domingo, 16 de outubro de 2022

“HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA

 “HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA


 

Resenha Livro -  “História de Um Pescador” (Cenas da Vida do Amazonas) – Inglês de Sousa – Ed. UFPA

 

“A natureza toda tinha porém esse aspecto triste e sombrio que desperta a simpatia nas almas dominadas por uma grande dor. A vegetação luxuriante, grandiosa, mas monótona e triste do Amazonas, tinha um aspecto desolador.

 

As águas do rio corriam tranquilas e de quando em quando boiavam os botos com um ruído surdo.

 

O rumor cadenciado do remo redondo do pescador batendo contra as bordas da montaria não destruía o contristador silêncio que o cercava, antes contribuía para aumentá-lo.

 

Tudo em redor de José lhe agravava a imensa tristeza”

 

“História de um Pescador” é o segundo livro publicado pelo escritor paraense Herculano Marcos Inglês de Souza.

 

O romance data de 1896 e foi escrito quando o escritor cursava o último ano do curso de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo. O livro foi lançado na forma de folhetim, tendo sido publicado no Jornal Tribuna Liberal.

 

Talvez por ser pouco conhecido do público e até mesmo da crítica, poucos sabem que Inglês de Souza é o verdadeiro precursor do naturalismo literário no Brasil.

 

O movimento naturalista consiste num desdobramento e numa espécie de radicalização do objetivismo e impessoalismo que marca o realismo literário. Diferencia-se deste último movimento já que a análise psicológica dos personagens e os seus destinos são, no naturalismo, condicionados pelo meio social e por caracteres hereditários. Enquanto no realismo ainda se cogita de algum livre arbítrio, as personagens descritas pelos romances naturalistas têm o seu destino condicionado pelo meio social e pelos caracteres raciais, em consonância com as teorias cientificistas típicas do fim do século XIX. Ademais, há no naturalismo uma pretensão da descrição de pessoas e enredos de maneira parecida com que o cientista descreve fenômenos da natureza.

 

Costuma-se identificar o início do naturalismo no Brasil com os romances de Aluísio de Azevedo. O escritor maranhense produziu obras mais experimentais dentro do naturalismo (Casa de Pensão, O Cortiço, O Mulato) e obras mais convencionais como a comédia Filomena Borges e O Coruja: foi efetivamente um dos primeiros escritores brasileiros que sobreviveu das suas publicações, motivo pelo qual transitou entre diversos estilos e escolas literárias. Ocorre que que sua primeira obra naturalista que foi “O Mulato” data de 1881, enquanto a produção literária de Inglês de Souza data de 1875!

 

Nascido em Óbidos no Pará em 1853, aos 14 anos Inglês de Souza é internado no Colégio Perseverança no Rio de Janeiro. No ano de 1872, matricula-se no curso de Direito de Recife, tendo completado a graduação em São Paulo.

 

Ainda que tenha passado a maior parte da vida na região sudeste do Brasil, os livros de Inglês de Souza primam por uma descrição rica em detalhes das condições sociais e culturais do caboclo do norte – também chamado de tapuio. A minúcia com que relata histórias de pescadores e trabalhadores em regime de escravidão por dívidas, a exuberante natureza amazônica, a melancolia do caboclo, os requintes de crueldade dos latifundiários e a opressão das forças políticas que presidem as instituições decorreu de histórias que escutou de seu pai, que foi juiz municipal de Óbidos e de um tio paterno, que fora professor de filosofia do Liceu de Manaus.

 

“História de um Pescador” relata a trajetória do tapuio José, filho de um pescador chamado Anselmo, que morreu afogado enquanto trabalhava para Capitão Fabrício, o latifundiário que dominava e oprimia a população do Igarapé do Alenquer, no norte do Pará.

 

Quando criança, José por brincadeira ateou fogo na fazenda do coronal Fabrício que, furioso, o obrigou a se matricular num seminário em Óbidos. Lá ficou José durante quatro anos, vivendo uma vida melancólica, já que inexistente em seu espírito a vocação do estudo e da religião. Quatro anos após ter sido internado, ao saber da morte do pai, José foge do seminário, retorna para o Igarapé do Alenquer, onde o Capitão Fabrício o admite em sua fazenda e o obriga a trabalhar para quitar as dívidas do pai.

 

O regime de exploração do trabalho dos tapuios na Amazônia se dava pela escravidão dos negros e pela escravidão por dívidas dos tapuios. Muitos agregados trabalhavam a vida toda para quitar os débitos junto aos coronéis, que além de proprietários das terras comandavam o comércio da região e forneciam mercadorias em troca dos serviços. O latifundiário ainda se servia da Guarda Nacional e da ameaça do recrutamento, para manipular e oprimir esta população mais simples: aqueles que manifestavam algum sinal de rebeldia eram prontamente recrutados para a Guarda Nacional, causa de terror do homem simples, que se viam obrigados a abandonar família e filhos.

 

O estilo naturalista da obra, com sua obsessão em descrever personagens e fatos de forma objetiva, cria as condições para que o leitor conheça em detalhes os aspectos da vida do caboclo da Amazônia.

 

Da leitura da obra, se conhece as condições de miséria dos tapuios:

 

“Em casa eles só faziam as despesas indispensáveis. Em lugar de café bebiam o chá feito de folhas de uns cafeeiros abandonados das terras do capitão. Por alimento o pirarucu seco, e quando este recurso dos pobres faltava, comiam papagaios e macacos que José caçava.

 

Farinha nem sempre a tinham, e supriam o uso dela com bananas verdes assadas na brasa. Dias havia em que nada mais tendo alimentavam-se do vinho de cacau puro e simples.”.

 

José se apaixona por uma bela rapariga chamada Joaninha, com quem ajusta o casamento. Contudo, Capitão Fabrício interessa-se pela mulher, e arregimenta capangas que a sequestram, para satisfação da luxúria do latifundiário. O final trágico da história já indica uma literatura que se diferencia das tramas convencionais que se situam nos marcos do romantismo, que se caracterizam pelo “final feliz”, ou pela prevalência do “bem contra o mal”. Dentro da ótica naturalista, prevalece o determinismo social, a força dos brancos sobre os tapuios e a tragédia social.

 

A despeito do pioneirismo e da riqueza artística das “Cenas da vida do Amazonas”, a obra de Inglês de Souza ainda aguarda publicações por intermédio de grandes editoras. As últimas publicações dos livros do escritor foram promovidas dentro da “Coleção Amazônida” pela Universidade Federal do Pará.  

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