domingo, 24 de julho de 2022

OS CONTOS DE MONTEIRO LOBATO

OS CONTOS DE  MONTEIRO LOBATO




 

Resenha Livro – “Urupês” – Monteiro Lobato – “Contos Completos” – Ed. Biblioteca Azul.

  

“A sua roça, as suas personagens não são coisas de moça prendada, de menina de boa família, de pintura de discípulo ou discípula da Academia Julien: é da grande arte do nervoso, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamento saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. Ele começa com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra coisa, pega a espátula, os dados e tudo o que ele viu e sentiu e sai de um só jato, repentinamente, rapidamente.”. LIMA BARRETO

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo – neste caso foi pioneiro, tendo sido preso em março de 1941 durante o Estado Novo por ter enviado carta a Getúlio Vargas e ao general Góis Monteiro, chamando atenção para  displicência do sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional do Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”.

  

É certo que a leitura de parte de suas obras pode surpreender um leitor desatento, que não relacione algumas ideias tidas como racistas com as teses sociológicas então em voga no país entre os fins do século XIX e o início do século XX.

  

Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse censurar os livros Monteiro Lobato por conta de suas teses raciais.

 

O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa maiores comentários.

 

Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as críticas da miscigenação e as propostas do embranquecimento da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha à Joaquim Nabuco.

 

Sim, o mesmo líder abolicionista, frequentemente lembrado por suas campanhas em prol da libertação dos escravos, refutava no parlamento a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais. Joaquim Nabuco, amigo íntimo de Machado de Assis, censurou o crítico literário José Veríssimo quando, após a morte do Bruxo do Cosme Velho, em artigo, Veríssimo chamava atenção para o fato de que nosso maior romancista fora da cor preta.  Na opinião de Joaquim Nabuco, a despeito do fenótipo do falecido escritor, a sua alma era branca e o artigo de Veríssimo depunha contra o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.  

 

Fato é que o pensamento eugênico era tipo como ciência pelo menos desde 1870 até os anos de 1930.

  

No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonarem, de forma gradual, os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e salubridade.

  

Importante papel foi cumprido por Gilberto Freire no seu “Casa Grande e Senzala” (1933), dizendo que os problemas do brasileiro não diziam respeito à raça ou à miscigenação envolvendo negros, índios e portugueses,  mas à salubridade, à saúde, à alimentação e à higiene.

 

Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento de Jeca Tatu.

 

Quem lê com atenção o “Casa Grande e Senzala” observa que a refutação das teses eugenistas e raciais em Gilberto Freire dizia debates que ainda estavam na ordem do dia. Casa Grande e Senzala e sua proposta de explicação da especificidade da formação nacional Brasileira envolvia novidades no campo metodológico, buscando chaves explicativas na cultura, na sexualidade, na vida íntima e nos hábitos de alimentação e higiene.

 

Ora, lendo os contos de Monteiro Lobato redigidos entre anos 1900-1920 verifica-se que o escritor Paulista foi nada menos do que um pioneiro na superação de teses puramente raciais na explicação da realidade nacional.

 

Sua autocrítica sobre as considerações raciais do Jeca Tatu data de 1916, quase 20 anos antes da publicação do “Casa Grande e Senzala”. Em outras palavras, Monteiro Lobato, ao contrário do propagado, tinha uma opinião avançada para a época sobre o problema racial.

 

Válido lembrar que o grande escritor carioca Lima Barreto, desprezado em vida por sua origem social e racial, injustamente não reconhecido em vida, teve o seu primeiro livro publicado por....Monteiro Lobato.

 

Conforme texto de Beatriz Resende[1]:

 

“Monteiro Lobato teve um papel de fundamental importância na vida e na obra de Lima Barreto, não só como estímulo intelectual em momentos em que o escritor desanimava com o pouco sucesso de sua literatura, mas na divulgação e permanência da obra do romancista. Foi pela decisão de Lobato editor que Lima Barreto publicou um romance, pela primeira vez, impresso no Brasil. Ao contrário do que acontecera com “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, impresso em Portugal às custas do próprio autor, Monteiro Lobato publica “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá” em São Paulo. E, ainda que a edição saia “matadinha”, como diz Lobato, Lima Barreto, pela primeira vez é pago por seu trabalho como romancista.”.   

