quinta-feira, 3 de março de 2022

Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922

 Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922

 


 

 

“O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o estado de guerra na Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa. Quando a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de subtileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela “Revista do Brasil”; é esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neo-colonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos impregnados. Menotti de Picchia nos dera o “Juca Mulato”, estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro do movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importadas da Europa” (Mário de Andrade – “O Movimento Modernista” – Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, 1974, p. 235-6).

 

Este ano de 2022 será marcado pelas comemorações do bicentenário da independência nacional, o segundo grande movimento de constituição da Nação Brasileira, que é precedido pela nossa conformação territorial, desde a chegada dos portugueses à região onde hoje se localiza a comarca de Porto Seguro, até a delimitação de nossas fronteiras pelo Tratado de Madrid (1750).

 

Em 25/03/1922 seria fundado o Partido Comunista Brasileiro, agrupamento que manteria certa hegemonia na esquerda brasileira até o fim do regime militar e o período da redemocratização, quando o PT passaria a ocupar o posto de principal referência deste campo político.

 

Em 5 de Julho de 1922 ocorre o primeiro levante tenentista, conhecido como “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, marcha heroica realizada por dezessete militares e um civil contra Epitácio Pessoa e a eleição de Arthur Bernardes, e que postulava o fim da Republica Velha, que efetivamente cairia oito anos depois, com a Revolução de 1930.

 

Entre os dias 13, 15 e 17 de Fevereiro ocorre a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Foram três noites de conferências, audições musicais e leituras de poemas, que tiveram como pretexto a comemoração do centenário da independência.

 

Passados cem anos do evento que ficou conhecido como introdutor do modernismo nas artes brasileiras, temos que a Semana ainda é cercada de alguns mitos.

 

A despeito de sua inequívoca importância no desenvolvimento da literatura, poesia, artes plásticas e arquitetura, é certo que o evento não produziu grande repercussão e impacto na sociedade brasileira na década de 1920/30, período em que era predominantemente agrária e iletrada.

 

Fora alguma repercussão na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, majoritariamente desfavorável, a Semana de 1922 passou despercebida para o restante da população.

 

Consta que apenas na década de 1940, a partir de uma análise retrospectiva daqueles eventos e, em especial, da palestra proferida por Mário de Andrade no Itamaraty e artigos publicados pelo autor de Macunaíma no Estado de São Paulo em 1942, é que a Semana de 22 foi alçada a grande momento de modernização artística, de certa forma antecedendo a modernização política e econômica da Era Vargas.

 

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 17 e da ascensão do fascismo na Europa ( a Marcha sobre Roma de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

 

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

 

Contudo, outro mito que cerca o movimento é o de que teria havido um rompimento com a orientação elitista de arte, desde o parnasianismo e do simbolismo, contra o qual os novos artistas de fato se opunham.

 

As próprias condições sociais do país fariam com que aquele movimento fosse produzido pela elite e para elite, ainda que poemas como “Ode ao Burguês”, indicassem uma rebeldia em face das coisas existentes.

 

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

 

Na prática, a Semana foi patrocinada por aristocratas de São Paulo, em especial Paulo Prado, da tradicionalíssima família cafeicultora Silva Prado. Igualmente, consta que o evento causou enorme prejuízo aos seus patrocinadores.

 

Também não é inteiramente correto dizer que o movimento modernista significa uma ruptura com as escolas literárias estrangeiras e a constituição de uma arte inteiramente nacional.

 

Tratou-se antes de tudo de uma manifestação tardia de novas ondas renovatórias da arte na Europa, no caso o futurismo italiano, o dadaísmo francês e o expressionismo alemão.

 

Posteriormente, quando da redação do “Manifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade, esta dialética entre o estrangeiro e o nacional seria mais bem equacionada. Baseando-se na história do Brasil colonial quando os índios, em ritual de guerra, ingerem o estrangeiro, temos que o indígena, na prática, incorpora elementos e atributos do inimigo, eliminando diferenças entre eles.

 

 

O último e não menos importante mito que cerca a Semana de 22 é o de que aquele evento teria constituído uma ruptura brutal com as tendências artísticas anteriores. Talvez por isso, muitos classificam autores anteriores ao movimento como “Pré-Modernistas”: Lima Barreto e Monteiro Lobato como principais exemplos.

