terra o ouro e o diamante, foi porque reservou este solo para ser calcado por um povo livre e inteligente” (ALENCAR, José de. “O Jesuíta”).

 

A peça teatral “O Jesuíta” foi a última obra escrita pelo escritor cearense José de Alencar enquanto dramaturgo. Foi redigida em 1861 e apenas encenada no ano de 1875, quando o autor já apresentava os primeiros sinais da tuberculose pulmonar que o levaria à morte em 12 de dezembro de 1877.

 

Consta que o espetáculo não foi um sucesso de público e não obteve os aplausos da crítica.

 

Na opinião do próprio autor, externada no prefácio da obra, o fracasso de sua peça decorreu da sua inadequação perante o mau gosto do público fluminense:

 

“É que o público fluminense ainda não sabe ser público, e deixa que um grupo de ardílios usurpe-lhe o nome e os foros. Se algum dia o historiador de nossa ainda nascente literatura, assinalando a decadência do teatro brasileiro, lembrar-se de atribui-la aos autores dramáticos, este livro protestará contra a acusação”.

 

Na verdade, essa incompatibilidade entre o drama e o público carioca decorria de mudanças no âmbito do pensamento e da cultura: já em 1875 o público letrado fluminense já era mais afeito ao anticlericalismo, ao passo que a peça é um elogio à atuação da Companhia de Jesus e dos jesuítas. Além disso, o gosto teatral deixava de ter apelo ao drama e se voltava ao teatro musicado, de gênero alegre, de influência francesa. O público buscava o teatro cada vez mais para fins de entretenimento e diversão, e aquele drama histórico, que abordava os instantes imediatamente anteriores à expulsão dos jesuítas, já aparecia anacrônico naquele momento.

 

A história contada em “O Jesuíta” se passa no Rio de Janeiro de 1759 ou mais exatamente quatro anos antes da transferência da sede administrativa da colônia de Salvador para o território fluminense, movimento político que acompanhou de forma paralela o movimento econômico de deslocamento do eixo econômico do Brasil dos engenhos de açúcar nordestinos para a busca pelo ouro e diamantes na porção sul meridional da colônia.

 

Tratava-se de um processo de longa duração de interiorização da colonização portuguesa, dentro do qual o Rio de Janeiro servia como um empório natural do comércio, especialmente de escravos, e centro político que servia de anteparo e ponto de partida ao movimento em direção às minas gerais.

 

Tanto a transferência da sede do vice reinado ao Rio de Janeiro quanto a expulsão dos jesuítas se deram no bojo das reformas administrativas levadas a cabo pelo plenipotenciário ministro e estadista português Marques de Pombal.

 

Influenciado pelo iluminismo e pela ideologia política do despotismo esclarecido, o ministro do Rei Dom José I promoveu a expulsão dos jesuítas da colônia portuguesa em 14 de novembro de 1759, o que se deu após uma série de entrechoques entre a Companhia de Jesus e as autoridades régias: os  jesuítas administraram as aldeias através das missões jesuíticas, sendo, desse modo, um obstáculo aos interesses dos colonos de explorar, sem restrições, o trabalho dos povos nativos, o que se deu de forma particularmente intensa na região do norte, onde a mão de obra africana era menos significativa.

 

Contudo, o mais conhecido conflito que opôs os jesuítas e as autoridades régias se deu nas conhecidas guerras guaraníticas ao sul da colônia, quando as Coroas Portuguesa e Espanhola estabeleceram um novo acordo de demarcação territorial através do Tratado de Madrid de 1750.  

De acordo com os novos limites territoriais estabelecidos na convenção, os portugueses cederiam a região de Sacramento, onde hoje se situa o Uruguai, para a Espanha e, em troca, controlariam os Sete Povos das Missões, que correspondia a um conjunto de sete aldeamento indígenas presididos pelos jesuítas que, no seu auge, comportava 30 mil pessoas, situado onde hoje está o Rio Grande do Sul.

 

Pelo tratado, os indígenas e jesuítas que estavam do lado brasileiro deveriam atravessar o Rio Uruguai e se mudar para o lado espanhol. Foi justamente a recusa dos índios e da parcela mais combativa dos missionários em atender a ordem de evacuação forçada o ponto de partida de uma guerra que durou três anos, levou à destruição das missões e  à morte de milhares de índios e religiosos.  