 

SOBRE URUPÊS

 

Urupês é o primeiro livro publicado pelo escritor de Taubaté, lançado em 1918, muito antes de suas famosas obras infantis.

 

O escritor tinha então 36 anos e era tido como o principal crítico de artes visuais da imprensa paulista, mediante publicações no Estado de São Paulo, que vão de 1915 a 1919.

 

É deste período a publicação do tão mal compreendido artigo contra as pinturas modernistas de Anita Malffalti.

 

As reações negativas da crítica de Lobato teria sido, para alguns, o ponto de partida de articulação do movimento modernista, o que é falso. Em primeiro lugar, temos que Lobato e sua literatura realista, tratando das condições de vida dos matutos do interior paulista, certamente é uma precursora do modernismo literário – existe um evidente fio condutor entre “Urupês” e, por exemplo, os romances regionalistas da chamada geração de 1930, escritos por Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Amado Fontes, etc.

 

Tanto é assim, que o primeiro intelectual que foi convidado a ser patrono da Semana de Arte Moderna de 1922 foi ninguém menos que Lobato, que recusou o convite. Durante a exposição de São Paulo, Malffalti sequer estava no Brasil, mas na Europa, só tendo retornado ao Brasil em 1928.

 

Em todo o caso, o realismo presente nos contos de Monteiro Lobato de uma certa maneira era e versão literária de quadros do pintor naturalista Almeida Júnior. Fazia sentido, portanto, as críticas aos aspectos formais da arte de Malffati, que neste ponto não eram brasileiras, mas europeias, baseadas nas vanguardas artísticas dos anos de 1920/30.

 

Em Urupês são reunidos 14 contos, 12 deles retratando pequenas histórias que se passam no interior paulista.

 

Trata-se de “causos” que retratam a vida de pequenos funcionários públicos (“Um Suplício Moderno”), fazendeiros endividados (“O Comprador de Fazendas”), rixa entre vizinhos (“A Vingança da Peroba”), casamentos por interesse (“O Estigma”) e até mesmo o folclore e as lendas populares das pessoas do campo, tratados em “Bocatorta”, em que um velho e odioso matuto, filho bastardo de uma escrava e senhor de engenho, “disforme, horripilante como não há memória de outro”, assombra a população do arraial do Atoleiro, causando, por razões inexplicáveis, a morte e a desgraça daqueles que com ele se encontram, tal qual o Curupira e o Saci Pererê.

 

Já os últimos dois contos da Coletânea, denominados “Velha Praga” e “Urupês”, não são pequenas histórias e mais crônicas tratando criticamente a situação do caboclo paulista, frequentemente denominado como “Jeca Tatu”:

 

“De pé ou sentado as ideias lhe entram, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.

 

De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para ‘aquentá-lo’, imitado da mulher e da prole.

 

Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo da foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras.

 

Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira, é de cócoras, como um faquir de Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúva ou o feixe de três palmitos.

 

Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio da realidade”.

 

A crítica da idealização do indígena pelos românticos é explícita e aparece logo no começo do conto Urupês, tudo a confirmar que Lobato não era um opositor mas um precursor do modernismo.

 

Cabe a ele e a Lima Barreto, a despeito de alguns antecessores como Aluísio Azevedo com seu Cortiço e Manual Antônio de Almeida com seu Memórias de um Sargento de Milícias, a primeira manifestação de uma arte intensamente popular. A descrição da realidade através da experiência e do contato direto, e não por uma leitura de gabinete, como os índios rousseaunianos de José de Alencar ou os quadros experimentais de Malfatti.  

 

Estes contos certamente são uma fonte preciosa de conhecer a cultura popular e uma parte da história do Brasil.  Neste sentido, não nos restam dúvidas de que os ataques à Monteiro Lobato, pela sua inconsistência, são parte de uma agenda anti-nacional, impulsionada por setores intelectuais vinculados, conscientemente ou não, à agenda imperialista norte-americana.



