quarta-feira, 18 de setembro de 2019

“Sobre o Suicídio” – Karl Marx


“Sobre o Suicídio” – Karl Marx



Resenha Livro - “Sobre o Suicídio” – Karl Marx – Editora Boitempo – 2006

“Sobre o suicídio” foi publicado no ano de 1846 no Orgão de Representação de Classes Despossuídas da Alemanha denominado Gesellschaftsspiegel. Enquanto Marx viveu, o ensaio não seria publicado novamente, sendo raras as menções do artigo desde então. Uma segunda publicação se daria apenas no ano de 1932, nas obras completas publicadas em alemão, quando foram suscitadas pela primeira vez outras obras importantes como os “Manuscritos Econômico-filosóficos” e a “Sagrada Família”.

Estamos diante de um trabalho do jovem Marx, anterior à ruptura epistemológica a que Althusser se refere a partir da publicação de Ideologia Alemã (divulgado ao público apenas em 1933) e consolidada em sua obra científica de maior envergadura, O Capital (1867).

Este ensaio foi escrito de maneira conjunta com Jacques Peuchet (1758-1830). Não se trata de uma peça escrita pelo próprio Marx, mas de enxertos traduzidos do alemão das memórias de Peuchet, um monarquista que participara pessoalmente da Revolução Francesa e, após uma trajetória de idas e vindas, ocupando cargos públicos e na imprensa, termina como arquivista do departamento de polícia de Paris. É lá e nesta condição que Peuchet escreve em suas memórias os relatos dos suicídios naquela cidade, sempre desde um ponto de vista crítico, não moralista, o que provavelmente levou o jovem Marx a se interessar pelos escritos e republicá-lo em alemão, atribuindo ao texto algumas considerações pessoais[1].

O ensaio antecipa temas como o aborto e a opressão familiar no seio da sociedade burguesa: trata-se de uma crítica social da sociedade capitalista na sua fase de florescência, do desenvolvimento das cidades e das fábricas, da livre concorrência e dos primeiros passos na conformação do proletariado.

O suicídio é demonstrado como o último recurso contra os males da vida privada: a opressão familiar, o problema do aborto e o adultério são reiteradas causas dos suicídios, especialmente entre as mulheres, de modo que se pode mesmo estabelecer que o artigo de Marx antecipa a questão feminina, o que, por outro lado, não nos autoriza ainda a caracterizar o velho mouro como um feminista avant la lettre.

Sim, Marx destaca que a causa da morte da mulher, vítima do ciúmes doentio do seu companheiro, reside no trato da companheira como se  baseado no código civil e no direito de propriedade. Mas, a crítica de Marx vai mesmo além: “o ciumento é antes de tudo um proprietário privado”. A propriedade privada é a expressão jurídica do capital e são nas relações sociais cindidas pelas determinações econômicas as chaves explicativas essenciais do suicídio. Ocorre que neste momento Marx ainda não formulara por completo sua crítica da economia capitalista, implicando numa interpretação ainda parcial do problema.

É certo que o suicídio não é um fenômeno restrito das classes exploradas. Dentre as histórias de suicídios relatadas por Marx há aquelas relacionadas às mulheres de alta sociedade: brigas, paixões, desgostos domésticos são segundo uma classificação de Peuchet a causa primeira do suicídio em Paris no período considerado. Mas é certo que muitas das histórias que viraram estatística diziam respeito ao desespero da miséria e da fome. Nos momentos de crise econômica aumentam o suicídio, o latrocínio e a prostituição. Um homem casado e com duas filhas encontra-se desempregado enquanto as mulheres da casa o sustentam fazendo costuras. Sentindo-se um peso morto, o homem se mata. Outros recorrem ao assassinato e outras recorrem à prostituição. “No capitalismo é mais fácil arranjar a pena capital pelo cometimento de um crime do que algum trabalho”.

O que se observa neste curto e interessante ensaio é como Marx já de forma pioneira antecipa a forma com que a tradição crítica deve pensar o problema do público e do privado. Como é cediço, tal separação envolve uma visão burguesa de mundo, a partir da qual se consolida a opressão familiar no recinto doméstico, o domínio da mãe e do pai pelos filhos, do marido pela esposa, etc. É interessante que mesmo o monarquista Peuchet identifica ser necessário estender as garantias da revolução francesa no seio doméstico. Em Marx já se destaca aqui uma crítica social inspirada na ideia de que o privado é também político. O suicídio aqui é o sintoma de uma sociedade doente, que necessita de transformações radicais. Ainda que diferentes, o público e o privado se relacionam intimamente, através de diferentes determinações entre si.

É certo que o ensaio ainda diz respeito a um jovem Marx. A própria escolha de Peuchet, um monarquista, romântico e endossador das ideias de Rousseau, já é reveladora neste sentido. O romantismo esteve presente no pensamento de setores médios, camponeses e aristocratas que viram seu mundo submergir pelo advento da revolução industrial, da revolução burguesa, da modernidade. O romantismo não é somente uma escola literária mas um protesto cultural contra a civilização capitalista em nome de um passado idealizado. Esta vinculação entre Marx e o romântico Peuchet sinaliza o ponto de partida a partir do qual a trajetória do pensamento crítico de Marx seguirá, do mundo das ideias, para a crítica da economia política.
  

“As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável. Madame de Staël, cujo maior mérito está em ter estilizado lugares-comuns de forma brilhante, tentou demonstrar que o suicídio é uma ação antinatural e que não se deve considerá-lo um ato de coragem; sobretudo, ela sustentou a ideia de que é mais digno lutar contra o desespero do que a ele sucumbir. Argumentos como esses afetam muito pouco as almas a quem a infelicidade domina. Se são religiosas, as pessoas especulam sobre um mundo melhor; se, ao contrário, não creem em nada, então buscam a tranquilidade do Nada. As “saídas” filosóficas não têm, a seus olhos, nenhum valor e são um débil lenitivo contra o sofrimento. Antes de tudo, é um absurdo considerar antinatural um comportamento que se consuma com tanta frequência; o suicídio não é, de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. O que é contra a natureza não acontece”.



[1] Para Michel Lowy, em que pese o ensaio ter sido escrito de forma conjunto, o texto final pode ser lido como um todo de autoria de Marx.

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