Carlos Marighella e a Revolução Brasileira
Resenha – Textos Diversos – Carlos Marighella
– Marxists.org
“São estas relações de produção que estão
em crise – se assim podemos dizer. Pois já não se harmonizam às condições
exigidas para o nosso progresso e desenvolvimento. E constituem um obstáculo ao
avanço de nossas forças produtivas. O que se torna evidente pelo domínio do
imperialismo norte-americano sobre a propriedade e a economia brasileira, pela
predominância e o monopólio da propriedade territorial latifundiária, pelo
desajuste na apropriação dos frutos do trabalho, pela desproporcional distribuição
dos bens materiais, acentuando a acumulação das riquezas em mãos de uns poucos
privilegiados, enquanto milhões de brasileiros vegetam, reduzidos a mais rasa
miséria”. MARIGHELLA, A crise brasileira. 1966.
Carlos Marighella ficou conhecido na
história como o inimigo número um da ditadura militar instaurada pelo golpe de
1964. Contudo, sua trajetória militante remonta a período mais remoto na
história dos movimentos sociais e populares no Brasil.
Nascido em Salvador em 1911, ingressou no
PCB em 1934, durante a era Vargas. Em maio de 1936 foi preso e torturado e
permaneceu encarcerado durante um ano. Após algumas idas e vindas na prisão,
Marighella foi solto em 1945 e eleito deputado constituinte pelo partido
comunista desde o governo Dutra em 1946. Como se sabe, o mandato não duraria muito
pois o PCB seria logo depois colocado na ilegalidade.
Um texto fundamental para se conhecer as
posições dos comunistas na constituinte corresponde ao discurso pronunciado por
Marighella na sessão de 4 de julho de 1946, por ocasião do debate sobre o
projeto constitucional. A saber:
“Dizíamos, então, que o projeto
constitucional era reacionário, falho e insuficiente, preso ainda a fórmulas
antiquadas, sem ver a realidade brasileira,
assegurando a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de
estagnação e retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praças e analfabetos,
sujeitando a justiça eleitoral ao Poder Executivo, negando a autonomia dos
municípios, negando o direito de greve, passando para uma tímida repressão aos
trustes e monopólios, em vez de impedi-los; não abrindo perspectivas para
liquidação do monopólio da terra, fonte do atraso de todo o nosso povo, e, por
fim, não assegurando a completa separação entre a Igreja e o Estado”.
Como se vê, os comunistas então propugnavam
um programa de tipo nacionalista e democrático. Buscavam alargar as liberdades
democráticas numa frente única que incluía setores do que poderíamos denominar
de burguesia nacional, pequeno burguesia e camponeses. Mais adiante, quando das
conclusão acerca da derrota das esquerdas diante do golpe de 1964 Marighella
irá salientar, entre outros, o erro de uma política de reboque à burguesia, à
ausência da independência de classe possibilitando que Jango e os setores da
burguesia nacional hegemonizassem a frente única.
O programa nacionalista e democrático
partia de uma premissa talvez verdadeira na China dos anos 1927-1949 e na
Rússia de 1905-17, qual seja, a instauração de um programa não propriamente
socialista e revolucionário ante os resquícios feudais que informariam a
sociedade, a economia e a política. Em que pese hoje serem poucos aqueles que
entendem ter o Brasil sido colonizado pelos portugueses sob um modo de produção
feudal nos mesmos moldes na Europa anterior às revoluções burguesas, esta
análise ainda era, em meados do séc. XX no Brasil, bastante recorrente,
especialmente no meio da esquerda.
Em todo caso, é claro nos artigos deste período
a preocupação dos comunistas em ampliar direitos democráticos por dentro das
instituições e no movimento de massas. É o caso do pronunciamento supracitado e
a intervenção de Marighella em conferência do PCB em 1956, “Por um Amplo
Trabalho de Agitação e Propaganda Entre as Mulheres”. Marighella reconhece como
partido vinha dando pouca atenção às demandas das mulheres e como o imperialismo
por meio da propaganda nas rádios e novelas ia incutindo um temor ante o
comunismo, como se eles fossem contra a família e a religião.
Os comunistas brasileiros não incorrem no
erro vulgar do combate à religião, mas, pelo contrário, suscitam o direito
democrático ao culto religioso. Sobre o tema, diz Marighella na constituinte: “Não
nos devemos nos esquecer de que, durante o longo período do Estado Novo eram os
Centros espíritas fechados sob a alegação de constituírem focos de agitação”.
