domingo, 9 de julho de 2023

A LITERATURA DE JOSÉ LINS DO REGO

 AUTOR E SEU CONTEXTO




 

“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária.

Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

 

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

 

Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

 

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

 

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).   

 

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

 

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.

 

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

 

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

 

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

 

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.   

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

BANGUÊ

 

“O trem furava pelos canaviais de outros engenhos. Havia os engenhos vivos e os engenhos mortos. Lá estavam o Itapuã, de bueiro grande afrontando todas as usinas do mundo. Massangana, de senhor de engenho rico, Maraú, vivendo do algodão. O Bugari tinha cana até na bagaceira. Aquele se fora na voragem. O melão-de-são-caetano subia e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Para que moradores com roçados, criando gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os pequenos que defendiam o algodão”  

 

“Banguê” (1934) é a sequência da história de Carlos, quando retorna ao Engenho de seu avô José Paulino, após passar cinco anos estudando Direito no Recife.

 

Recém-formado, o protagonista retorna ao Santa Roa sem qualquer plano ou ideia do que fazer de sua vida.

 

Durante o curso de Direito no Recife, se relaciona com um mundo moderno quando comparado ao velho engenho de seu avô. Na faculdade, passa aos seus colegas uma imagem idealizada de sua origem familiar: seriam terras de fidalgos, com casas de potentados e famílias que se gabam dos seus brasões.

 

O retorno ao Santa Rosa desmente por completo aquela idealização. A rusticidade, a pobreza dos trabalhadores do eito, a corrupção dos agentes do fisco, a violência dos capatazes e feitores, além de toda uma cultura e estrutura social vinculada ao regime da escravidão (recentemente extinta) se confrontam com aquela noção idílica do mundo rural. Carlos idealiza o mundo do Pilar não só perante os outros mas através do engano a si mesmo.

 

O autoengano marca os primeiros momentos do livro, quando uma forte melancolia toma conta do bacharel de retorno ao Santa Rosa:

 

“Faltava qualquer coisa na minha vida. Um entusiasmo por qualquer coisa. Olhava sem querer ver. Tinha a impressão que os meus sentidos se atrofiavam. Os moleques que haviam sido os meus companheiros, Manual Severino, João de Joana, andavam iguais aos outros. Passavam por mim como estranhos.”.

 

O Santa Rosa ainda suspira pela força e potência do velho José Paulino que aos 86 anos ainda preside pessoalmente os trabalhos dos seus nove engenhos situados na fazenda. Contudo, a velhice e a proximidade da morte do latifundiário vão representando o fim daquela civilização do açúcar.

 

Se o velho é a principal peça da engrenagem produtiva do engenho, a sua velhice remete a uma roda velha do moinho, prestes a inutilizar a máquina e paralisar a produção.

 

Esperava-se que Carlos, retornando dos estudos, assumisse o controle e direção dos trabalhos da fazenda. José Paulino é a expressão do vigor na ação, da altivez, da serenidade, da potência, e da plena confiança no que faz. É o exato oposto de Carlos, um homem emotivo, com medo paranoico da morte, hesitante, que se acovarda até diante dos cabras e trabalhadores do eito, prenunciando o início do fim do Santa Rosa.

 

Com a morte do avô, o protagonista é de fato alçado à condição de novo Senhor de Engenho. Ainda que se dedique inteiramente à gestão da produção, não consegue prosperar, talvez por lhe faltar a energia e força típica daqueles que viveram a sua vida inteira na base do trabalho pesado.

 

Há evidente incompatibilidade entre a conduta do bacharel formado em Direito e a prática enérgica dos senhores de mando do campo. E quando há similitudes, elas se dão no que existe de pior: na exploração brutal dos trabalhadores mediante cobrança de foros extorsivos pelo uso da terra; ou nas práticas sexuais com as negras trabalhadores do eito, inclusive aquelas casadas com os cabras, sendo criadas uma geração de pequenos deserdados que iriam viver na fazenda sem qualquer distinção das outras crianças sujas, magras e amarelas de doenças.

 

Não que a chegada dos usineiros criasse melhores condições aos antigos trabalhadores dos engenhos.  As Usinas funcionavam 24 horas por dia, trabalhava-se de dia e de noite como nos tempos da escravidão.

 

A chegada da usina, na verdade, é representativa de um estágio de superação capitalista do escravagismo de origem colonial. O engenho do Santa Rosa ao tempo da nossa história é uma figura de transição entre uma realidade semi-feudal e o novo modo de produção capitalista.