 

Na peça “O Jesuíta”, o escritor faz do seu drama um retrato desse período histórico, quando os portugueses passam a acusar a Companhia de Jesus de corrupção e conspiração contra o Rei, o que foi na verdade um pretexto para expulsá-los do país.

 

O protagonista Samuel vive na cidade do Rio de Janeiro disfarçado de um médico italiano para não despertar a atenção das autoridades, que já estavam em processo de perseguição dos missionários. Esta oposição entre os jesuítas e as autoridades régias apareça na peça como uma forma embrionária de luta pela afirmação da independência nacional e pela superação do jugo colonial.

 

Isto se dava essencialmente pelo papel social ocupado pelo jesuíta, um elemento nobre, racional e prudente, que renega os sentimentos mundanos e rompe os laços que o prendem à sociedade para se dedicar a uma missão lhe designada por Deus.

 

Perseguido pelo Conde de Bobadela, governador na colônia e executor das ordens de Marquês de Pombal, o protagonista granjeia o respeito e admiração do povo, de modo que a sua perseguição pelas autoridades dá ensejo à maior clivagem e oposição entre a população nativa e a Coroa Portuguesa.

 

Além disso, a personificação do movimento de independência nacional na figura do jesuíta Samuel era possível pelo papel social ocupado pelos religiosos da Companhia de Jesus na colônia. Eles foram os pioneiros da educação do país, criaram as primeiras escolas, onde ensinaram moral, religião e letras. Constituíram as primeiras expressões nacionais de teatro, poesia e músicas. Foram os precursores da intelectualidade brasileira e, como cediço, um movimento político nacionalista não poderia nascer sem um movimento intelectual que lhe servisse de substrato.

 

Mas não é só.

 

O jesuíta representava a consciência do povo já que através da sua atividade religiosa e até mesmo pelos segredos que escutavam no confessionário tinha contato e conhecimento do clima político da época e do que pensava a opinião público. A isso se soma, ao menos na peça de Alencar, outros atributos que o colocavam como artífices da independência brasileira: eles tinham o senso de responsabilidade, o sentimento do dever, a capacidade de distinguir o bem e o mal. Já as autoridades régias aparecem como antipopulares e corruptas: a perseguição e prisão dos missionários é acompanhada de atos de extorsão e roubo dos recursos e riquezas da Igreja, arrecadados para o cuidado dos doentes e dos órfãos.

 

Nesta peça histórico, o Dr. Samuel representa a alma da jovem américa. Já o Conde de Bobadela representa o poder da velha Europa.   

 

E além dessa oposição entre nacionalismo e colonialismo, a história, dentro das premissas do romantismo literário, também estabelece a oposição entre o sublime e o mundano, entre os  desígnios da ideia e às exigências do corpo e do amor, entre a renúncia de si para obtenção da glória religiosa e a busca da felicidade através do casamento. Isso se dá através do personagem Estevão, afilhado do Dr. Samuel, que teve sua formação moral e religiosa conduzida para o sacerdócio e que nega sua vocação após apaixonar-se por Constância, esta última afilhada do Conde de Bobadela.

 

O engajamento religioso e a luta desinteressada em torno da liberdade e independência nacional envolvem a glória a que busca o protagonista Samuel. Já o seu afilhado vê no casamento e na tranquila felicidade conjugal a sua verdadeira vocação. Essa tensão levará ao conflito em que prevalecerá o amor terreno entre Estevão e Constância em detrimento do ideal religioso e ascético buscado por Samuel.  

 

Esta última peça de teatro pode ser lido como uma síntese de duas variantes presentes na obra de José de Alencar: o drama histórico pelo qual se busca a constituição de uma identidade nacional,  personificada aqui na figura do Jesuíta, tal qual anteriormente o fora através do índio em comunhão com o português; e o drama de natureza mais sentimental, folhetinesco, convencional e, em certa medida, previsível.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A História de São Sebastião do Rio de Janeiro

 A História de São Sebastião do Rio de Janeiro




Resenha Livro – “História do Brasil Geral e Regional. Rio e Minas” – Ernani Bruno – Ed. Cultrix

“Primeiro, os feitores das plagas solitárias de Cabo Frio e do Rio de Janeiro, abrigados em choças cobertas de folhas de palmeira, açoitadas pelas chuvas tropicais, resgatando o pau-de-tinta com o bugre e plantando alguma cana para terem o açúcar com que combater o escorbuto. Os donatários e povoadores que nas paragens costeiras espírito-santenses e fluminenses, entravam em contato ou em luta com o índio, edificando povoações e engenhos, sem se descuidarem do corsário francês interessado na coleta do pau-brasil e da pimenta nativa. Os padres jesuítas que exilavam nas solidões do Novo Mundo ensinando a doutrina cristã e os ofícios caseiros nos aldeamentos de indígenas e nos colégios e casas cobertas de telha que erguiam nas povoações.”.