[1] RESENDE, Beatriz. “Os Imprescindíveis Contos de Monteiro Lobato”.  Ed. Biblioteca Azul.

terça-feira, 5 de julho de 2022

“Os Contos de Lima Barreto”

 “Os Contos de Lima Barreto”




 

Resenha Livro – “O Homem Que Sabia Javanês e Outros Contos” – Lima Barreto – Ed. Principis

 

“Sofrimentos de toda a ordem caíram sobre o pobre povo da roça e do sertão; privações de toda a natureza caíram sobre ele; e colaram-lhe a fria sanguessuga, a ventosa dos impostos, cujo produto era empregado diretamente, num fausto governamental de opereta, e, indiretamente, numa ostentação ridícula de ricos sem educação nem instrução. Para benefício geral, nada!

 

A Bruzunganga era um sarcófago de mármore, ouro e pedrarias, em cujo seio, porém, o cadáver mal embalsamado do povo apodrecia e fermentava.

 

De norte a sul, sucediam-se epidemias de loucuras, umas maiores, outras menores. Para debelar uma, foi preciso um verdadeiro exército de vinte mil homens. No interior era assim; nas cidades, os hospícios e asilos de alienados regurgitavam. O sofrimento e a penúria levavam ao álcool, “para esquecer”; e o álcool levava ao manicômio”.  (“O Falso Henrique V – Episódio da História de Bruzundanga” – Lima Barreto).

 

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no ano de 1881, mesmo ano, por sinal, do nascimento de Monteiro Lobato e sete anos antes da abolição da escravatura no Brasil.

 

Como se sabe, Lima Barreto foi escritor que não teve o devido reconhecimento do público até a sua morte precoce aos 41 anos de idade, de colapso cardíaco, após constantes crises de depressão e duas internações no Hospício Nacional (em 1914 e em 1919) pelo uso abusivo de bebida alcóolica.

 

Monteiro Lobato foi um dos poucos àquele tempo que já reconhecia plenamente o talento de seu colega escritor carioca: há uma carta do escritor de Taubaté de data de 01/10/1916 endereçada à Godofredo Rangel em que Lobato tece fortes elogios a Lima Barreto, na época solenemente ignorado pela elite intelectual do país por puro preconceito racial.

 

De uma certa maneira, a literatura regionalista de Lobato, retratada nos seus contos para público adulto em livros como “Urupês” e “Cidades Mortas”, teria o mesmo enfoque sobre as condições de vida dos extratos mais baixos da sociedade Brasileira da Velha República.

 

No caso de Lobato, o caipira vexado de doenças causadas pela insalubridade e pelo abandono governamental.

 

No caso de Barreto, esta ênfase se dá em torno das populações do subúrbio carioca, envolvendo tipos populares como o funcionário público de baixo escalão, vendedores ambulantes, vadios de toda a espécie e os demais trabalhadores livres e pobres da cidade do Rio de Janeiro.

 

Nos dois casos, foram precursores do romance social e regionalista da geração de 1930: Rachel de Queiroz, Graciano Ramos, José Lins do Rego, etc.

 

A temática da ascensão social condicionada aos favores e ao nepotismo é frequente na literatura limabarretiana:

 

“Na secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre ‘auxiliar de gabinete’ arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristãos, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoa eclesiástico.

O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

Tinha ele uma filha a casar e o ‘auxiliar de gabinete’ logo viu, no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala de ouro.”. (“Três gênios de secretaria”).

 

Esta lógica do favorecimento pessoal caminha pari passo com a mediocridade intelectual de um punhado de bacharéis e jornalistas, adoradores da forma naquilo que havia de pior no parnasianismo, cujo conhecimento não se media pela sua coerência, clareza e correção, mas pelo diploma universitário e pelo favor.  

 

Nas palavras do escritor carioca, o bacharel dá-se a importância de uma sumidade em qualquer departamento do pensamento humano, ao mesmo tempo que odeia os rábulas e os não formados.