A política levada pelos comunistas naquele
caso era a efetiva separação do estado e religião o que, na década de 1950,
significava o casamento civil gratuito, o ensino leigo ministrado nos
estabelecimentos públicos, a inviolabilidade da liberdade da consciência e a
possibilidade do divórcio. Citando Lênin e Marx em pleno congresso nacional
constituinte, o dirigente não deixa de lembrar que “a religião é o suspiro da criatura oprimida,
a alma de um mundo sem coração, bem como é o espírito de uma civilização da
qual se excluiu o espírito. Ela é o ópio do povo”.
No mesmo discurso, Marighella suscita
aspectos positivos ou progressistas da própria religião cristã, como a passagem
bíblica em que se diz ser mais difícil um camelo entrar pelos fundos de uma
agulha, do que um rico entrar no reino de Deus.
A Crise Brasileira
Fazendo uma leitura em ordem cronológica de
textos de Carlos Marighella, é possível observar uma clivagem entre os períodos
que antecedem e sucedem o golpe de 1964. É neste contexto que Marighella escreve
o importante artigo “A Crise Brasileira” (1966) que antecede sua ruptura com o
PCB, esta em dezembro de 1966. O balanço de Marighella é que a vitória dos
golpistas deu-se em razão de uma série de fatores: a falta de resistência, o
despreparo dos comunistas que viram perplexos os acontecimentos. A resistência
dos comunistas tornou-se impossível por que sua política, como vimos, vinha
sendo feita sob a dependência da liderança da burguesia. Houve igualmente a
subestimação do perigo da direita fruto do reboquismo e ilusões no governo
Goulart. Havia uma confiança excessiva no dispositivo militar. Subestimou-se
enfim o perigo do golpe, um erro que a esquerda cometeu quando do impeachment
de Dilma em 2016.
Em todo o caso, já neste artigo Marighella
pontua que a mudança radical no panorama política exige também uma mudança
tática. Na situação anterior, o movimento de massas estava em ascensão – havia um
governo da burguesia, lutando pelas reformas à sua maneira, dentro de um clima
de liberdades. No pós 1964 temos uma ditadura entreguista, militar, dentro de
um clima onde as liberdades democráticas foram suprimidas. O objetivo
inequívoco é derrotar a ditadura e fazê-lo pela violência, pela resistência das
massas em suas mil e uma particularidades. O movimento de massas não visa como
antes mudar o governo. Seu escopo é derrubar o governo.
Marighella chama atenção para as
debilidades da burguesia nacional Brasileira o que se relaciona por sua vez com
a chamada crise brasileira: suas origens remontam ao crescimento do capitalismo
de forma tardia no país e em condições de dependência do imperialismo. No
Brasil a burguesia nacional é débil, seja pela inaptidão de se dissociar do
imperialismo norte americano, seja pela impossibilidade de eliminar o latifúndio.
Se compararmos os artigos “A Crise
Brasileira” de 1966 e a interessantíssima carta de dezembro de 1968 “Quem Samba
Fica, Quem Não Samba Vai Embora”, observa-se que Marighella radicaliza algumas
de suas posições críticas aos partidos ao ponto de sugerir que o problema da
teoria e da organização partidária seriam questões de gabinete, problemas de
burocratas, restando a atividade prática revolucionária como meio efetivo para
o objetivo de derrotar a ditadura.
Em vez da palavra, a ação. Em vez de uma
direção político-partidária de vanguarda, uma cúpula com os mais valentes e
mais destacados guerrilheiros. Em vez de trabalho de base, ainda que
clandestino, junto as massas e especialmente aos trabalhadores nas fábricas, o
terror. O que é certo é que os movimentos da guerrilha que lutaram contra a
ditadura no Brasil certamente demonstraram a coragem de muitos que estiveram
dispostos a lutar até a morte pela revolução brasileira. Mas é inquestionável
que o seu isolamento social e a falta de uma vinculação com a classe
trabalhadora foram as principais causas do seu isolamento e derrota.
“Vocês tem carta branca na frente
guerrilheira para desencadear a ação. Só não têm carta branca para coisas
burocráticas, isto é, para impedir ações planejadas pelos grupos, sejam eles
quais forem. Nem podem fazer discussões formais. É preciso ação e mais ação.
Distribuir manifestos, pichar muros, sabotar, fazer política de terra arrasada,
tudo isto com tabuco na cintura. Ninguém deve se deixar prender sem
resistência. Por isto deve andar armado. E atirar para matar policiais e dedos-duros.
A ditadura tem medo e nós não vamos parar nem sair do ritmo porque os fascistas
deram um golpe dentro do golpe”. MARIGHELLA. Carta dirigida aos revolucionários
de São Paulo, 1968.
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