 

Na verdade, estes escritores de certa forma antecederam preocupações dos modernistas, como o abrasileiramento e popularização da linguagem. O destaque dos problemas cotidianos, as expressões populares e um certo regionalismo estão presentes tanto em Lobato quanto em Lima Barreto, e se se desdobrariam em versos como este de Oswald de Andrade:

 

“Dê-me um cigarro. Diz a gramática. Do professor e do aluno. E mulato sabido. Mas o bom negro e bom branco. Da Nação brasileira. Dizem todos os dias. Deixa disso camarada. Me dá um cigarro.”.

 

Aliás, é digno de nota que as famosas críticas de Monteiro Lobato à Anita Malfatti datam de 1917, ou seja, cinco anos antes da Semana. Também é certo que o escritor de Taubaté foi o primeiro a ser convidado pelos jovens modernistas como patrono da Semana.

 

Por conta da recusa de Lobato, para quem o modernismo era “brincadeira de crianças inteligentes”, foi escolhido o escritor Graça Aranha para desempenhar o papel de padrinho do movimento.

 

Cem anos depois, olhando-se em perspectiva, verifica-se que a Semana de 1922 foi um ponto de partida para o desenvolvimento de uma literatura não acadêmica, regionalista e atenta à realidade popular, criando as condições para a aparição de escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, João Guimarães Rosa, entre outros.

 

Bibliografia

 

CAMARGO, Márcia. “Semana de 22: entre vaias e aplausos”. Paulicéia. Boitempo Editorial. 2003.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Crônicas Políticas de Monteiro Lobato

 Crônicas Políticas de Monteiro Lobato




 

Resenha Livro – “Na Antevéspera” – Monteiro Lobato – Iba Mendas Editor Digital

 

“O Brasil existe e insiste. Tem uma alma caótica, isto é, em formação, caos não significa apenas desordem. Tem a carne sensível, apesar dum sistema nervoso rudimentar, como o das baleias. O Brasil é imenso. Desdobra-se por 8.525.000 quilômetros perfeitamente quadrados, e até já passa disso, em virtude do aplastamento do morro do Castelo. Possui terras feracíssimas, como as roxas de São Paulo, e carrascais piores que os desertos da Líbia. Zonas onde tudo são águas, pirarucus e jacarés truculentos, ao lado de zonas onde a seca periódica só poupa às cactáceas.

 

‘Nesta tesse se dá tudo’, disse Vaz Caminha; “mas a formiga come tudo que se planta”, acrescenta o Jeca, de cócoras na filosofia da sua velha experiência”

 

No ano de 2010 ganhou repercussão na mídia nacional o ajuizamento de um mandado de segurança pelo “Instituto de Advocacia Racial” junto ao Supremo Tribunal Federal demandando a retirada do livro “Caçadas de Pedrinho” (1933) da lista de leitura obrigatória do ensino oficial, sob a alegação de que as crianças estariam supostamente expostas a conteúdo racista.

 

Desde então, vem sendo ventilado pela por grupos identitários a ideia de que o escritor paulista seria racista ou até mesmo eugenista.

 

Esta não seria a primeira vez que as obras de Monteiro Lobato seriam objeto de ataques injustos e infundados.

 

Meses depois da publicação do livro infantil “História do Mundo Para Crianças” (1933), a obra passou a sofrer perseguição e censura da Igreja Católica. Naquela época era ainda uma novidade a existência de obras literárias direcionadas ao público infantil, que suscitavam a imaginação por meio de personagens fantásticos como o Visconde de Sabugosa, um nobre fidalgo feito de espiga de milho que traz a voz da razão e da ponderação; ou o Marquês de Rabicó, um porquinho medroso que conversa com as crianças; ou Emília, uma boneca de pano que se distingue por sua bravura, autoconfiança e uma certa esperteza.

 

Consta  mesmo que um grupo de freiras chegou a organizar fogueiras para destruir exemplares de livros no ano de 1942. No exterior, o Governo Português também chegou a proibir os livros infantis em seu país tanto porque os livros indicam que o Brasil teria sido achado ‘por acaso’ pelos portugueses, quanto por “ter registrado das 1600 orelhas cortadas à marinhangem árabe por Vasco da Gama”.  

 

Tanto no passado quanto no presente, são injustos estes julgamentos sobre a obra do escritor de Taubaté.

 

Da leitura das crônicas do escritor de Taubaté, reunidas no livro “Na Antevéspera”, pode-se ter uma noção de ideias políticas e das críticas culturais no contexto do fim da República Velha.

 

No texto “Manuelita Rosas”, Lobato discorre sobre a trajetória de Juan Manuel Rosas, caudilho argentino que governou aquele país com um ditador nas décadas de 20 e 30 do século XIX. Crítico do liberalismo, via com simpatias o ditador argentino, que era comparado com Napoleão e Lênin.