Os primeiros contatos do colonizador português com o território onde hoje se situa a cidade do Rio de Janeiro deu-se quase imediatamente após o “descobrimento” do Brasil pela expedição de Pedro Álvares Cabral.  

Ao invés de se falar em “descobrimento”, hoje a historiografia com mais propriedade fala em  “achamento” do Brasil.

O verbo “achar” remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde se situaria a maior e mais importante colônia portuguesa.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese.

O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolvia parte do território brasileiro.

Não faria sentido as duas principais potências marítimas da época firmarem um tratado diplomático sem informações minimamente consistentes sobre os limites e porções territoriais que foram repartidos a cada uma das coroas.  

O conhecimento destas terras pelos portugueses muito provavelmente data dos últimos anos do século XV. Tratava-se de um segredo de estado que seria revelado ao público e sacramentado através da conhecida expedição cabralina.

Já em 1501, uma expedição de reconhecimento da costa brasileira bordejou o litoral da porção meridional ao sul do país e denominou os locais de acordo com impressões e acidentes da própria viagem: Cabo de São Tomé, Cabo Frio e Rio de Janeiro.

O nome da cidade que seria no futuro a capital do Brasil foi dado após os portugueses chegarem na baía da Guanabara, onde se supôs se tratar da foz de um rio. Como a embarcação lá chegou em 1º de Janeiro de 1502, ficaram aquelas terras denominadas “Rio de Janeiro”.

Os primeiros esforços de reconhecimento e povoamento da região foram quase sempre  inviabilizados pela resistência dos índios tamoios, que logo se aliariam aos traficantes franceses que aqui chegaram para comercializar o pau brasil.

Neste primeiro momento, foram estruturadas feitorias em Cabo Frio e Rio de Janeiro, com reduzidas condições de desenvolvimento. A organização da vida econômica dava-se em torno de atividades de coleta, exploração do pau brasil, pesca e criação de mandioca, cana e gado.

A primeira forma de institucionalização do território fluminense deu-se através da criação da Capitania do Espírito Santo por meio de doação por carta de 1535 a Vasco Fernandes Coutinho e da Capitania de São Tomé ou da Paraíba do Sul por meio de doação por carta de 1536 a Pero de Góis Silveira.

Contudo, mesmo após a criação do Governo Geral (1549), quando Portugal implantou um novo sistema administrativo para melhor aproveitamento e ocupação humana da colônia, toda a área costeira do leste meridional brasileiro continuava deserta, ostentando, em um ou outro ponto, alguns arraiais e feitorias insignificantes do ponto de vista econômico.

Os poucos empreendimentos iniciados pelos colonos eram rapidamente atacados e destruídos pelos bugres tamoios. Não foram poucos os colonos portugueses trucidados por índios enfurecidos.

A sobrevivência dos moradores da região estavam condicionadas aos recursos da terra e às roças dos indígenas. Os recursos alimentícios se limitaram à farinha de mandioca e ao pescado.

Neste cenário de vazio populacional, aparece a figura dos traficantes franceses que inicialmente comercializaram o pau brasil e a pimenta e já em meados do século XVI aqui estabeleceriam a França Antártica.

A ocupação francesa e a constituição da França Antártica não decorreu apenas de desígnios econômicos, relacionados ao contrabando francês, mas a razões religiosas. O rei da França e seus correligionários protestantes calvinistas pretendiam reservar para os de sua seita um refúgio seguro no Novo Mundo, confiando a expedição de conquista ao almirante Durand de Villegagnon.

A fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro deu-se no bojo da luta pela expulsão dos franceses.

Tratava-se de certa forma de um movimento de libertação nacional levado adiante por portugueses, mamelucos e índios que encontraria paralelo na heroica luta nacional pela expulsão dos holandeses já no século XVII.

