quarta-feira, 24 de julho de 2013

“As Metamorfoses da Consciência de Classe” – Mauro Iasi


Resenha livro #65 “As Metamorfoses da consciência de classe: O PT entre a negação e o consentimento” – Mauro Iasi – Ed. Expressão Popular


Mauro Iasi é um importante intelectual orgânico da esquerda socialista brasileira. Doutor em sociologia pela USP, é dirigente do PCB, além de ter atuado como educador popular do NEP 13 de Maio, um grupo de formação de quadros políticos. Este livro, já em segunda edição pela Ed. Expressão Popular, corresponde à sua tese de doutorado. O tema da dissertação envolve o processo de tomada de consciência política, desde os seus momentos individuais, grupais e classistas. As metamorfoses da consciência envolvem um estudo que vai além de determinações causais exclusivas, como a posição social do indivíduo frente às relações de produção historicamente colocadas, a educação ou como fruto de uma suposta essência humana.

Consoante Marx, não é a consciência que determina o ser social. Ao contrário: é o ser social que determina a consciência. Dentro desta perspectiva, é possível ver como a consciência se reproduz inicialmente por meio de ações seriais objetivadas, espécie de ponto de partida da consciência, que expressa valores e ideias dominantes introjetados desde cedo nos indivíduos. A própria noção de indivíduo tem uma coloração ideológica já que, utilizando os termos de Iasi, expressa pessoas “encapsuladas” em seu mundo, alienadas desde o ponto de vista da sua relação com o trabalho e repercutindo a ideologia liberal segundo a qual a sociedade seria uma mera somatória de indivíduos. Por suposto, tal senso comum está inteiramente alinhado com a lógica de reprodução do capital: a liberdade na perspectiva liberal é a liberdade do mercado ou mais  especificamente uma liberdade contratual envolvendo de um lado uma classe que vive da venda da força de trabalho e de outro uma classe detentora dos meios de produção que compra a força de trabalho e dela extrai mais valia.

O interessante do estudo de Mauro Iasi é que, além do vasto repertório teórico envolvendo este tema particularmente complexo a partir da apropriação não só de Marx, mas de Sartre e Freud, o professor conta por um lado com sua experiência como educador popular e por outro com entrevistas de campo junto a militantes mais ou menos engajados do movimento social e do movimento sindical, para traçar um panorama amplo e profundo sobre como se dá as passagens ou metamorfoses da consciência, desde a percepção do mundo pelo senso comum (qual seja a reprodução ideológica de ideias da classe dominante disfarçadas de “interesses universais”), até um momento inicial de negação que parte de uma práxis que põe em movimento uma realidade inerte por um primeiro agrupamento: uma luta parcial e pontual que agrupe e rompa com o enclausuramento individualizante e conforma uma primeira transformação da consciência. Iasi cita como exemplo depoimentos da primeira aproximação de militantes com alguma luta mais específica, seja uma mobilização de trabalhadores numa fábrica, seja nos primeiros contatos com um movimento grevista, seja uma luta popular em alguma comunidade. Há aqui uma primeira negação da realidade que pode avançar para um questionamento totalizante das relações sociais inertes (negação da negação progressiva), ou pode retroceder em uma nova lógica de serialidade, quando as ações objetivadas implicam numa burocratização (negação da negação regressiva).

O estudo contem dois blocos essenciais. O primeiro corresponde justamente à análise sob diversas perspectivas do problema da consciência e suas transformações. O fio condutor ou o que parece ser a indagação mais essencial do autor é buscar compreender como se dá estas passagens de consciência, em particular no que se refere ao salto do momento grupal para o momento classista, ou da classe em si em direção à classe para si.