 

No que diz respeito ao líder da Revolução Russa, Monteiro Lobato no artigo “Ideias Russas”, elogia aquele movimento não por suas ideias marxistas, mas por conta das mudanças culturais e de comportamento:

 

No que diz respeito à mulher, Lênin aparece como o seu messias. Libertou-a da escravidão doméstica, aboliu o preconceito da sua inferioridade, pô-la em situação de ocupar todos cargos da república, desde o comissariado do povo até o juizado. O regime de igualdade dos sexos é perfeito, pois. Lênin destruiu o formidável acervo de injustiças acumulado em vinte séculos de helenismo e outros tantos de civilização cristã – isto é, de despotismo de galo.”.

 

Posteriormente, já na década de 1940, o jornalista M. Tullmann Neto relata que o escritor tinha simpatias pelo regime socialista soviético e por Luiz Carlos Prestes, a quem considerava “um patriota, preso por lutar pelo progresso e pela democracia.”.

 

No início daquela década, o próprio Lobato seria preso no contexto do Estado Novo, por crítica remetida por carta ao presidente Getúlio Vargas e zo chefe do Estado Maior Góis Monteiro. Na missiva, denunciada a inação e displicência do governo no que se refere ao problema do petróleo.

 

Estes eventos ocorreriam muitos anos depois do “Antevéspera” cujo contexto, como já dito, era do fim agonizante da República Velha sob a presidência de Arthur Bernardes.

 

As crônicas foram publicadas nos períodos “O Jornal” de Assis Chateaubriand e “A Manhã” de Mário Rodrigues.

 

Como diz o escritor, no prefácio:

 

 

“A revolta surda que em toda gente latejava explode nas reações do escritor sob forma de cólera represa, de sarcasmo, de simpatia pela Rússia de Lênin, de anseio vago por uma revolução que viesse quebrar a sórdida cristalização leda e cega em que vivíamos desde 89.”.

 

No caso de Lobato, certamente não uma revolução guiada por alguma ideologia, mas, pelo contrário, pela primazia da realidade, com a abolição de um liberalismo palavroso, pela observância dos problemas práticos, pela defesa contundente dos avanços da tecnologias, desde a imprensa de Gutenberg ao avião de Santos Dumond. Nestes termos, pode-se dizer que Lobato era um progressista, não como ideólogo de esquerda, mas como defensor do desenvolvimento nacional.  

 

Em uma de suas crônicas, marcadas pelo seu típico bom humor, Lobato disserta sobre o aborrecimento dos deuses no céu, especialmente Netuno, Deus do Mar, que não mais consegue impedir por meio de raios e trovões as aventuras dos navegadores. Antes navegavam com barcos a vela e dependia dos sopros do vento para avançarem. Diante das novas tecnologias de navegação, que transitam os homens a todos os cantos do mundo, sem a necessidade e a preocupação com as situações climáticas, os Deuses deixavam de ter necessidade na terra.

 

Crítico do parlamentarismo (que seria uma invenção apenas razoável aos seus inventores ingleses), o escritor de Taubaté defende a seguinte palavra de ordem: enriquecei-vos!

 

“É evidente, pois, que só uma solução existe para todos os problemas nacionais: a indireta, a solução econômica. Só a riqueza traz instrução e saúde, como só ela traz ordem, moralidade, boa política, justiça.

 

- Enriquecei-vos! Deve ser a senha dos nossos estadistas.”.  

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

“Martim Cererê” de Cassiano Ricardo

 “Martim Cererê” de Cassiano Ricardo 

 


 

 

Resenha Livro – “Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heroes” – Cassiano Ricardo – Ed. São Paulo

 

Então o negro da Angola

Levou o garôto pra escola

que o primeiro yôyô branco

fundara junto ao barranco

à borda do campo em flor.

E disse: seu professor

Aqui trago este menino

Pra vassuncê dar um jeito

De fazer dele um doutor,

Pois nunca vi neste mundo

menino mais reinador.

 

(Sussurrava lá dentro do mato um Brasil todo em flor).”

 

Neste ano de 2022 comemoraremos no Brasil o bicentenário da Independência Nacional, marco histórico da constituição do país que superou o estatuto colonial, ao menos formalmente. Certamente, trata-se de um projeto ainda incompleto, que espera uma revolução nacional que lance as bases de uma efetiva soberania política, econômica e cultural.

 

Neste ano de 2022, ainda comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, movimento que criou as condições para a criação de uma arte nacional tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, superando nossa tendência de criar arte e literatura de acordo com escolas estrangeiras.