 

O próprio Lima Barreto dependeu da proteção pessoal do Visconde de Ouro Preto, que empregara o pai na Imprensa Nacional, e garantiu que o filho matriculasse na Escola Politécnica. Lima Barreto frequentou o curso entre 1897 e 1903, abandonando a faculdade sem conclui-la.

 

Do ponto de vista político, a rebeldia do escritor aproximava-o dos maximalistas, fazendo-o elogiar a revolução russa, ao mesmo tempo que, contraditoriamente, odiava a república e encarava-a como um retrocesso em relação à monarquia.  

 

Nas palavras do escritor em 1918:

 

Precisamos deixar de panaceias: a época é de medidas radicais. Não há quem, tendo meditado sobre este estupendo movimento bolcheviquista (bolchevique), não lombrigue nele um alcance de universal amplitude sociológica”.

 

Ou em outro artigo:

 

“...cabe bem aos homens de coração desejar e apelar para uma convulsão violenta que destrone e dissolva de vez essa societas sceleris de políticos, comerciantes, industriais, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam, nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio de exterminá-la[1]”.

 

Em todo o caso, é nítido nos trabalhos de Lima Barreto o ressentimento pessoal do escritor, que em diversos trabalhos projeta suas dificuldades pessoais em personagens como Clara dos Anjos, vítima do racismo, como Policarpo Quaresma, vítima da politicagem da República ou Isaías Caminha, jornalista que convive com a mencionada “elite intelectual” completamente incapaz de deduzir ideias próprias e originais.

 

Contudo, este iconoclastia do escritor se expressava não pelo panfleto político, mas através do humor, da ironia e de uma certa melancolia, que se expressam na figura patética (engraçada e ao mesmo tempo triste) de seu mais famoso personagem, o patriota Policarpo Quaresma.

 

Nas palavras do crítico Alfredo Bosi, “tal duplicidade de planos, o narrativo (relato dos percalços do brasileiro em sua pátria) e o crítico (enfoque dos limites da ideologia) aviva de forma singular a personalidade literária de Lima Barreto, em que se reconhece a inteligência como força sempre atuante.”.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix.   



[1] “A CRÔNICA MILITANTE DE LIMA BARRETO” – Paulo Marçaioli – In: http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/10/a-cronica-militante-de-lima-barreto.html

sábado, 2 de julho de 2022

“As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo

 “As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo





Resenha Livro - “As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo – Companhia das Letras – 6ª Reimpressão.

 

“O nosso espanto foi enorme. Abria-se na nossa frente a grande baía. Dentro dela, balançando-se de leve, estavam pousadas umas doze ou treze embarcações como nunca tínhamos visto em toda a nossa vida. Nós cortávamos os rios e o mar nas nossas igaras, barcos compridos e rasos, feitos em geral de troncos de árvores. Mas agora era diferente.... Tratava-se de barcos altos, compridos, largos, todos cheios de mastros, cordas, panos, bandeiras... Eu estava de boca aberta. Olhava muito admirado para as bandeiras coloridas que ondulavam ao vento no cordame dos navios. E só cem anos depois é que eu iria aprender que aquela era a frota portuguesa que descobria o Brasil! Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra, por nós chamada Pindorama – terra boa e grande, onde nossa tribo e muitas outras corriam livres, acampando aqui e ali, caçando, pescando, dançando, guerreando.”.

 

“As Aventuras de Tibicuera” (1937) é um dos muitos livros destinados ao público infantojuvenil escrito pelo romancista gaúcho Érico Verissimo.

 

O romance faz uma síntese da história do Brasil, desde os anos anteriores à chegada dos Portuguesas, partindo de uma tribo tupinambá, em que nasceu o protagonista Tibicuera, cujo nome significa “cemitério”:

 

“Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que foi numa meia-noite clara, de lua cheia. Minha mãe viu que eu era magro e feio. Ficou triste mas não disse nada. Meu pai resmungou:

- Filho fraco. Não presta para a guerra.”.  