O segundo bloco seria uma análise de caso. Servindo-se do denso e poderoso arsenal teórico trabalhado na primeira parte do livro, Iasi passa a analisar a história trágica (ou melhor dizendo farsesca) do PT, de um partido derivado das lutas operárias a partir do fim dos anos 1970, que reivindica o socialismo e o anti-capitalismo, a um partido da ordem que, segundo a conclusão do autor, estaria hegemonizado pela política pequeno-burguesa, estando mesmo abaixo da social-democracia no que se referiria ao menos a algumas reformas que efetivamente “acumulassem forças” em direção ao socialismo. O método da análise do professor Iasi dá-se pela leitura crítica dos cadernos de resolução dos encontros e congressos partidários. Por meio destes documentos oficiais fica bastante evidente a transformação do partido “da negação ao consentimento”. O que antes era “anticapitalismo” transforma-se em “antineoliberalismo”. O que era “classe trabalhadora” transforma-se gradualmente em “povo” e depois em “cidadão”. Palavras como “ruptura” e mesmo “socialismo” vão desaparecendo, falando-se agora em “consenso”, “democracia”, “pluralismo” e “estado de direito”.

Como explicar esta transformação, este movimento regressivo também impactando e sendo impactado pela consciência da classe (interrogação). Desde já, Iasi afasta-se tanto da tese de Jacob Gorender para quem a classe trabalhadora – ao ter como horizonte a luta econômica – é ontologicamente reformista. Também se afasta da perspectiva trotskysta de “crise de direção” que basicamente responsabiliza os dirigentes petistas partindo do pressuposto de que a classe operária é ontologicamente revolucionária e sempre estaria à disposição para romper com os limites da ordem. Como se pôde analisar nos primeiros capítulos, a classe operária pode ser tanto reformista quanto revolucionária, consoante um complexo número de fatores objetivos e subjetivos. No caso do PT há de se destacar dentre outros elementos a derrota e extinção da URSS, colocando o socialismo na defensiva em todo mundo; a derrota eleitoral, particularmente a mais impactante que foi o embate com Collor, aumentando as pressões pela moderação no discurso e na prática política; a burocratização do partido e seu inchaço através da conquista de postos no estado burguês, tendo como contrapartida a gradual assimilação do partido à ordem e seu afastamento da classe. A própria independência de classe vinha sendo gradualmente mitigada: inicialmente o PT dizia ser o partido da classe trabalhadora não admitindo em seu seio a burguesia, seja ela a rentista ou não. Gradualmente, o leque de alianças vai se ampliando, particularmente frente às pressões eleitorais, passando a incorporar setores da burguesia até diluir completamente qualquer resquício de classismo, o que estaria expresso em 2002 na “Carta ao Povo Brasileiro”, também conhecida como “Carta aos Banqueiros”, asseverando que o governo Lula manteria (como de fato manteve) a ortodoxia econômica do governo FHC.

Justamente por escapar de explicações reducionistas, a tese de Mauro Iasi é mais uma boa ferramenta para se analisar o ciclo histórico do PT, bem como cortejá-lo com as metamorfoses da consciência da classe trabalhadora no país. Estaria toda a esquerda e todos os seus partidos condenados à burocratização e o retorno à serialidade, conforme o tese existencialista (interrogação). Não, diz o autor e para concluir, Mauro Iasi cita Gramsci acerca da importância da intransigência política como forma de evitar as deformações. Não se trata de um circulo eterno da negação ao consentimento, da luta ao amoldamento à ordem, mas de um movimento em espiral em que as transformações elevam as condições de organizar e lutar da classe sob outro patamar, com avanços e retrocessos para a classe.


É possível distinguir dois tipos de marxismos. Um é o marxismo acadêmico, que possui pouca ou nenhuma confiança na classe trabalhadora e por isso prefere observar os processos à distância, não sem alguma arrogância de quem julga entender algo sobre a classe sem sequer conhece-la presencialmente e no cotidiano. Mauro Iasi não é este tipo de “marxista”: ele é um marxista militante e que portanto procura não só compreender os processos e fenômenos, mas atuar sob eles, além de persistir acreditando na possibilidade do socialismo e do comunismo. 

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