 

Martim Cererê do escritor paulista é certamente fruto daquele movimento iniciado em 1922.

 

O livro foi publicado em 1927, um ano antes do lançamento de Macunaíma, de Mário de Andrade. Contudo, o livro de poemas de Cassiano Ricardo foi certamente um sucesso de público se comparado ao mais famoso livro de Mário de Andrade, ao menos durante os anos 1920/30.

 

Em 10 anos foram publicadas 6 edições de Martim Cererê, sendo certo que cada publicação foi objeto de inclusão e exclusão de várias palavras, versos e poemas inteiros, de modo que se pode dizer que Martim Cererê foi realmente (re)escrito entre os anos de 1920/1960.

 

Inicialmente, o livro se situava dentro da proposta do movimento “Verde Amarelo” constituído por Menotti del Picchia (1892-1988), Plínio Salgado (1895-1988), Guilherme de Almeida (1890-1969) e Cassiano Ricardo (1895-1974).

 

Este movimento fazia contraposição ao movimento antropofágico capitaneado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ambos são fruto direto da Semana de 1922.

 

Posteriormente, o grupo “Verde Amarelo” seria objeto de um racha. Um setor capitaneado por Plínio Salgado passou a defender o integralismo e a aplicação do regime italiano fascista no Brasil. Cassiano Ricardo se opôs ao integralismo, vendo-o como um movimento que abandona a perspectiva nacional para endossar ideologia estrangeira. Por considerações parecidas, o escritor também se opunha ao comunismo. Em contraposição ao comunismo e ao integralismo, nasce o movimento “Bandeira”, sendo portanto, descabidas algumas críticas superficiais que buscam desmerecer Martim Cererê por uma suposta filiação ao nazi-fascismo.

 

Tanto é assim que nas primeiras edições do livro (antes do advento do integralismo) a obra era iniciada com um poema de Plínio Salgado, que foi posteriormente excluído das edições dos anos 1930.

 

Outro erro da crítica foi o de promover análises do livro se baseando em uma ou outra versão, desconsiderando as variações das diversas edições do livro – que refletiam a própria evolução do pensamento político de Cassiano Ricardo.

 

Vemos que o espírito bandeirante e sua importância na constituição do Brasil irá ganhar maior importância nas edições posteriores a 1932, após a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Igualmente, nas edições tardias, é dado maior relevo ao imigrante italiano, como um quarto elemento da “raça cósmica” brasileira, constituída pelo desbravador português (“caçador de relâmpagos”), o índio e o negro.

 

As alterações das diversas edições de Martim Cererê vão assim refletindo as mudanças políticas e seus impactos na consciência do escritor.

 

O livro não deve ser lido como uma somatória de pequenos poemas, mas como um único poema épico acerca da história do Brasil. Uma epopeia na qual o Brasil não foi descoberto “por acaso”, mas que é achado por navegadores com a consciência de cumprir um destino.  

 

Nosso país é retratado como uma nação na sua primeira infância:

 

“E como todo creador que quer fazer a criatura à sua imagem

 

Levou a criança travêssa

P’ra sua mãe-preta criar.

Depois botou-lhe barrete

Muito vermelho á cabeça

E começou a gritar:

Como fica bonito, elle assim !

Todo pintado de carvão

com o seu gôrro carmesim.”

 

(...)

 

“Então eu penso em mil cousas bonitas.

Penso no meu paiz onde tudo é creança.

Onde a terra é creança que brinca

Com borboletas á margem dos rios.

Onde os rios também são creanças

Brincando de carro com a roda da lua

Numa paisagem ainda torta e desmanchada

Toda manchada de esperança

Toda borrada de ilhas em debuxo

Com borrões de lápis verde num caderno de creança”

 

No ano do bicentenário da independência nacional, do centenário da Semana de 22 que lançou as bases do modernismo, inclusive no campo historiográfico quando advieram os livros de história do Brasil de Gylberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Caio Prado Júnior, nossa torcida é que uma nova onda nacionalista encante e mobilize os milhões de compatriotas em torno de vôos mais altos, tornando realidade todas as potencialidades do país. Como já foi dito, no guarda chuva do nacionalismo existe lugar para todos os brasileiros.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo

 A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo




 

Resenha Livro – “Raposa-Serra do Sol: o índio e a questão nacional” – Aldo Rebelo – Ed. Thesaurus

 

“É o conflito embutido na terra indígena Raposo-Serra do Sol, demarcada em 1,7 milhão de hectares, para usufruto exclusivo de aproximadamente 11 mil índios, em prejuízo de não índios que desde a Colônia ali também se instalaram com a têmpera dos bandeirantes. (...) Como já tivemos oportunidade de afirmar, o primeiro e maior erro neste debate é escolher um lado e nele entrincheirar-se para travar uma guerra santa que desconsidera a legitimidade dos demais atores que adensam o litígio. Forçoso é reconhecer que tal erro vem sendo cometido além do tolerável pelo partido dos índios, que desenha o debate como um antagonismo entre humanistas e burgueses – e nesta categoria infame são enfiados todos os que buscam uma saída encaixada num projeto nacional, sem ceder ao dogmatismo das facções.”.