 

Da chegada dos Portugueses, passa-se aos primeiros momentos da colonização, a evangelização dos índios conduzida pelos jesuítas, que ensinam Tibicuera a ler e escrever, possibilitando escrever suas memórias.

 

Sua vida de 400 e tantos anos não decorre de uma fantasia, que em literatura se trata como “realismo fantástico”, mas da noção indígena de que existe um fio  condutor, uma sequencia e permanência entre a vida e existência de Tibicuera, seus filhos, netos, bisnetos, tataranetos, que, sucessivamente, participam dos grandes eventos do Brasil: a guerra de expulsão dos holandeses, a inconfidência mineira, as guerras de independência do Brasil, as revoltas regenciais, a campanha abolicionista, a proclamação da república.

 

Esta história panorâmica desmente um certo senso comum (sem nenhum fundamento na realidade) de que o povo brasileiro é pacato e pacífico e, por conseguinte, não engajado em lutas sociais com horizontes revolucionários.

 

Se a característica fundamental do índio Tupinambá é o seu traço guerreiro, sua disposição para a luta e para a guerra, temos que a história do protagonista é um constante engajamento em torno das mais diversas lutas de resistência do Brasil.

 

O próprio Tibicuera confessa a todo momento gostar de guerras, ainda que em certos momentos se aborrecesse dos conflitos e buscasse a paz dos livros e das bibliotecas.

 

O protagonista conheceu pessoalmente Tiradentes e Zumbi dos Palmares, com quem lutou e apenas não tombou heroicamente, para poder sobreviver e contar as suas memórias, que são a história do Brasil:

 

“O quilombo dos Palmares era formado por vários núcleos. Passei entre os pretos daqueles aldeamentos alguns anos bem felizes. Havia ali muita ordem e muita paz. Eu gostava de ver as danças, as cantigas, as festas dos quilombolas. Eles se enfarpelavam da maneira mais curiosa, pintavam-se de jeito muito engraçado, de sorte que era um espetáculo divertido vê-los em dia de festa.

 

Às vezes, certas noites, eu ficava de papo para o ar, olhando para as estrelas, pensando na vida e ouvindo a cantiga arrastada, preguiçosa e tristonha dos filhos da África. Quando eles paravam, ficava só o cochicho do vento que contava às palmeiras segredos de outros mundos.”.


Nos momentos de paz, leu os românticos e conheceu no Rio de Janeiro Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos!




SOBRE O AUTOR

 

Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta no Rio Grande do Sul no ano de 1905.

 

Quando jovem, foi bancário e sócio de farmácia.

 

Sua estreia literária foi na Revista do Globo, com o conto “Ladrão de gado”. A partir de 1930, já radicado em Porto Alegre, tornou-se redator da revista, iniciando sua carreira de romancista, com trabalhos que se caracterizam por um realismo regionalista, tratando especialmente da história do Rio Grande do Sul, ainda que não se limitando a temas nacionais.

 

Neste sentido, escreveu livros como “O senhor embaixador” (1965) ambientado num hipotético país do Caribe que lembra Cuba. Ou, podemos citar ainda “O prisioneiro”, uma parábola sobre a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã.

 

O escritor faleceu em Porto Alegre no ano de 1905.

domingo, 26 de junho de 2022

"O Missionário" – Inglez de Souza

 "O Missionário" – Inglez de Souza







Resenha Livro – O Missionário – Inglez de Souza – Valer Editora – 2010

 