Muito se fala hoje em dia na luta anti imperialista dos vietnamitas contra os americanos ou mais recentemente dos afegãos que se organizaram em torno do talebão para colocar o inimigo estrangeiro literalmente em fuga desesperada.

No caso da mobilização pela expulsão dos franceses e holandeses, tratou-se de uma vitória de maior envergadura. Os mamelucos, mestiços e índios, que constituíam de forma embrionária o povo brasileiro, lutaram contra grandes potências coloniais praticamente sem ajuda da Coroa portuguesa ou qualquer apoio que não fosse os recursos da terra.

Da primeira expedição militar comandada por Mem de Sá em 1560 até a efetiva vitória sobre o invasor francês com a campanha levada adiante por Estácio de Sá, foram quase dez anos de lutas.

A campanha decisiva, levada adiante por Estácio de Sá, teve auxílio de navios oriundos de Bertioga, conduzindo índios, mamelucos e colonos vicentinos. A vitória sobre o elemento estrangeiro seria complementada no ano de 1575 pela guerra vitoriosa travada pelos moradores da região contra os bugres tamoios.

Ainda assim, o território fluminense apenas passaria a se constituir como o principal centro urbano da colônia em meados do século XVIII quando seu eixo econômico deixa de ser os engenhos de açúcar do nordeste para passar a ser exploração do ouro e diamante na região onde hoje se situa o estado de Minas Gerais.

Fenômeno que seria sacramentado com a transferência da sede administrativa colonial de Salvador para o Rio de Janeiro no ano de 1763, ocorrido no bojo das reformas de Marquês de Pombal.   

Desde então, a cidade do Rio de Janeiro se constituiu como o mais importante centro político cultural do país, ao menos até a expansão da economia do café desde o Vale do Paraíba até o território paulista. Mesmo não sendo hoje o centro econômico mais importante do Brasil, o Rio de Janeiro segue sendo um dos ou o mais importante centro de elaboração e orientação nacional em torno do pensamento, das letras e das artes.

domingo, 28 de janeiro de 2024

A Literatura de Joaquim Manuel de Macedo

 A Literatura de Joaquim Manuel de Macedo





O romance mais conhecido do escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo (1820/1882) é certamente “A Moreninha”, publicado em forma de folhetins e lido predominantemente pelo público feminino nos meados do século XIX.  

 A importância da obra não reside tanto nos seus êxitos literários, mas no seu pioneirismo.

Foi escrita em 1844, quando o Brasil era governado por D. Pedro II (2º Reinado 1840/1889) e não existe muito dissenso entre os especialistas ao entenderem que se tratou do primeiro escrito que podemos chamar de “romance” até então realizado no país.

Não deveria ter sido fácil escrever o romance sem que houvesse até então qualquer tradição literária anterior, que pudesse dar sustentação a uma linguagem ficcional, com tema, enredos, estilos literários, etc.

Até então, as poucas referências literárias existentes eram as histórias de Texeira e Souza (1812/1861) e as novelas francesas publicadas no Brasil a partir de 1817. A influência dos folhetins franceses na literatura Brasileira é notória. Posteriormente, boa parte da produção de Machado de Assis, nitidamente nas suas produções românticas (Ressurreição de 1872, A Mão e a Luva de 1874, Helena de 1876 e Iaiá Garcia de 1878) também seriam tributárias desta literatura associada ao jornalismo, cujos capítulos dos romances eram publicados periodicamente na impressa, e, como dito, na maioria das vezes lidos pelo público feminino.

Em todo o caso, quem teve apenas contato com a obra de Macedo através da leitura do seu romance mais famoso, talvez se deixe enganar pensando se tratar de um escritor meramente convencional, cujo interesse literário se limita ao seu pioneirismo.

Há outros livros que suscitam o interesse do leitor que queira entrar em contato com o pensamento social e político do Brasil do Século XIX. Essas obras menos conhecidas refletem  a trajetória de vida do nosso escritor, que transitou pela política, jornalismo e pelo estudo da História do Brasil.

Formado em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro em dezembro de 1844, não chegou a atuar como médico, abraçando desde cedo a carreira literária. Como jornalista, colaborou em diversos periódicos fluminenses, escrevendo romances, poemas e peças de teatro. Foi deputado provincial nas legislaturas de 1864/1868 e 1871/1888. Renunciou a uma pasta de gabinete de 1864 e candidatou-se a Senador do Império

Manteve relações com o Imperador Dom Pedro II, chegando a ser preceptor e professor dos filhos do chefe de governo.  