 

A reserva indígena de Raposo-Serra do Sol se situa no extremo norte do Estado de Roraima, nas divisas do país com a Guiana e a Venezuela.

 

A querela envolvendo a demarcação das terras indígenas de Raposo-Serra do Sol ganhou repercussão nacional no ano de 2008 quando o STF garantiu a demarcação contínua do território, acolhendo a pressão de ONGs e movimentos indigenistas, em contraposição aos interesses de arrozeiros, das populações caboclas e até mesmo de parte expressiva dos índios que defendiam a demarcação em ilhas comunicantes.

 

Efetivamente, esta decisão acarretou a expulsão de moradores cujas família lá se situam há mais de cem anos, boa parte deles brasileiros agricultores voltadas à produção de arroz. A razão pela qual parte dos índios também se opunham à demarcação contínua era a efetiva diferença de estágios civilizatórios dentre as diferentes tribos – enquanto parcela dos índios ainda vivem sob estágio nômade, sobrevivendo da caça e pesca, outras atingiram maiores patamares de desenvolvimento, havendo índios que desenvolvem a agricultura e a pecuária.

 

Durante este litígio, Aldo Rebelo, então deputado federal por São Paulo/SP, foi uma das poucas vozes dentro da esquerda a se opor à referida homologação contínua das terras de Raposo-Serra do Sol.  

 

Neste livro, o político alagoano nos mostra como esta operação decorreu de uma campanha ideológica que buscou tratar do problema como um confronto maniqueísta entre fazendeiros ávidos de dinheiro e índios oprimidos (e que por esta razão merecem uma tutela não desinteressada de ONGs financiadas por grupos estrangeiros).

 

Por fora deste debate ficou temas importes como a questão geopolítica da Amazônia e os inúmeros precedentes históricos de intervenção estrangeira direta ou indireta em torno da espoliação das riquezas nacionais.

 

Em Roraima se situa a maior reserva de urânio do Mundo. E não é de agora que esta região desperta a cobiça do estrangeiro.  

 

Ainda em junho de 1838, um missionário anglicano de nome THOMAS YOUD chegou até a aldeia brasileira no Pirara em Roraima e instalou-se um pouco mais acima, criando uma missão religiosa entre os rios Pirara e Moneca, à margem esquerda do Guatatá. Atraiu para o local alguns ingleses, que se misturaram com os índios e com brancos que ali já estavam instalados.

 

No ano de 1901 foi levada à arbitragem internacional uma disputa territorial em torno da região do Pirara, igualmente na região fronteiriça de Roraima. O modus operandi dos ingleses é por nós conhecido: buscaram cooptar aparcelas de populações indígenas, a quem ensinaram o Inglês, para, então, buscar formar a ideia de que a região pertencia a uma nação diferente da do Brasil, através de uma propaganda em que os índios aparecem como vítimas da opressão de fazendeiros e latifundiários Brasileiros.

 

Tratando da questão do Pirara, diz  LUIZ ERNANI CAMINHA GIORGIS

 

A arbitragem atribuiu assim, à Inglaterra, o território entre os rios Mahú-Tacutú e o Rupununi, consagrando a usurpação de 1840, desprezando o divisor de águas – a Serra de Pacaraima – e, principalmente, trouxe o domínio britânico às ribanceiras do Tacutú, o que significou abrir aos ingleses o Rio Branco e, através deste, o acesso ao Amazonas. Em contrapartida, negou à Inglaterra o limite pelo rio Cotingo, recuando-o até o Mahú, procurando assim equilibrar o resultado.

 

No caso da questão de Raposa-Serra do Sol, os meios de atuação não parecem ter mudado a sua forma. Desconsiderou-se os interesses e opiniões de populações tradicionais e parcela significativa dos índios. Hoje, no Estado de Roraima, nada menos do que 46% do território corresponde à reserva indígena, sendo certo que países ricos da Europa e da América jamais se propuseram a criar reservas indígenas ou ambientais diante destas dimensões. Aos índios ianomânis foram reservados nada menos do que 9,6 milhões de hectares o que equivale ao território de Cuba.