 

No tempo de José Paulino, trabalhava—se duro, havia castigos físicos, mas não se passava fome e os camponeses tinham a liberdade de usar a terra para produção de auto sustento. Com a chegada da usina, tem-se a contraditória impressão de uma degradação social que caminha passo a passo com o brutal incremento dos meios tecnológicos de produção do açúcar. Os trabalhadores perdem o direito à terra e viram, poderíamos dizer, proletários.  

 

Um retrato de um mundo em extinção, tratado de forma lírica, telúrica e memorialista, é o que se pode resumir do quadro pintado por Lins do Rego no seu “ciclo da cana de açúcar”.  

sábado, 17 de junho de 2023

O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR

 O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR




 

Resenha Livro – “O Guarani” – José de Alencar – Ed. Ática

 

Quando José de Alencar publicou em folhetins o seu romance “O Guarani” no ano de 1857, ainda era um jovem advogado e escritor, apenas iniciando sua carreira literária.

 

Seus dois primeiros livros foram “Cinco Minutos” (1856) e “Viuvinha” (1857), chamados pelo próprio escritor de forma pejorativa de “romancinhos”: se situam ao lado de outros livros como “Lucíola”, “Diva” e “Senhora”, num conjunto de obras que podem ser classificados como os “romances urbanos” do escritor cearense.

 

O início da literatura romântica indigenista, que promovia uma inédita conexão entre literatura e nacionalismo em território brasileiro, dar-se-ia com a publicação de “O Guarani”, que seria seguido depois por “Iracema” e “Ubirajara”. Trata-se de obras que pioneiramente apontam a centralidade da figura do indígena como elemento balizador da constituição do povo brasileiro.

 

Transcorreram pouco mais de 30 anos entre a independência política do Brasil em relação à Portugal e o início daquilo que ficou conhecido como a primeira fase do nosso romantismo. A recente proclamação da independência de 1822 ensejava uma resposta à pergunta: afinal, quem somos nós brasileiros? A forte presença do índio naquele movimento literário vinha como forma de resposta a essa pergunta.

 

SOBRE O AUTOR

 

Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1 de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O autor passou durante a infância pelo período tumultuado das Regências e participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II Império.

 

Nosso escritor foi filho de um padre, deputado provincial do Ceará pelo partido liberal, governador e posteriormente Senador daquele mesmo estado, cujo nome era o mesmo do seu filho: José Martiniano Alencar. Ambos transitaram pela política: no caso de José de Alencar filho, tratou-se de uma carreira que lhe trouxe menos recompensa do que a sua  atividade literária.

 

José de Alencar (filho) foi Ministro da Justiça durante o II Reinado, a despeito de manter uma postura crítica em relação a D. Pedro II. Em certo momento foi preterido pelo imperador para uma vaga ao Senado, por conta de pretéritos embates entre ambos, o  que causou ao romancista uma intensa desilusão.

 

Houve inclusive polêmica literária travada na imprensa carioca entre o autor d’o Guarani e o Imperador sobre o significado da obra de Gonçalves de Magalhães. D. Pedro II defendia o autor de “A Confederação dos tamoios”, enquanto Alencar critica duramente a qualidade da obra de Magalhães: “as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês ou europeu (...) o senhor Magalhães não só mão conseguiu pintar a nossa terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe ofereciam os costumes e tradições indígenas”.  

 

Curiosamente, José de Alencar posteriormente seria alvo de críticas semelhantes. Ficou conhecida na história a intensa campanha promovida pelo jornalista e romancista João Franklin da Silveira Távora contra a literatura de seu colega cearense, a quem criticava por fazer uma literatura social “de gabinete” sem o conhecimento da realidade social e do sertão, descrita não só nas obras indigenistas, mas naqueles seus “romances sertanejos” como “O Gaúcho” e “O Sertanejo”.

 

É certo que o registro de José de Alencar do Sertão e da situação do índio brasileiro é muito mais baseado em sua imaginação como escritor do que como historiador. Neste sentido, Távora estava correto ao dizer que os seus personagens foram formulados “dentro de um gabinete” e não mediante o contato direto com aquelas realidades.

 

Por outro lado, deve-se salientar que o trabalho literário de Alencar decorreu de muito estudo disciplinado: o seu “O Guarani” aborda aspectos da flora, fauna e tradições culturais do indígena brasileiro do início do século XVI baseando-se na leitura de historiadores e fontes históricas primárias. Suas fontes para descrição do cenário da história envolvem o botânico e pesquisador francês Auguste de Saint-Hilaire (1779/1853), Aires de Casal (1754/1821) e principalmente o livro “Tratado Descritivo do Brasil” (1587) de Gabriel Soares de Souza (1540/1591).