Como historiador, exerceu o magistério no Colégio Pedro II, além de sócio fundador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Tal instituto teve como protetor o próprio Imperador e foi constituído para a coleta e publicação de documentos relevantes da História do Brasil e para o incentivo do ensino dessa disciplina.

Na condição de político do Império, Macedo posicionou-se contra a escravidão no romance “Vítimas Algozes”, publicado em 1869, pouco depois do primeiro mandato como deputado provincial.

O abolicionismo do escritor não se deu propriamente por considerações humanitárias ou por um senso de justiça. Tais premissas aparecem de forma subsidiária no livro. O principal aspecto do problema da escravidão que leva o escritor a se posicionar pela abolição deu-se pelos efeitos maléficos da instituição no seio da sociedade e da família.

Ou seja, tratava-se de uma defesa do regime social vigente, incluindo a família patriarcal, em face dos efeitos desagregadores do regime escravista.  

Em “Vítimas Algozes”, vê-se a influência negativa das escravas domésticas que articulam contatos e namoros entre a sinhá e pretendentes, muitas vezes através do suborno e não raro ensejando a desonra da mulher branca. Aborda-se também a criminalidade subjacente ao regime escravagista: o escravo que se vinga do seu senhor através do assassinato, da destruição das fazendas e do envenenamento. A abolição aqui não é um instrumento de mudança da estrutura social mas, pelo contrário, um meio de preservá-la.

Na condição de historiador, nosso escritor publicou um romance histórico chamado “As Mulheres de Mantilha” (1870) que consiste numa fonte documental fundamental para se conhecer a história do Rio de Janeiro (então chamada São Sebastião do Rio de Janeiro) exatamente no momento em que a cidade foi elevada à condição de Vice-reinado da colônia, passando a ser o centro administrativo do país, em substituição à cidade de Salvador.

A transferência deu-se em dezembro 1763, no bojo das reformas de Marques de Pombal, primeiro ministro do rei Dom José.

A alteração da sede administrativa acompanhou a alteração do eixo econômico da colônia: inicialmente a cana de açúcar e posteriormente o ciclo da mineração, que deslocou  o centro econômico do país para o sudeste. A transferência acompanhou outras reformas de Pombal que impactaram a produção e o controle da atividade mineradora do Brasil, como a expulsão dos jesuítas e uma nova forma de controle de cobrança de impostos.

O romance se passa entre 1763/1767 durante o reinado do conde da Cunha, que foi o primeiro Vice rei mandado para a nova capital da cidade.

“Os quatro anos que correram de 1763/1767 não foram por certo dos mais suaves e agradáveis para os habitantes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, embora muitos ufanos e orgulhosos devessem eles estar em consequência da definitiva mudança da capital do Brasil que passara da primogênita de Cabral para a bela filha de Mem de Sá, assumindo com caráter de permanência o chefe da grande colônia portuguesa da América a graduação e hierarquia de vice-rei.

Mas o primeiro vice-rei que D. José ou por ele o marquês de Pombal despachou para o Rio de Janeiro, e que governou o Brasil desde 16 de outubro de 1763 até 21 de novembro de 1767, foi D. Antônio da Cunha, conde do mesmo título, homem talvez animado de boas intenções, porém tão facilmente irritável como violento e déspota”.

Àquele momento, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ainda se constituía como um povoamento simples, a despeito daquele território já ter sido ocupado pelo menos desde os primeiros anos do século XVI.

Os primeiros esforços de reconhecimento e povoamento daquela região, no início dos 1500, foram inicialmente dificultados pela resistência dos bugres tamoios, aliados aos traficantes franceses.

Aos poucos, a cidade foi se constituindo como o principal núcleo urbano da região, sendo estruturada a atividade econômicas em torno de atividades de coleta, pesca e produção de mandioca, cana e gado. Já ao momento da transferência da sede da colônia, o Brasil passava pela internação do seu povoamento após o descobrimento das jazidas de Minas Gerais, período histórico no qual se passa o romance.

A história basicamente retrata a vida da cidade de São Sebastião sob o primeiro vice-reinado do conde da Cunha, período em que a exploração das minas ensejou um recrudescimento de  práticas autoritárias e extorsivas da metrópole sobre a colônia.