 

Contudo, a existência destas reservas não significa desenvolvimento e bem estar dos indígenas, sendo relatado por Aldo Rebelo a pobreza, abandona e as doenças que afligem estas populações.

 

Ao visitar uma destas tribos ianomâni em Roraima, o político questionou a razão pela qual não havia fornecimento de luz e água àquelas populações, onde ainda grassavam doenças como tuberculose, e outras patologias decorrentes de falta de saneamento. Aldo relata que havia muito fogo dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem e grande incidência de doenças infecciosas. A ele foi respondido por uma dirigente de ONG que estes equipamentos não são autorizados por mudarem as referências culturais dos índios.

 

A despeito de todos os precedentes históricos envolvendo a cobiça estrangeira em torno da riqueza mineral e a biodiversidade da Amazônia, existe alguns brasileiros, influenciados por ideologias identitárias que buscam repudiar o nosso passado, alguns ao ponto de defender a internacionalização da Amazônia.

 

A Amazônia, além de ser detentora de uma grande biodiversidade detém importantes estoques de recursos minerais.  Os estudos mostram que a região Amazônica é detentora de grandes estoques de ferro, manganês, alumínio, cobre, zinco, níquel, cromo, titânio, fosfato, ouro, prata, platina, paládio, ródio, estanho, tungstênio, nióbio, tântalo, zircônio, terras-raras, urânio e diamante. Se a escassez de água já é uma preocupação mundial, temos que na Amazônia se situa a maior bacia hidrográfica do mundo, responsável pela drenagem de cerca de 7.500.000 km² de água.

 

Diante destas premissas, é fundamental a leitura deste pequeno livro de Aldo Rebelo para reposicionar os termos do problema da demarcação de terras indígenas, fugindo da superficial querela entre fazendeiros gananciosos e índios oprimidos e indefesos. O reiterado posicionamento da esquerda alinhado com interesses estrangeiros se fez perceptível recentemente na discussões sobre o Marco Temporal.  

 

O primeiro e mais importante direito de um povo é o direito da sua autodeterminação e de sua soberania. Isto porque se um povo não tem este direito significa dizer que todos os demais direitos serão determinados de fora, de acordo com os interesses do imperialismo.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

“O Mulato” Aluísio de Azevedo

 “O Mulato” de Aluísio Azevedo











Resenha Livro – “O Mulato” – Aluísio Azevedo – Iba Mendas Editor Digital


“- Mulato!

 

Esta palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do maranhão usara com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhes falavam sobre seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de menino aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da sua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escravo! E tu também o foste!”

 

Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na cidade de São Luís do Maranhão.

 

Era filho de um vice-cônsul Português, sendo certo que o próprio escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata, tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.

 

O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.

 

No ano de 1871 Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.

 

Da pintura, passaria à caricaturista, sendo certo que a sua literatura teria alguma influência decorrente e manteria interfaces com suas charges: seja a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é, seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica social e até mesmo humor.

 

“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor Maranhense, lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

  

O romance em análise não guardaria a mais pálida semelhança com o primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).

 

O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco, todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais. Já o segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma década antes d’o Mulato.

 

Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido, buscam dividir a obra de Aluísio de Azevedo entre os trabalhos propriamente naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais comerciais.

 

Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato” (1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o melhor livro de Aluísio Azevedo.

 

Contudo, da leitura de livros “Philomena Borges” (1884) e especialmente “O Coruja” (1890), chega-se à conclusão que estas obras não merecem a caracterização de livros superficiais. Inclusive, nestes trabalhos menos conhecidos verificamos a verve humorística cuja influência, como dito, decorre do trabalho anterior do caricaturista de jornal.

 

Há uma opinião de que as variações dos seus romances entre propostas experimentais naturalistas e romances de folhetim mais apetecidos ao público geral decorriam da necessidade financeira: Aluísio de Azevedo foi um dos primeiros escritores que efetivamente viviam e subsistiam da venda dos seus livros.

 

E como se caracteriza o naturalismo literário?

 

Pode ser caracterizado como uma ramificação do realismo, radicalizando a proposta da objetividade ao ponto de relacionar personagens e situações com as correntes cientificistas em voga no final do século XIX: o determinismo com sua noção de que  o ser humano está fadado a ter suas ações condicionadas pelas características biológicas e ao meio social em que vive; e o evolucionismo e a proposta da literatura como uma atividade experimental.