 

O GUARANI

 

A história se passa no ano de 1604 no interior da capitania do Rio de Janeiro, então governada por Mem de Sá, cuja maior realização fora a expulsão dos franceses do território da colônia portuguesa.

 

O fidalgo português D. Antônio de Mariz tomou parte nos combates pela defesa do território português. Contudo, no contexto da união ibérica em que Portugal ficou oficialmente sob o comando da coroa espanhola, Mariz, mantendo uma linha de fidelidade ao rei português, resolve-se asilar-se às margens do rio paraíba, no interior da província. É neste pequeno vilarejo que se passa a história.

 

“A derrota de Acácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.

 

Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento de nobreza e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois em 1592 foi aclamado no Brasil D. Felipe II como sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço”  

 

 D. Antônio preferia viver retirado com a sua família no mais longínquo sertão brasileiro, onde comandava um grupo de pessoas e ao redor de quem vivia sua família numa fazenda fortificada. Às margens do rio Paquequer, Mariz montou casa para sua mulher, sua filha Cecília, uma filha bastarda chamada Isabel, o escudeiro Aires Gomes e um fidalgo português chamado Álvaro de Sá.

 

Viviam como que numa república fortificada ante o risco constante de ataques de índios ou bandoleiros. Por essa razão, o fidalgo também mantinha “como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior: eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, solados e selvagens ao mesmo tempo.”.

 

A família também era acompanhada por Peri, o mais valente guerreiro Goitacá, que salvara a vida da filha de D. Antônio e por isso é acolhido pela família do fidalgo.

 

Peri é uma palavra guarani que significa junco silvestre.   O índio mantém uma dedicação semelhante ao fervor religioso em relação à Cecília. Na verdade, a bela filha do fidalgo português é amada de formas diferentes por três personagens da história.

 

O índio Peri mantém uma devoção relacionada a uma percepção de que Cecília era uma espécie de ente divino, a quem lhe incumbia responder a todos os seus desejos sem entrar um só pensamento de egoísmo. Amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.

 

Já Álvaro ama Cecília da forma como amavam os românticos descritos nas histórias de cavalaria medieval. Em se tratando de um cavalheiro português, o seu sentimento era uma feição nobre e pura, ensejando momentos de timidez ou arroubos em que o português buscava timidamente confessar o seu amor à filha de D. Antônio.

 

Enquanto Peri adorava e Álvaro amava, o italiano Loredano a desejava: em se tratando de um romance nacionalista, o estrangeiro aparece na história como o seu principal vilão.

 

Loredano fora um padre beneditino que viera em missão religiosa ao Brasil: oportunamente abandonou e conjurou a religião para dar vazão a sua luxúria. Sonhava encontrar o ouro no Brasil, enriquecer e oportunamente raptar a filha do português.

 

Dentro desta trama, ocorre um incidente que dará curso aos principais eventos da história.

 

Um filho de D. Antônio acerta um tiro por engano numa índia aimoré, tribo conhecida particularmente por seu estágio bárbaro, menos civilizado que os demais índios. O espírito de vingança é um dos traços psicológicos determinantes daqueles povos indígenas, o que fora agravado pelo fato de a índia morta ter sido a mais bela e desejada mulher daquela tribo.

 

A vingança dos aimorés se dá através de uma guerra sem tréguas e com fins trágicos. Da guerra apenas sobrevivem Peri e Cecília. Ao final, a menina reconhece e vê o índio como um irmão, ou seja, alguém igual em termos civilizacionais, nitidamente se considerando que o índio já fora batizado por D. Antônio antes da batalha final contra os aimorés.  

 

Peri é o herói da epopeia “O Guarani”. A sua dedicação, coragem e abnegação são certamente formas de valorização não só da figura do índio, mas de alguém que está se  constituindo como brasileiro. Há no índio (ou brasileiro) uma delicadeza de sentimentos dentro de uma alma inculta. Uma inteligência sem cultura mas brilhante como o sol. A alma é virgem de civilização, mas naturalmente brilhante, forte, corajosa, ou seja,  representativa da aspiração de um Brasil igualmente altivo e independente.

domingo, 28 de maio de 2023

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES

 

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES


Antônio Parreiras - Morte de Fernão Dias Paes Leme

 