A corrupção e violência do regime são levadas adiante principalmente por Alexandre Cardoso,  que era uma espécie de primeiro ministro do Vice Rei.  Enquanto o primeiro vendia cargos no governo a troco de dinheiro, ameaçava os moradores com o recrutamento militar obrigatória e se entregava ao vício do jogo de apostas, o segundo fazia vistas grossas aos abusos do seu assessor, ensejando um clima de descontentamento político. Em se tratando de um regime tirânico, as vítimas não tinham direito à queixa: porque a queixa era insulto e crime punidos imediatamente e com descomedimento brutal. Os moradores serviam então de pasquins e lundus (música popular) em que debochavam anonimamente do poder constituído.  

O enredo segue um estilo folhetinesco característico do autor.

Alexandre Cardoso, externando sua concupiscência sexual, deseja Inês, filha de um honrado comerciante português chamado Jerônimo Lírio. O vilão articula diversos meios (lícitos e ilícitos) de tomá-la em casamento, encontrando óbvia resistência do pai, dado o notório comportamento desregrado do assessor do Vice Rei.

Com a recusa, o vilão engaja alguns colegas do regimento militar para que simulem um ataque de bandoleiros à família de Lírio: no seu plano, imediatamente após o ataque dos militares transvestidos de criminosos, surgiria e salvaria Inês, aparecendo como herói. Assim, franquearia a casa de Jerônimo e se credenciaria como legítimo marido de Inês. Contudo, nesse ataque surge a figura do jovem Isidoro, que combate sozinho os criminosos e salva a pretendente de Alexandre Cardoso. Inês apaixona-se por Isidoro, enquanto Cardoso é denunciado ao Rei que o castiga remetendo-o à Europa, onde morre na miséria

A triangulação amorosa, a derrota e desmoralização do vilão e o casamento de Inês com o homem que ama são elementos típicos do romantismo, com o seu sentimentalismo e suas idealizações do herói, do amor e da mulher. Mesmo sendo um romance convencional (e até certo ponto previsível), sua importância, assim como nas demais obras, reside menos nos méritos literários e mais na forma como retratam o pensamento da época e a história do país.   

 Bibliografia.

“As Mulheres de Mantilha” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Iba Mendes

“Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Iba Mendes.

“História do Brasil: geral e regional” – Ernani Silva Bruno. Ed. Cultrix

sábado, 13 de janeiro de 2024

“História do Brasil” – Afrânio Peixoto

 “História do Brasil” – Afrânio Peixoto





Resenha Livro – “História do Brasil” – Afrânio Peixoto – Iba Mendes Editor Digital

 

Afrânio Peixoto publicou a sua História do Brasil em 1944, três anos antes de sua morte. Nascido no interior da Bahia, foi médico, deputado federal por seu estado natal e estudioso da cultura brasileira: de acordo com Pedro Calmon, outro grande historiador brasileiro, foi o nosso principal estudioso da obra de Camões e Castro Alves.

Na sua História do Brasil revela ser um discípulo de um dos nossos maiores historiadores: Capistrano de Abreu. E de fato, compartilhava alguns pontos de vistas comuns ao autor do Capítulos da História Colonial.

Por exemplo, foi um crítico das bandeiras paulistas, ao vê-las essencialmente como atividade fora da legalidade e desumana. Do ponto de vista institucional, estava correto: desde 1605, quando emergem as bandeiras, a Coroa proclama os índios como livres e em 1609 são os nativos equiparados aos colonos, tendo os jesuítas como curadores.

Obviamente, a crítica de Peixoto e de Capistrano em relação às bandeiras não guarda a mais pálida semelhança com iniciativas como a do ataque da estátua do Borba Gato promovida há dois anos pelo setor da esquerda vinculada às ongs estrangeiras. O atual ataque à memória dos bandeirantes é antes de tudo um movimento de propaganda ideológica de destruição do patrimônio imaterial do Brasil:  aniquilamento do passado e da nossa identidade como um primeiro passo para o aprofundamento da espoliação e saque das riquezas nacionais, materializadas principalmente na proposta de internacionalização da Amazônia e balcanização do país, conquanto foram as bandeiras que lançaram as bases da ocupação e consolidação das nossas fronteiras.