 

Conforme um dos criadores desta corrente literária, Émile Zola, mencionada no seu livro “O Romance Experimental” (1870), o escritor deve estar antes de tudo a serviço da realidade, só levando para seus escritos impressões coletadas do seu cotidiano e, portanto, legitimamente reais.

 

Diante destas premissas, a produção literária de Aluísio de Azevedo decanta aspectos da vida social, cultural e política do Brasil de fins do II Império.

 

No romance “O Mulato”, vemos temas candentes do período histórico como a abolição da escravatura, o papel da igreja na política e na sociedade, o republicanismo e o ideário de um pensamento laico, expresso no cosmopolitismo do protagonista do romance, Raimundo.

 

Raimundo é filho do português José Dias, um contrabandista de escravos português, com uma escrava chamada Domingas. Filho ilegítimo, portanto, que foi alforriado logo ao nascer e, aos 5 anos encaminhado à Portugal para estudar Direto, após a morte de seu pai.

 

Passados alguns anos, já adulto, o mulato volta à sua terra natal onde é recepcionado pelo seu tio Manuel, e fica no Maranhão com a finalidade de transacionar velhas terras herdadas de seu pai.

 

A reação da sociedade maranhense, o seu provincianismo, o maldizer e o atraso cultural de uma cidade contraditoriamente denominada “atenas brasileira” são o pano de fundo do enredo.

 

“A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cargueiros paravam para mirar o “cara-nova”. (...) Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele “tinha casta”.

 

Hospedado na casa de seu tio Manuel, Raimundo se apaixona por sua prima Ana Rosa. Contudo, o casamento não é admitido pelo pai por considerações puramente raciais. A tentativa de rapto de Ana Rosa por Raimundo acarretaria a morte trágica do Mulato, que foi executado por um pretendente que efetivamente se casaria com a filha de Manuel.

 

Seria, contudo, reducionismo dizer que a obra é um mero panfleto político em torno de teses progressistas daquele tempo: o pensamento laico e o abolicionismo.

 

Diante das premissas naturalistas, a história envolve uma certa fatalidade do personagem que, por sua origem e sua raça, tem a sua felicidade inviabilizada. Não se trata tanto de uma denúncia de uma sociedade que se pauta pelo preconceito de cor, mas da constatação de contradições de uma sociedade tardiamente escravocrata.

 

Por exemplo, temos a personagem Mônica, negra que cuida de Ana Rosa desde menina, que por sua vez lhe devota afeto de uma mãe. Também é certo que no Brasil, desde o início de sua ocupação territorial, predominou a mestiçagem, de modo que a oposição entre brancos e pretos não encontra no Brasil a mais remota semelhança com a experiência bi racial dos EUA. O mulato é desmerecido antes de tudo por sua origem de escravo e não pelo seu fenótipo.

 

É interessante frisar que O Mulato foi publicado em um contexto de acirrada polêmica nos jornais maranhenses entre jovens que postulam um pensamento laico e modernizador contra o conservadorismo dos membros e apoiadores da Igreja católica. Aluísio de Azevedo tomou parte nesta querela jornalística e este livro não envolve, como frequentemente se supõe, uma simples denúncia do racismo do povo brasileiro, mas a crítica do provincianismo do Maranhão, com grande parte de culpa pela intervenção de padres se, conduta ilibada, e, não menos importante, do instituto da escravidão.

 

Raimundo não é rejeitado apenas pelo tom de sua pele, mas principalmente por ser filho de escravo e ter sido alforriado na pia de batismo.

 

domingo, 9 de janeiro de 2022

“O Matuto” – Franklin Távora

 “O Matuto” – Franklin Távora




 

Resenha Livro - “O Matuto” – Franklin Távora – Iba Mendes Editor Digital

 

“Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que uma revolta filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas – ao comércio e a agricultura, princípios que, quando acordes em seu desenvolvimento, trazem a propriedade e riqueza dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento”.

 

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. Também não são poucos os romances que sevem de preciosa fonte histórica àqueles que desejam conhecer o passado de uma nação. No caso de “O Matuto” (1878) publicado pelo escritório cearense João Franklin da Silveira Távora, verificamos se tratar de uma epopeia descrevendo a Guerra dos Mascates (1710/1711) na região a Zona da Mata Pernambucana, então designada Goiânia.

 

Os eventos principais da Guerra dos Mascates ocorreram no Recife. O segundo palco principal da guerra foi esta região mais ao interior, onde se passa os eventos deste romance.  