“O interior do Brasil não foi sempre cortado por estradas e semeado de habitações hospitaleiras. Tempo houve em que não havia nenhuma cabana no mesmo, nenhum vestígio de cultura, só havendo as feras que lhe disputavam o domínio. Os paulistas palmilharam-no em todos os sentidos. Esses audaciosos aventureiros...penetraram por diversas vezes até o Paraguai; descobriram a província do Piauí, as minas de Sabará e de Poracatu; entraram nas vastas solidões de Cuiabá e Goiás, percorreram a província do Rio Grande do Sul; chegaram ao norte do Brasil até o Maranhão e o Rio Amazonas; e, tendo transposto a cordilheira do Peru, atacaram os espanhóis nos centros de suas possessões. Quando se sabe, por experiência própria, quantas fadigas, privações, perigos que ainda hoje aguardam o viandante que se aventura nestas longínquas regiões e se toma conhecimento do itinerário das intermináveis incursões dos antigos paulistas, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que esses homens pertenciam a uma raça de gigantes” (Augusto Saint-Hilaire – viajante francês que percorreu o Brasil entre 1816/1822).

 

Em 24/07/2021 foi noticiado pela imprensa que um grupo autointitulado “Revolução Periférica” colocara fogo na estátua de Borba Gato em São Paulo, como forma de protesto, ainda que não se saiba exatamente contra o quê.

 

Esse ato escatológico ao menos teve o saldo positivo de revelar  um pouco o que passa na cabeça dos seus protagonistas: a ideia de que “performances revolucionárias” podem mudar o mundo, algo parecido com o almejado “efeito estético” de vidros de bancos quebrados em passeatas. 

 

Em todo o caso, o episódio não seria muito grave se se limitasse a uma presepada de meia dúzia de universitários. Antes, tratava-se de um ataque direto e coordenado contra a Cultura Nacional, a mesma que buscou invisibilizar Monteiro Lobato, denunciar Pedro Álvares Cabral e seus pares como agentes do genocídio e do estupro, e, mais recentemente, avacalhar a ópera "O Guarani" do campineiro Carlos Gomes.  

 

Afinal, quem foram estes sertanistas paulistas? Qual a sua importância para o Brasil? Qual a razão dos ataques ao bandeirantismo promovidos por grupos políticos antinacionais? Por que defender a sua memória é também uma defesa do Brasil?

 

OS MITOS EM TORNO DO BANDEIRANTISMO

 

O fenômeno do bandeirantismo está situado na História do Brasil a partir dos últimos anos do século XVII até os fins do Século XVIII.

 

Não por acaso, as entradas podem ser entendidas como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que lançou os Portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como Brasil.

 

Um primeiro mito a se desfazer sobre as bandeiras diz respeito à falsa descrição dos seus membros: seriam um grupo de “colonizadores brancos”, “europeus de sangue”, que teriam se mobilizado conscientemente para a conquista de territórios e escravos, através de um deliberado plano de “genocídio indígena”. Esta visão se choca frontalmente com a rusticidade dos bandeirantes e a majoritária participação de índios e mamelucos nas entradas.

 

O bandeirante paulista é um simples morador de uma região secundária da Colônia, dada a sua distância com os centros consumidores de produtos coloniais situados na Europa – diferentemente da região nordeste. Levavam “uma vida quase indigente, lutando contra as injunções mais imediatas e prementes de uma existência material extremamente difícil. Pobre, analfabeto, sem perspectivas, tinha nas suas investidas ao Sertão as únicas chances de modificar sua sorte material, que nesta medida passavam a ser, para usar a expressão de Sérgio Milliet “soluções de inexorável urgência”.  (DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: verso e reverso”. ).

 

 As bandeiras ou entradas podem ser conceituadas como expedições paramilitares que se movem em direção ao sertão para captura de índios e de pedras preciosas. De acordo com essa definição, foi um fenômeno disseminado por todo o território onde hoje de situa o Brasil. Contudo, algumas particularidades de São Paulo fizeram com que se desenvolvessem com maior força naquela vila interiorana da Capitania de São Vicente.

 

No ano de 1600 estima-se que São Paulo possuía 1500 habitantes distribuídos em 150 residências. A região mais dinâmica da colônia, então, se situava em Pernambuco e Bahia, por conta da proximidade com a Europa e as boas condições para o desenvolvimento da exploração mercantil da terra. Já em São Paulo não se realizaram os desígnios gerais da colonização portuguesa através da grande propriedade monocultora, com a utilização do máximo número de escravos e economia vinculada ao mercado externo. Tratava-se antes de uma mera feitoria, onde predominava uma pobre economia de subsistência. Havia poucas ruas e as casas eram meras choupanas cobertas por palha.  As bandeiras entram assim como uma “solução de emergência” para a pobreza da região.