“O movimento da fauna amazonense arrancara Padre Antônio à meditação a que se queria entregar, sujeitando-o todo à encantadora contemplação das maravilhas da natureza selvagem, naquela esplêndida manhã de agosto, em meio do largo rio que se desdobrava, a perder de vista, numa luzente toalha em que se refletia, como em puríssimo cristal, o azul dum céu sem nuvens, sombreado pelas ramagens de árvores seculares, e riscado em diagonal pela linha de voo de pássaros desconhecidos. As recordações da meninice assaltaram-no de novo, eram a mais grata memória do seu cérebro, evocadas sempre pelo espetáculo da natureza virgem. E vira-se a percorrer os campos incultos da fazenda, a aventurar-se numa pequena canoa pelo Amazonas fora, quando gostava de supor-se perdido na vastidão do rio, e a imaginação sonhava uma vida acidentada de combates com feras e de luta com os elementos na solidão das águas e das matas. Agora, via quase realizado o seu sonho de menino, em pleno deserto, indo talvez perder-se em paragens desconhecidas, dormir ao relento, matar a fome nos maracujás silvestres e nas castanhas oleosas, talvez morrer às mãos dos índios do sertão, que não teriam pena da sua mocidade e gentileza. Mas em todo o caso, ia saciar a alma de solidão e de liberdade, gozar talvez a inefável delícia de sentir-se só num grande país, de poder entregar-se desassombradamente ao enlevo dos seus queridos pensamentos íntimos, sem receio de olhares indiscretos nem de interrupções importunas.”.  

 

Herculano Marcos Inglez de Sousa nasceu na cidade de Órbidos, no Pará no ano de 1853. Fez seus estudos secundários no Maranhão e iniciou o curso de Direito na Faculdade de Recife.

 

Por conta da mudança de sua família para cidade de Santos em São Paulo, Inglez de Souza terminou a graduação na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no ano de 1876.

 

Positivista e republicano, fez política durante o II Império, alcançando a presidência dos estados de Sergipe e do Espírito Santo, além de ministrar curso de Direito Comercial na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.

 

Comumente, diz-se que Aluísio de Azevedo, por meio dos romances “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890), teria sido o precursor do movimento literário naturalista no Brasil.

 

Contudo, é certo que ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que pode ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

 

De fato, as datas de publicação dos primeiros romances do escritor paraense fazem-no contemporâneo de outros escritores regionalistas, mas ainda presos ao romantismo literário, como Visconde de Taunay. Ainda que as descrições da floresta, da fauna, dos rios e dos bichos ainda tenha traços românticos, ocupando boa parte da exposição, em Inglez de Souza já se prenuncia a ideia de o meio social e as condições naturais serem os fatores condicionantes da atuação das personagens.

 

Em outras palavras, em Inglez de Souza é possível se verificar o determinismo geográfico e biológico estabelecendo as relações de causalidade nas escolhas e ações humanas, sempre como fator preponderante em relação ao livre arbítrio.

 

Este determinismo é ressaltados n’o Missonário no protagonista do romance, Padre Antônio de Moraes.

 

Nascido numa cidade longínqua do amazonas, filho de um matuto que oprime a mulher, bate nos filhos e se relaciona sexualmente com as escravas da fazenda, criado de forma livre em meio a uma natureza exuberante, Antônio manteria em sua vida adulta os traços de personalidade que entrariam posteriormente em confronto com as rígidas regras morais de um clérigo.

 

As heranças hereditárias, o meio social e até mesmo as condições ambientais criariam as condições para que o Padre se lançasse na aventura de catequizar índios selvagens mundurucus, menos por convicção religiosa e mais por uma busca de retomar a liberdade perdida da infância por meio de uma aventura na selva, pela vaidade de quem busca firmar seu nome na sociedade amazonense e pela rebeldia diante do monotonia de sua rotina como sacerdote de um minúsculo vilarejo no interior do Pará, denominado Silves.

 

E estes predicados igualmente fariam com que o padre se desviasse da sua missão original para ceder ao ímpeto sexual e desvirginar Clarinha, uma cabocla de 15 anos, por sinal, neta de índia que igualmente mantivera relação clandestina com outro padre evangelizador.   

 

“Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupa o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjulgar.”.

 

O viés cientificistas nítido dos trabalhos naturalistas, decorrentes da influencia do darwinismo social, do determinismo social e geográfico e do positivismo com o seu enquadramento racional e esquemático da sociedade, torna incompatível uma comparação de “O Missionário” com outro romance c que igualmente trata da devassidão de clérigos, no caso “O Crime do Padre Amaro” (1875) do escritor Eça de Queiroz.