 

O enredo se passa mais especificamente em Pasmado, uma velha povoação situada entre Goiânia e Olinda, outrora aldeia de índios, local onde se produzia facas, região onde houve cerca de 8 motins desencadeados pelos rebeldes de Recife contra os nobres da terra, designados como “mazombos” e “pés rapados.”.

 

Mais do que uma história épica da Guerra dos Mascates, temos neste romance uma descrição da fisionomia física e moral do “matuto” que é o sertanejo agricultor, o lavrador, o almocreve, bem como da sua estrutura familiar, dos costumes, do folclore, das festas populares, do papel da religião, dos enlaces conjugais. Mais do que um romance histórico, temos a partir da leitura deste romance regionalista uma fonte preciosa do sertanista brasileiro:

 

“No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão – eis em que ele consistia.

 

Todos tinham os pés nu, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.”.

 

Há divergência nas análises desta obra sobre o seu enquadramento literário. Parte da obra do nosso escritório se situaria no romantismo, outra parte seria precursora do realismo. Para alguns, seria mesmo um precursor do naturalismo.  

 

O certo é que Franklin Távora suscitou a proposta de criação de uma “Literatura do Norte” ou “Romance Histórico” a partir da trilogia: “O Cabelereira” (1876), “O Matuto” (1878) e “Lourenço” (1878).

 

Seria importante salientar que a produção literária de Távora se situa num contexto de fim do ciclo da cana de açúcar e redirecionamento do centro econômico do país para o eixo centro-sul, iniciado com a mineração e concluído com o ciclo do café.

 

Outro ponto a ser destacado: nosso escritor matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife em 1859, teve contatos pessoais com a chamada Escola de Recife e seus expoentes Tobias Barreto e Sílvio Romero.

 

Diante destas premissas, justificaria o escritor a criação de uma literatura do norte em oposição e com autonomia em relação ao sul, ou se quisermos, ao Rio de Janeiro.    

 

Ficaram conhecidas, neste sentido, as críticas de Franklin Távora ao escritor romântico José de Alencar, que seria um “escritor de gabinete”, em oposição à proposta literária parcialmente romântica do autor de Matuto, cujo enredo está lastreado em fatos e na pesquisa da história. Certamente, uma história parcial da Guerra dos Mascates, simpática aos senhores de engenho, e antipática à demagogia dos comerciantes portugueses, mas ainda assim, um romance com algum compromisso de narrar o passado, explicar quem foram os protagonistas dos eventos e, não menos importante, explicar as origens do país.

 

A Guerra dos Mascates iniciou-se a partir da proposta de elevação de Recife à condição de Vila, criando animosidade e oposição à nobreza de Olinda. Mais do que uma oposição geográfica, tratava-se de um conflito entre a nobreza da terra, ligada à agricultura, e tida como brasileira, e comerciantes citadinos do recife, designados mascates, boa parte deles portugueses. O controle dos preços do açúcar pelos comerciantes, a existência de empréstimos de dinheiro a juros abusivos, que levaram alguns proprietários de terra ao colapso, criaram as condições econômicas para a animosidade entre os dois grupos.

 

Os mascates diziam representar os interesses do povo e combater os privilégios da nobreza. Na prática, desenvolviam motins, praticavam saques, operavam como bandoleiros, matavam os fidalgos e estupravam suas mulheres, inclusive arregimentando o que poderíamos chamar de “lumpesinato” dentro de seu movimento. Este ódio contra os nobres era explorado por meio de ressentimentos prévios, sendo comum os mascates corromperem os escravos dos senhores de engenho para que eles sabotassem internamente à reação aos motins.

 

Se por um lado, os mascates apresentavam um discurso de representantes dos interesses populares, os rebeldes eram dirigidos por comerciantes portugueses, cujos interesses efetivos não era o igualitarismo político ou mesmo a abolição da escravatura, mas os desígnios pecuniários dos comerciantes. Comerciantes estrangeiros....

 

Ao menos no que se refere à interpretação da história por Franklin Távora, a efetiva defesa dos interesses nacionais estava do lado oposto da trincheira, dentro da resistência do matuto, dos senhores de engenho e dos trabalhadores do campo. Dos brasileiros....

 

“Em nome da lei, mascate! Gritou Cosme em tom de quem impunha silêncio. Sois apontado como perturbador da ordem, protetor dos rebeldes, e um deles. À frente de todos os motins que há dois meses perturbam o sossego desta vila, todos vos veem comprando os venais, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por hábito e condição. Os homens bons já estão cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada, as famílias fracas de receber insultos e violências dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de ouro. (...)”