 

Numa primeira fase, as expedições tinham como objeto o desmantelamento das missões jesuíticas para captura de índios e para comércio escravocrata. Num segundo momento, com o declínio do trabalho escravo indígena na colônia, esses sertanistas se voltam para a  busca do ouro, da prata e das esmeraldas.

 

Eram compostas majoritariamente por índios e mamelucos. A ampla participação de indígenas nas entradas se dava pelo fato de conhecerem melhor os territórios e o curso dos rios. Andavam descalços, falavam a língua geral (formada a partir da evolução do  antigo tupi), portavam em suas expedições arcos, flechas, pouca arma de fogo. Em seus carregamentos, levavam pólvora, machados, balas, cordas para amarrar os índios aprisionados, e por vezes, sementes, sal e uma pequena quantidade de alimentos.

 

Em geral, partiam de madrugada e pousavam no entardecer; durante o dia dedicavam-se à caça, à pesca e à coleta de frutos, também se lançando mão das roças dos indígenas que aprisionavam.

 

Um segundo mito construído em torno da propaganda contra os bandeirantes diz respeito ao fato de o movimento se limitar à captura e escravização do índio – daí são todos chamados de “escravagistas”.

 

Ora, como já mencionado, os 100 anos de maior atividade bandeirante passou por diferentes fases, envolvendo não só o comércio de escravos, mas o desmantelamento das missões jesuíticas espanholas, a expansão das fronteiras do domínio português, a busco das pedras preciosas e até o engajamento na luta pela expulsão dos holandeses.

 

Basta aqui dizer que Borba Gato (genro de Fernão Dias, conhecido como “Governador das Esmeraldas”) foi escolhido como “alvo” de militantes, desconsiderando se tratar de personagem ligado à 2ª fase do bandeirantismo, o da caça das esmeraldas. Isto para não dizer que esse personagem conviveu pacificamente durante 18 anos com índios da tribo dos Botocudos, sendo tratado por eles como cacique, após ter assassinado um emissário da coroa e buscado no sertão um porto seguro.

 

AS DUAS FASES DO BANDEIRANTISMO

 

“Estava a findar o primeiro ciclo bandeirante, o da caça ao índio, cuja personalidade máxima fora o formidável Antônio Raposo Tavares e em que se destacam os sertanistas do relevo de dois Affonso Sardinha, Amador Bueno, Manuel e Sebastião Preto, André Fernandes, Estevam Bayão, João Amaro, Maciel Parente, etc.

 

Alguns anos mais tarde, extinguiram-se esta fase, por assim dizer, com as últimas grandes jornadas de Francisco Pedroso Xavier, em 1675; Mathias Cardoso de 1689 a 1694, e Domingos Jorge Velho.

 

De apresadores de índios, iam passar os paulistas a revolvedores ásperos do solo, em busca de minerações preciosas. Encetava-se o segundo grande ciclo bandeirante: o do ouro, perfeitamente caracterizado em Fernão Dias Paes.”. (TAUNAY, Affonso de E. “Índios, Ouros e Pedras”).

 

É possível dividir o moimento bandeirante em duas grandes fases. Ambas as etapas colaboraram à sua maneira para aquilo que de melhor nos legou as entradas: a expansão do território e a criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e linguística.

 

A primeira fase diz respeito à “solução de urgência” dos paulistas para a sua pobreza material, através da captura de índios para o comércio de escravos dentro da colônia.

 

Logo em seus primeiros momentos, as expedições se voltam contra as missões jesuíticas, e isso por um motivo muito simples: era muito mais fácil capturar os índios já agrupados geograficamente pelos inacianos e já iniciados por eles ao trabalho e à civilização cristã.

 

Ainda que boa parte deste primeiro período tenha se dado durante a União Ibérica (1580/1640), o fato de os paulistas terem expandido os seus domínios através do aniquilamento das missões criou as condições para o estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste, dentro do princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).

 

O maior representante deste primeiro período é certamente Antônio Raposo Tavares, responsável pela integração de centenas de milhares de quilômetros ao território nacional.

 

Em 1629, uma expedição de Tavares expulsa os espanhóis do Paraná. Em 1936, há a conquista do Rio Grande do Sul após a conhecida destruição da missão de Guaira. Dois anos depois, os paulistas expelem os ignacianos para além da margem ocidental do Rio Uruguai.  