Peixoto não deixa de reconhecer a importância das bandeiras na configuração do nosso território e para a estruturação da nossa unidade linguística e cultural. Era porém simpático aos jesuítas que objetivamente se colocavam em oposição aos sertanistas, o que provavelmente explica a antipatia com os bandeirantes. Via as missões jesuíticas como um esteio da civilização não só dos índios, mas dos colonos de vida desregrada: compreendia, em todo o caso, a complexidade do problema e não deixou de reconhecer os méritos das entradas e bandeiras.    

“Essas entradas e bandeiras para descer índios escravos e devassar o sertão em busca de minas, dão endereço ao Brasil colonial predador, agrário, criador e mineiro. Os objetivos saíram um dos outros e misturaram-se. Eles trouxeram a consequência da integração do país além do litoral possuído.

(...)

As entradas despovoadoras, captando o índio, deixavam estradas no deserto, para a civilização: evidentemente o manso processo colonizador dos Jesuítas, de José Bonifácio, do General Rondon, seria preferível: mas a violência dos bandeirantes tem justificações de Varnhagen, de Von Ihering e de todos os coloniais europeus com os povos bárbaros. Aliás nem sempre eles, selvagens, têm a docilidade resignada. O mundo é dos capazes; é a lei de ferro da natureza e da civilização. O mesmo santo e doce Anchieta chegava à exasperação, para catequizar o índio: dizia que para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de ferros”. (pg. 108/109)

Vê-se portanto que é possível ter uma posição crítica sobre o problema das bandeiras sem com isso levar adiante uma campanha antinacional de destruição da memória brasileira.

Outro aspecto que faz esta História do Brasil estar a anos luz de distância das mais recentes tendências historiográficas diz respeito à centralidade que o Autor dá ao português na constituição do Brasil, ao passo que hodiernamente tem sido o elemento lusitano basicamente desqualificado como um invasor inoportuno e um genocida de índios.

Os capítulos iniciais do ensaio de Peixoto tratam dos primeiros empreendimentos da navegação portuguesa desde 1415 quando da Tomada de Ceuta por Dom João I: o papel dos portugueses é o de derramar a cultura mediterrânea pelo mundo através da navegação, considerando o historiador que as comunicações são  a causa primeira da civilização: nestes contatos, a convivência multiplica ações e reações psicológicas, que se tornam experiências e colaborações inovadoras e afinam o homem em sentimento, inteligência, vontade, como fazem iniciativas, empresas e progresso social.” (Pg. 6).

Gradualmente, os navegadores portugueses vão circunscrevendo o continente Africano como meio alternativo de rota às Índias, o que se tornou necessário particularmente depois da impossibilidade de prosseguimento da via tradicional pela tomada de Constantinopla pelos Turcos em 1453.

Em 1444, Denis Dias atinge o Cabo Verde e no ano sequente Nuno Tristão descobre a Senegâmbia. Em 1469 dá-se a descoberta do golfo da Guiné. Em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança. Finalmente, Vasco de Gama torna-se o primeiro europeu a atingir a Índia atravessando os oceanos Atlântico e Índico, quando chegou a Calicute, em 20 de maio de 1498, abrindo assim o caminho para as Índias. E, finalmente, em 22 de abril de 1500, numa quarta feira à tarde, Pedro Álvares Cabral avista o Brasil, atingindo o território onde hoje se situa a cidade de Porto Seguro/BA.

Afrânio Peixoto muito propriamente diz ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo achar remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro, como se vê no mapa abaixo descrito:

 

Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento do território, exploração e defesa. Na expedição foram localizados portugueses degredados que possivelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes do 1500. Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente.

Afrânio Peixoto, ao prefaciar o seu livro, diz ainda não haver, em meados do século XX, uma efetiva História do Brasil. Ele fala em meio milhão de documentos, no arquivo Colonial, em Lisboa, à espera dos pesquisadores.

O que tínhamos até então, segundo o intelectual baiano, são “ensaios” subscritos por aqueles que até hoje melhor escreveram a nossa história: desde Varnhagen, passando por Capistrano de Abreu, Afonso de Taunay, Pedro Calmon e, na história econômica, Simonsen.

Quando se coteja esses grandes pensadores do Brasil com o que tem sido produzido e divulgado em termos de História do Brasil atualmente, temos que concordar com essa tese: a História do Brasil ainda está para ser escrita.