quinta-feira, 3 de março de 2022

Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922

 Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922

 


 

 

“O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o estado de guerra na Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa. Quando a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de subtileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela “Revista do Brasil”; é esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neo-colonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos impregnados. Menotti de Picchia nos dera o “Juca Mulato”, estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro do movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importadas da Europa” (Mário de Andrade – “O Movimento Modernista” – Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, 1974, p. 235-6).

 

Este ano de 2022 será marcado pelas comemorações do bicentenário da independência nacional, o segundo grande movimento de constituição da Nação Brasileira, que é precedido pela nossa conformação territorial, desde a chegada dos portugueses à região onde hoje se localiza a comarca de Porto Seguro, até a delimitação de nossas fronteiras pelo Tratado de Madrid (1750).

 

Em 25/03/1922 seria fundado o Partido Comunista Brasileiro, agrupamento que manteria certa hegemonia na esquerda brasileira até o fim do regime militar e o período da redemocratização, quando o PT passaria a ocupar o posto de principal referência deste campo político.

 

Em 5 de Julho de 1922 ocorre o primeiro levante tenentista, conhecido como “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, marcha heroica realizada por dezessete militares e um civil contra Epitácio Pessoa e a eleição de Arthur Bernardes, e que postulava o fim da Republica Velha, que efetivamente cairia oito anos depois, com a Revolução de 1930.

 

Entre os dias 13, 15 e 17 de Fevereiro ocorre a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Foram três noites de conferências, audições musicais e leituras de poemas, que tiveram como pretexto a comemoração do centenário da independência.

 

Passados cem anos do evento que ficou conhecido como introdutor do modernismo nas artes brasileiras, temos que a Semana ainda é cercada de alguns mitos.

 

A despeito de sua inequívoca importância no desenvolvimento da literatura, poesia, artes plásticas e arquitetura, é certo que o evento não produziu grande repercussão e impacto na sociedade brasileira na década de 1920/30, período em que era predominantemente agrária e iletrada.

 

Fora alguma repercussão na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, majoritariamente desfavorável, a Semana de 1922 passou despercebida para o restante da população.

 

Consta que apenas na década de 1940, a partir de uma análise retrospectiva daqueles eventos e, em especial, da palestra proferida por Mário de Andrade no Itamaraty e artigos publicados pelo autor de Macunaíma no Estado de São Paulo em 1942, é que a Semana de 22 foi alçada a grande momento de modernização artística, de certa forma antecedendo a modernização política e econômica da Era Vargas.

 

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 17 e da ascensão do fascismo na Europa ( a Marcha sobre Roma de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

 

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

 

Contudo, outro mito que cerca o movimento é o de que teria havido um rompimento com a orientação elitista de arte, desde o parnasianismo e do simbolismo, contra o qual os novos artistas de fato se opunham.

 

As próprias condições sociais do país fariam com que aquele movimento fosse produzido pela elite e para elite, ainda que poemas como “Ode ao Burguês”, indicassem uma rebeldia em face das coisas existentes.

 

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

 

Na prática, a Semana foi patrocinada por aristocratas de São Paulo, em especial Paulo Prado, da tradicionalíssima família cafeicultora Silva Prado. Igualmente, consta que o evento causou enorme prejuízo aos seus patrocinadores.

 

Também não é inteiramente correto dizer que o movimento modernista significa uma ruptura com as escolas literárias estrangeiras e a constituição de uma arte inteiramente nacional.

 

Tratou-se antes de tudo de uma manifestação tardia de novas ondas renovatórias da arte na Europa, no caso o futurismo italiano, o dadaísmo francês e o expressionismo alemão.

 

Posteriormente, quando da redação do “Manifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade, esta dialética entre o estrangeiro e o nacional seria mais bem equacionada. Baseando-se na história do Brasil colonial quando os índios, em ritual de guerra, ingerem o estrangeiro, temos que o indígena, na prática, incorpora elementos e atributos do inimigo, eliminando diferenças entre eles.

 

 

O último e não menos importante mito que cerca a Semana de 22 é o de que aquele evento teria constituído uma ruptura brutal com as tendências artísticas anteriores. Talvez por isso, muitos classificam autores anteriores ao movimento como “Pré-Modernistas”: Lima Barreto e Monteiro Lobato como principais exemplos.

 

Na verdade, estes escritores de certa forma antecederam preocupações dos modernistas, como o abrasileiramento e popularização da linguagem. O destaque dos problemas cotidianos, as expressões populares e um certo regionalismo estão presentes tanto em Lobato quanto em Lima Barreto, e se se desdobrariam em versos como este de Oswald de Andrade:

 

“Dê-me um cigarro. Diz a gramática. Do professor e do aluno. E mulato sabido. Mas o bom negro e bom branco. Da Nação brasileira. Dizem todos os dias. Deixa disso camarada. Me dá um cigarro.”.

 

Aliás, é digno de nota que as famosas críticas de Monteiro Lobato à Anita Malfatti datam de 1917, ou seja, cinco anos antes da Semana. Também é certo que o escritor de Taubaté foi o primeiro a ser convidado pelos jovens modernistas como patrono da Semana.

 

Por conta da recusa de Lobato, para quem o modernismo era “brincadeira de crianças inteligentes”, foi escolhido o escritor Graça Aranha para desempenhar o papel de padrinho do movimento.

 

Cem anos depois, olhando-se em perspectiva, verifica-se que a Semana de 1922 foi um ponto de partida para o desenvolvimento de uma literatura não acadêmica, regionalista e atenta à realidade popular, criando as condições para a aparição de escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, João Guimarães Rosa, entre outros.

 

Bibliografia

 

CAMARGO, Márcia. “Semana de 22: entre vaias e aplausos”. Paulicéia. Boitempo Editorial. 2003.

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