 

No ano de 1639, Antônio Raposo Tavares é convocado pela Coroa a se engajar na luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste do Brasil, para onde se dirige, prestando colaboração a nossa primeira experiencia de luta por independência que forjou os elementos constitutivos da nacionalidade brasileira: brancos, negros e índios unificados em luta contra o domínio holandês.

 

Após a vitória brasileira na guerra, Tavares se dirige ao norte do país, alcançando a foz do Rio Amazonas em 1651. A inacreditável extensão territorial percorrida pelas bandeiras podem ser facilmente percebidas no mapa abaixo:

 



 

Uma segunda fase do bandeirantismo pode se situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais preciosos.

 

Esta diretriz se explica pela situação de decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político, exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos do empreendimento colonial.

 

Outro ponto que explica a mudança de eixo das bandeiras foi a própria decadência da escravidão indígena (abolida formalmente em 1758) com a sua substituição pelo mercado de cativos africanos.  

 

O mais representativo personagem desta segunda fase é Fernão Dias Paes (1608/1681). Na condição de governador de São Paulo, foi um agente conciliador dos colonos e dos jesuítas, a quem restituiu o seu colégio alguns anos após a expulsão dos inacianos da vila.

 

Em 1673 quando já tinha mais de 60 anos organizou uma expedição que durou 7 anos em busca de metais preciosos. A despeito dos apelos da Coroa, esta entrada foi inteiramente custeada pelo bandeirante: em determinado momento, enviou cartas a sua mulher e filhas para que se desfizessem de todos os seus bens para dar prosseguimento à cata de tesouros no sertão.

 

Fernão Dias morreu no curso desta expedição. Não encontrara nenhum metal precioso. Consta apenas que acreditou ter encontrado esmeraldas, quando na verdade apenas achou turmalinas. Antes de falecer, Dias pediu que o seu corpo fosse enterrado no Mosteiro de São Bento, o que foi cumprido com muito custo por seus correligionários. Apenas no ano de 1910 o seu corpo foi descoberto em São Paulo, ou seja, mais de 200 anos após a morte do “Governador das Esmeraldas.”.  

 

BALANÇOS

 

A propaganda negativa dos bandeirantes, como vimos, serve-se de alguns mitos que buscam induzir nas pessoas a noção geral de que o empreendimento colonial português no Brasil teria sido um ato deliberado de genocídio e destruição: a consequência lógica desSa ideia é a de que o país não deveria sequer ter existido, já quwe o Brasil efetivamente nasceu desde o momento da chegada dos portugueses no novo Mundo.

 

Curiosamente, os mitos em torno dos bandeirantes partem de uma suposta “crítica” de uma “História Oficial” que teve como base Southey, Saint-Hilare, Cassiano Ricardo e A. E. Taunay. Aqui, como em outros capítulos de nossa história, a leitura dos clássicos é certamente mais próxima da verdade do que as “narrativas” que inspiraram as ações contra os monumentos nacionais.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: Verso e Reverso”. Ed. Brasiliense

 

TAUNAY, Afonso de E. “Índios! Ouro! Pedras”. Ed. Melhoramentos.


terça-feira, 16 de maio de 2023

“O Homem Nu” – Fernando Sabino

 “O Homem Nu” – Fernando Sabino



“Acredito que se conseguíssemos recuperar o menino que devíamos ter vivo dentro de nós, todos nos entenderíamos muito mais. Haveria mais paz e alegria, se os homens voltassem a ser meninos” (Fernando Sabino – “A Nudez da verdade”).

 

Fernando Sabino é um dos muitos grandes romancistas e poetas oriundos do Estado de Minas Gerais. É de lá que vieram, para citar alguns poucos nomes, Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Rubem Fonseca.

 

O mais famoso romance de Sabino, chamado “O Grande Mentecapto” conta a epopeia de Geraldo Viramundo, uma espécie de Dom Quixote mineiro, que percorre estradas sem fim (daí o nome “Viramundo”)  da sua cidade natal no Rio Acima, para Mariana, onde Viramundo ingressa no seminário; para Ouro Preto onde confraterniza com os estudantes; para Barbacena onde foi candidato (quase) vitorioso à prefeitura; pra Juiz de Fora, onde ingressou no exército; para São João Del Rei; para Tiradentes; para Belo Horizonte, etc. etc.

 

Aqui o leitor entra em contato com cada uma das realidades regionais que em conjunto dão contornos ao pitoresco e belo estado mineiro.  

