quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

“Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels


“Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels



Resenha Livro - “Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels – Editora Boitempo

“A época em que um velho país agrícola passa por tal transição – e, ainda por cima, acelerada por circunstâncias favoráveis – da manufatura e da pequena empresa para a grande indústria é também predominantemente um tempo de ‘escassez de moradia’.  Por um lado, as massas trabalhadoras rurais são atraídas de repente para as grandes cidades, que se transformaram em centros industriais; por outro lado a configuração arquitetônica dessas cidades mais antigas deixa de satisfazer às condições da nova grande indústria e do trânsito que lhe corresponde; suas ruas são alargadas e realinhadas, ferrovias instaladas no meio delas. No momento em que os trabalhadores afluem em massa, as moradias dos trabalhadores são derrubadas aos montes”.

“Sobre a Questão da Moradia” corresponde a três artigos de Engels publicados em 1872-3 no jornal do Partido Operário Social Democrata Alemão (Der Volksstaat). É uma refutação das soluções que a burguesia e a pequena burguesia dão para o problema da moradia (a escassez de moradia corresponde a sintoma da Revolução Industrial por que passa Inglaterra, França e posteriormente Alemanha). E mais: Engels ao abordar a questão busca defender posições teóricas do socialismo científico alemão. Na verdade, este trabalho foi publicado num contexto em que Marx e Engels estabeleceram entre si uma divisão de trabalho: Engels defenderia na imprensa as posições do socialismo científico enquanto Marx se dedicava à pesquisa propriamente científica. O livro é posterior ao “Manifesto do Partido Comunista” (1848) e ao primeiro volume do “O Capital” (1867 – Marx dedicou nada menos do que 25 anos para a publicação de sua crítica da economia política).

Há no Brasil hoje 5 milhões de imóveis ociosos, pouco menos do que o déficit habitacional do país. 

Engels descreve como a revolução industrial, com a sua acumulação e concentração de capital bem como pelo surgimento de novos contingentes de proletários, é um processo histórico que não pode ser contido através de enunciados morais ou jurídicos como postula o socialismo utópico. O modo de produção capitalista engendra e agudiza as contradições entre a cidade e o campo, tratando-se a questão da moradia bem como qualquer outra questão social como passíveis de serem solucionadas apenas através da superação deste modo de produção.

Em sentido oposto, o socialismo utópico entende que a revolução industrial como um todo é um fenômeno regressivo – propõem os utópicos o retorno da fábrica e das máquinas fabris  modernas à produção de mercadorias em pequena escala, através da associação para o trabalho de pequenos produtores. O socialismo utópico é um fenômeno específico das sociedades em transição ao capitalismo, corresponde à infância do proletariado – estes socialistas deparam-se com os horrores sociais do novo mundo fabril com  suas cidades poluídas e amontoados de trabalhadores vivendo em condições degradantes, buscando saídas que no limite são reacionárias como o retorno às condições pré-capitalistas de pequena propriedade[1].

O caráter de classe do socialismo utópico envolve os interesses da pequena burguesia – o seu projeto para a solução da questão da moradia é o singelo programa segundo o qual cada trabalhador teria direito à sua casa, à sua pequena horta, enfim, a uma pequena propriedade. Formulam a questão de forma idealista. O que ocorre nas ideias de Proudhon e Mullberg é uma certa crença, sem qualquer lastro científico, de que o “direito” e a “justiça” não são derivados das relações e das leis econômicas, mas o inverso – o econômico seria uma derivação ou sobredeterminação do jurídico. Há aqui nesta perspectiva utópica um salto salvador da realidade econômica para a fraseologia jurídica: a questão da moradia não deve ser encarada como um problema intimamente relacionado com a revolução industrial e os interesses capitalistas em seu conjunto, mas como um tema que poderia ser resolvido com arranjos legais, no caso, lei que reduza os juros dos contratos de locação de 1% até 0% e a aquisição da propriedade do imóvel a partir do pagamento em parcelas do valor do bem a longo prazo. Em que pese o socialismo utópico dizer respeito a um movimento político específico das sociedades em transição desde a Revolução Industrial – e portanto um conjunto de ideias em certa medida superado – é notável como a orientação social pequeno burguesa coincide com a esquerda pequeno burguesa tal a qual conhecemos hoje, com seu institucionalismo, sua fé cega no direito e nas leis do estado capitalista. E mais importante: o seu hábito de oferecer soluções prontas, institucionais, para questões que só podem ser solucionadas a partir de sua raiz, no caso, através do enfrentamento das contradições entre cidade e campo com a própria superação do capitalismo que engendra tais contradições:

“Em contrapartida, é pura utopia querer revolucionar a atual sociedade burguesa e preservar o agricultor como tal. Somente uma distribuição o mais homogênea possível da população pelo campo, somente uma vinculação íntima da produção industrial com a produção agrícola, em conjunto com a expansão dos meios de comunicação que desse modo se torna necessária – pressupondo a abolição do modo de produção capitalista – são capazes de arrancar a população rural do isolamento e do embrutecimento em que vegeta há milênios, quase do mesmo jeito”.

No segundo artigo, Engels oferece a solução propriamente burguesa para a questão da moradia. Há sociedades beneficentes de industriais e o estímulo ao auxílio mútuo para atenuar as mais precárias condições de moradia dos trabalhadores em Inglaterra e França. Engels desmascara o cinismo destas iniciativas: a preocupação inicial da classe dominante é com a proliferação de doenças (tifo, varíola, cólera), o embelezamento das regiões centrais urbanas com a correspondente expulsão de trabalhadores, além dos riscos de desabamento das moradias. Quando muito, interessa à burguesia o fornecimento de moradias ao trabalhador para incrementar sua produtividade. Curioso que a solução dos proudhonistas para a questão (aquisição da propriedade do imóvel mediante pagamento de parcelas que perfazem o valor do bem) já era então praticado pelos capitalistas ingleses, como fonte de lucros. Aqui no Brasil as primeiras gerações de trabalhadores se viam em situação parecida, com o endividamento do trabalhador face ao patrão, implicando em situação de ainda maior vulnerabilidade.

Muitas passagens sobre as mudanças de paisagem nas cidades, a concentração na periferia dos trabalhadores, sua expulsão em face dos riscos de saúde, a poluição total de novos centros industriais, tudo isso permanece bastante atual. Permanece verdadeira a assertiva segundo a qual o estado capitalista quando muito atuará para reiterar a dissimulação dos fatos: a escassez de moradia é produto do capitalismo, se baseia desde a origem na Revolução Industrial, na expulsão dos camponeses e sua proletarização. Mas também é a cidade o local de referência de uma nova classe social, não presa aos grilhões da mentalidade medieval com seus padres e moralistas. A revolução industrial produz a cidade e o proletariado que livre de seu vínculo secular com a terra e a tradição, bem como concentrado em centros urbanos, poderá erigir-se como classe antagônica à burguesia.   




[1] Na Comuna de Paris, foram os proudhonistas que se opuseram à nacionalização do Banco da França, medida que teria forçado a burguesia de Versalhes a negociar com os insurgentes pressionando para isso a aristocracia. Tal fato foi devidamente criticado por Marx.

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