 

No caso do romance português, estamos diante de uma crítica social e radical da Igreja Católica de Portugal, dentro dos quadrantes do emergente movimento realista, em oposição e em combate à tradição romântica. Os pecados de Padre Amaro decorrem do livre arbítrio e da falência moral das instituições.  

 

No caso do romance do escritor paraense, a mesma devassidão é antes de tudo uma fatalidade, condicionada pelo atraso social da região amazônica, por uma educação religiosa inconsistente e por condições climáticas e hereditárias que facilitam a concupiscência e o individualismo.  Uma fatalidade tal qual os ciclos da natureza, repetindo-se com o Padre Antônio o que ocorrera com os outros sacerdotes que o antecederam na missão de evangelizar no amazonas: o relacionamento pecaminoso com as mulheres do sertão e a constituição clandestina de famílias.


BIBLIOGRAFIA

 

BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cutrix. 2021.


#1

terça-feira, 7 de junho de 2022

“Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 




Resenha Livro - “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev – Ed. Companhia das Letras – Tradução Rubens Figueiredo

 

“Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita...”. (Ivan Turgueniêv – “Pais e Filhos”).

 

Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) nasceu na província de Oriol, na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.

 

O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852) reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o artista perante o público russo.

Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Turgueniêv foi preso e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.

 

Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor como um mero instrumento de crítica política. O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um bom observador.

 

De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente Turguêniev, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas a mais profunda representação das personagens.  

 

“A primeira forma em que um relato surgia para ele era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”.

 

Nosso escritor escreveu “Pais e Filhos” entre o fim de 1860 e o início de 1862, quando completou 42 anos de idade.

 

As datas são importantes, pois estão situadas entre o mais importante fato político da história da Rússia do séc. XIX: a abolição da servidão em 1861, regime social em que os camponeses eram propriedade dos senhores de terra.

 

Naquele contexto, ganhava força no cenário intelectual russo novas tendências críticas à autocracia, que engendrariam, entre outros, a criação do movimento político “Terra e Liberdade”, que propugnava o terrorismo e efetivamente viabilizaria o assassinato do Czar Alexandre II em 13 de Março de 1881.

 

O romance tem como fio condutor o choque de duas gerações, representadas de um lado: (i) pelos personagens Nikolai Petróvich e Pável  Petróvich que representam o pensamento tradicional, dos “pais”, identificados com o aristocratismo e o romantismo; e (ii) pelos personagens Bazárov e Arkádi, este último filho de Nikolai e sobrinho de Pável, que representam as tendências modernas, os “filhos”, a crítica ao pensamento convencional, o racionalismo radical e o cientificismo desprovido de princípios, que se poderia classificar como niilismo:

 

“- Ele é um niilista – repetiu Arkádi.

- Niilista – disse Nikolai Petróvich – vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que....que não admite nada?

- Digamos: que não respeita nada – emendou Pável Petróvich e novamente esse pôs a passar manteiga no pão.

- Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico – observou Arkádi.

- E não é a mesma coisa? – indagou Pável Petróvich.

- Não, não é a mesma coisa. O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.”.

 

Considerando o eixo fundamental do escritor de buscar retratar com a maior perfeição as complexidades de cada personagem, não seria de se espantar que não existem, ao final, vencedores e perdedores no embate entre pais e filhos, ou entre os niilistas e os aristocratas.

 

Ambos, com as suas contradições, acabam demonstrando parcial razão.  

 

O racionalista Bazárov apaixona-se por Anna Serguêievna, fazendo cair por terra todas as suas premissas acerca da inutilidade e futilidade do amor.

 

Já o fidalgo Pável Petróvich relativiza suas rígidas normas morais ao aceitar e mesmo incentivar que o seu irmão formalize um segundo casamento, após o falecimento da segunda esposa, tudo isso diante da conclusão, ainda que tardia, da futilidade das convenções, bem apontadas pelos jovens.

 

E para além dos problemas específicos daquele momento histórico russo, é certo que os dissensos entre os pais e filhos, os choques de geração, tem algo de universal, fazendo com que o romance nos comova ainda nos dias de hoje.