 

Fernando Sabino nasceu em 1923 em Belo Horizonte. Aos 15 anos, iniciou sua carreira literária escrevendo nas revistas “Mensagem”, “Alterosa” e “Belo Horizonte”, com publicações de contos e crônicas.

 

Em 1941 inicia o Curso de Direito em sua cidade natal, terminando a graduação no Rio de Janeiro, para onde se mudara em 1946.

 

Em 1956 publica o seu primeiro romance denominado “Encontro Marcado”. Quatro anos depois publicaria a coletânea de contos e crônicas reunidas sob o nome de “O Homem Nu”, em que são reunidas 40 pequenas histórias, das quais a cômica situação de um homem pelado ficando preso ao lado da porta de seu apartamento (que dá o nome ao livro) é certamente o texto mais conhecido do público.

 

Nessas crônicas e contos o escritor explora com senso de humor o que há de pitoresco e poético no dia a dia: as fontes de suas histórias são fatos do cotidiano em que eventos inusitados acarretam situações que envolvem o ridículo e o cômico.

 

É  história de um homem que apanha de sua mulher até o momento em que inverte essa realidade, quando se descobre que o desejo da sua mulher não era bater, mas apanhar; um sujeito hipocondríaco que apenas encontra conforto psicológico após se casar com uma enfermeira; uma reunião de diretores de uma empresa onde um dos sócios escuta clandestinamente num rádio portátil o jogo do Brasil; e a já referida situação trágico cômica de um homem nu trancado para fora do apartamento que por isso é perseguido por vizinhos e as demais pessoas que com ele cruza.

 

Em 1993, Fernando Sabino publica “A Nudez da Verdade” em que conta a história completa de Telmo Proença, o personagem principal do conto “O Homem Nu”, escrito 30 anos antes.

 

Proença é um professor e pesquisador do folclore brasileiro e é convidado a participar de um lançamento de livro em São Paulo, para onde deveria partir de em um voo noturno partindo do Rio de Janeiro.

 

Aqui começa uma série sucessiva de fatos que só realçam o reiterado azar do protagonista. O seu voo foi cancelado por conta de uma chuva, razão pela qual se recolheu no apartamento de uma amiga, com quem manteve durante a noite relação sexual extraconjugal.

 

Pela manhã, vai preparar o café e buscar o pão do lado de fora do apartamento: a porta fecha e Proença fica trancado para fora, nu, iniciando-se a sua via crucis: é perseguido por moradores, vizinhos, transeuntes da rua e até pela polícia, por conta do atentado ao pudor. A história do “Homem Nu” é noticiada por toda a cidade, não se sabendo se se trata de um tarado, de um louco, de um bandido armado (e onde esconderia a arma, posto que nu?) ou de um homem em fuga por ser flagrado por um marido traído.

 

Desde o paraíso bíblico, Deus fez o homem nu, até as vestimentas se fazerem necessárias após o pecado original. Com isso, Telmo Proença é caçado como um animal: é um anátema diante do mundo e de Deus, banido pelo resto da sociedade cujos homens que, por dentro das suas roupas, igualmente estão nus.

 

Fernando Sabino faleceu em 2004, pouco antes de completar 81 anos de idade.

 

Bibliografia:

“O Homem Nu” – Fernando Sabino – Ed. Record

 

“A Nudez da verdade” – Fernando Sabino – Ed. Record.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

 A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA


 

“Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligados à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida” (RONAI, Paulo.).

 

A leitura das estórias do escritor mineiro João Guimarães Rosa põe-nos em contato com o universo de um Brasil profundo, retratando cenas de uma vida pastoril, caracterizada pelo próprio escritor como “o Sertão”. Desses contos e novelas, o leitor tem contato com a trajetória de capangas, jagunços, vaqueiros, fazendeiros, sertanejos, crianças, loucos, doentes e prostitutas, todos vivendo a séculos de distância da nossa civilização plenamente urbanizada. Cenas da vida pastoril de um país que ainda não completara a sua transição demográfica do campo para a cidade.

 

Essas estórias são acompanhadas de uma série de inversões linguísticas mediante neologismos, alteração intencional de regras gramaticais (ortografia e sintaxe), experimentações que potencializam a expressividade das palavras.

 

A criação de uma nova linguagem, plenamente adaptada ao universo do sertão mineiro,  só poderia ter sido produzida por um escritor que tinha um incomum conhecimento de línguas e das letras.

