“Sobre
o Suicídio” – Karl Marx
Resenha
Livro - “Sobre o Suicídio” – Karl Marx – Editora Boitempo – 2006
“Sobre
o suicídio” foi publicado no ano de 1846 no Orgão de Representação de Classes Despossuídas
da Alemanha denominado Gesellschaftsspiegel. Enquanto Marx viveu, o ensaio não
seria publicado novamente, sendo raras as menções do artigo desde então. Uma
segunda publicação se daria apenas no ano de 1932, nas obras completas
publicadas em alemão, quando foram suscitadas pela primeira vez outras obras
importantes como os “Manuscritos Econômico-filosóficos” e a “Sagrada Família”.
Estamos
diante de um trabalho do jovem Marx, anterior à ruptura epistemológica a que
Althusser se refere a partir da publicação de Ideologia Alemã (divulgado ao
público apenas em 1933) e consolidada em sua obra científica de maior
envergadura, O Capital (1867).
Este
ensaio foi escrito de maneira conjunta com Jacques Peuchet (1758-1830). Não se
trata de uma peça escrita pelo próprio Marx, mas de enxertos traduzidos do alemão
das memórias de Peuchet, um monarquista que participara pessoalmente da
Revolução Francesa e, após uma trajetória de idas e vindas, ocupando cargos
públicos e na imprensa, termina como arquivista do departamento de polícia de
Paris. É lá e nesta condição que Peuchet escreve em suas memórias os relatos
dos suicídios naquela cidade, sempre desde um ponto de vista crítico, não
moralista, o que provavelmente levou o jovem Marx a se interessar pelos
escritos e republicá-lo em alemão, atribuindo ao texto algumas considerações
pessoais[1].
O
ensaio antecipa temas como o aborto e a opressão familiar no seio da sociedade
burguesa: trata-se de uma crítica social da sociedade capitalista na sua fase
de florescência, do desenvolvimento das cidades e das fábricas, da livre
concorrência e dos primeiros passos na conformação do proletariado.
O
suicídio é demonstrado como o último recurso contra os males da vida privada: a
opressão familiar, o problema do aborto e o adultério são reiteradas causas dos
suicídios, especialmente entre as mulheres, de modo que se pode mesmo
estabelecer que o artigo de Marx antecipa a questão feminina, o que, por outro
lado, não nos autoriza ainda a caracterizar o velho mouro como um feminista avant
la lettre.
Sim,
Marx destaca que a causa da morte da mulher, vítima do ciúmes doentio do seu
companheiro, reside no trato da companheira como se baseado no código civil e no direito de propriedade.
Mas, a crítica de Marx vai mesmo além: “o ciumento é antes de tudo um
proprietário privado”. A propriedade privada é a expressão jurídica do capital
e são nas relações sociais cindidas pelas determinações econômicas as chaves
explicativas essenciais do suicídio. Ocorre que neste momento Marx ainda não
formulara por completo sua crítica da economia capitalista, implicando numa
interpretação ainda parcial do problema.
É certo
que o suicídio não é um fenômeno restrito das classes exploradas. Dentre as
histórias de suicídios relatadas por Marx há aquelas relacionadas às mulheres
de alta sociedade: brigas, paixões, desgostos domésticos são segundo uma
classificação de Peuchet a causa primeira do suicídio em Paris no período
considerado. Mas é certo que muitas das histórias que viraram estatística diziam
respeito ao desespero da miséria e da fome. Nos momentos de crise econômica
aumentam o suicídio, o latrocínio e a prostituição. Um homem casado e com duas
filhas encontra-se desempregado enquanto as mulheres da casa o sustentam
fazendo costuras. Sentindo-se um peso morto, o homem se mata. Outros recorrem
ao assassinato e outras recorrem à prostituição. “No capitalismo é mais fácil arranjar
a pena capital pelo cometimento de um crime do que algum trabalho”.
O que
se observa neste curto e interessante ensaio é como Marx já de forma pioneira
antecipa a forma com que a tradição crítica deve pensar o problema do público e
do privado. Como é cediço, tal separação envolve uma visão burguesa de mundo, a
partir da qual se consolida a opressão familiar no recinto doméstico, o domínio
da mãe e do pai pelos filhos, do marido pela esposa, etc. É interessante que
mesmo o monarquista Peuchet identifica ser necessário estender as garantias da
revolução francesa no seio doméstico. Em Marx já se destaca aqui uma crítica
social inspirada na ideia de que o privado é também político. O suicídio aqui é
o sintoma de uma sociedade doente, que necessita de transformações radicais.
Ainda que diferentes, o público e o privado se relacionam intimamente, através
de diferentes determinações entre si.
É certo
que o ensaio ainda diz respeito a um jovem Marx. A própria escolha de Peuchet,
um monarquista, romântico e endossador das ideias de Rousseau, já é reveladora
neste sentido. O romantismo esteve presente no pensamento de setores médios,
camponeses e aristocratas que viram seu mundo submergir pelo advento da
revolução industrial, da revolução burguesa, da modernidade. O romantismo não é
somente uma escola literária mas um protesto cultural contra a civilização
capitalista em nome de um passado idealizado. Esta vinculação entre Marx e o
romântico Peuchet sinaliza o ponto de partida a partir do qual a trajetória do
pensamento crítico de Marx seguirá, do mundo das ideias, para a crítica da
economia política.
“As
doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente,
as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos
familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um
entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para
pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa
força enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar
uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável. Madame de
Staël, cujo maior mérito está em ter estilizado lugares-comuns de forma
brilhante, tentou demonstrar que o suicídio é uma ação antinatural e que não se
deve considerá-lo um ato de coragem; sobretudo, ela sustentou a ideia de que é
mais digno lutar contra o desespero do que a ele sucumbir. Argumentos como
esses afetam muito pouco as almas a quem a infelicidade domina. Se são
religiosas, as pessoas especulam sobre um mundo melhor; se, ao contrário, não
creem em nada, então buscam a tranquilidade do Nada. As “saídas” filosóficas
não têm, a seus olhos, nenhum valor e são um débil lenitivo contra o
sofrimento. Antes de tudo, é um absurdo considerar antinatural um comportamento
que se consuma com tanta frequência; o suicídio não é, de modo algum,
antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. O que é contra a natureza
não acontece”.
[1] Para Michel Lowy, em que pese o
ensaio ter sido escrito de forma conjunto, o texto final pode ser lido como um
todo de autoria de Marx.
Nenhum comentário:
Postar um comentário