 

João Guimarães Rosa iniciou os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando teve seus primeiros contatos com o francês. Nas palavras do próprio escritor:

 

“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”.

 

O autor de “Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação para o estudo.

 

Com apenas 16 anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais, no ano de 1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, tornando-se diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.

 

Sua literatura envolve um aprofundamento das ideias daquela geração de escritores modernistas do nordeste brasileiro, que bem retrataram a vida de trabalhadores do campo, retirantes, fazendeiros, humildes comerciantes e pequenos funcionários públicos: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Amando Fontes, etc.

 

O que há em comum entre estes escritores e João Guimarães Rosa é a rara capacidade de alçar o seu regionalismo a questões de natureza universal.  Nas palavras do escritor mineiro, “O Sertão é do tamanho do mundo”.

 

As estórias se passam no serão mineiro conquanto envolvem a exploração de questões filosóficas e existenciais, relativas a mais ampla reflexão sobre a condição humana.

 

Este universo rural foi captado pelo escritor durante a sua experiência de infância em Codisburgo, no interior de MG. Também foi captada após os dois anos de trabalho como médico em Itaguara/MG. Por fim, os cenários foram retratados com base em viagens que JGS realizou, inclusive acompanhando comitivas de vaqueiros que conduziam o gado pelo interior mineiro. As imagens dessas viagens foram especialmente retratadas no conto “Burrinho Pedrês”, a primeira estória que abre o livro “Sagarana” (1946).

 

Da análise ampla dos contos e novelas do nosso escritor, é possível constatar alguns pontos em comum: o realismo mágico, o regionalismo alçado ao universal e a liberdade estilística e formal.

 

No conto “Campo Geral” estes três pontos são retratados através do olhar lúdico de uma criança de 8 anos chamada Miguilim. Trata-se de alguém que passou a sua vida inteira “no Mutum, no meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra” (...) “um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...”. Alguém que sempre viveu no campo e a ele está plenamente aclimatizado.

 

A mãe de Miguilim era linda e amorosa com os seus filhos, enquanto o pai era extremamente rigoroso, demonstrando uma especial má vontade para com o filho protagonista da história. O melhor amigo de Miguilim é seu irmão Dito, cuja personalidade é radicalmente diferente a sua, porém complementar:

 

“O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava dúvida, achava que podia dar errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade.”.

 

Enquanto Dito era mais assertivo e decidido, seu irmão parece ser mais emotivo, tal qual a mãe. A sua maneira, pela linguagem da criança, Dito diz ao seu irmão que sua personalidade era mais marcada pela ambiguidade: “você nasceu em dia de sexta, com o pé no Sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora” ou “você tem juízo por outros lados...”.

 

O amigo favorito de Miguilim tem uma morte trágica, após algum tempo de convalescência diante de uma doença desconhecida, que teve como origem o corte profundo do pé após Dito pisar num caco de vidro.

 

Depois dessa tragédia, verifica-se uma clara alteração na psicologia de Miguilim que se revela no se fazer homem. Miguilim passa a trabalhar sob as ordens do pai e não tem mais medo que o marcava pouco tempo atrás. Este amadurecimento oriundo de pequenas e grandes tragédias foi muito bem captado pelo escritor José Mauro de Vasconcello nos seus livros “Meu Pé de Laranja Lima” e “Vamos Aquecer o Sol”. A visão mágica da realidade visto sob o olhar da criança é abruptamente alterada ante a experiencia trágica da morte: do portuga, amigo de Zezé e de Dito, irmão de Miguilim.

 

João Guimarães Rosa morreu precocemente aos 59 anos no ápice de sua carreira literária e diplomática.

 

Pouco antes de sua morte, foi indicado ao prêmio Nobel de literatura (1967). Podemos cogitar que o prêmio Nobel seria inadequado. Única e exclusivamente pelo fato de as estórias de JGS serem intraduzíveis, impossíveis de serem captadas por meio de traduções. Ou seja, apenas existe real possibilidade de se captar a riqueza linguística da escrita de Rosa através da leitura dos livros em língua portuguesa. Por outro lado, a reflexão sobre temas como a morte, a descoberta de Deus, a noção de finitude da vida e outros temas existenciais certamente tem o condão de fazer com que as novelas e contos do escritor mineiro sejam atemporais, dizendo respeito ao homem independentemente de sua nacionalidade.   

 

 

Bibliografia:

 

“Campo Geral” – João Guimarães Rosa – Ed. Global.

 

“A Hora e Vez de Augusto Matraga” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.

 

“O Burrinho Pedrês” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.