“A Verdade
Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito
Resenha
Livro - “A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito – Edições do
Senado Federal V. 51
“O homem
deve proceder sempre de conformidade com a verdade. Ser verdadeiro, eis pois, a
regra suprema das ações. E este
princípio que claramente se deduz pela simples compreensão do mecanismo mesmo
da ação, também se poderá provar, não só pelo exame crítico da inteligência, mas
pela análise mesma do espírito, como ao mesmo tempo pela observação empírica da
natureza. Esta, efetivamente, é, em suas manifestações inferiores, puro
mecanismo, matéria inconsciente. Vem depois a vegetação; depois a animalidade;
e por fim o homem. É no homem que vem primeiro a necessidade orgânica; depois a
inclinação e o apetite, o desejo, a paixão, e por fim, a ideia, representação
abstrata da ordem das coisas, ou mais precisamente, o conhecimento. O
conhecimento é pois a manifestação superior, a última fase, o fim da evolução
universal”.
O mais provável
é que serão poucos os estudantes, pesquisadores e professores de filosofia e do
direito que conhecem as ideias originais do filósofo cearense Raymundo Farias
Brito. Nascido em São Benedito, interior do Ceará, em 1862, Farias Brito não
foi reconhecido como um pensador de ideias, alguém que contribui para a
filosofia não somente lecionando a sua história. A sua própria filosofia de
certa maneira pode explicar este esquecimento – vivendo em fins do XIX diante
de um contexto de hegemonia das ideias cientificistas, deterministas e
positivistas, Farias Brito propõe um caminho do pensamento em torno da busca da
verdade, ou mais exatamente, da busca pela verdade como regra da conduta
humana. Em que pese as ideias cientificistas então em voga aparentemente
sugerirem um mesmo movimento em direção ao conhecimento, observa-se, no Brasil
e no Mundo, contexto de abruptas mudanças, com a disseminação das indústrias,
das cidades, da formação da classe operária e uma crise de ideias tradicionais que
explicavam até então a natureza das coisas através de uma razão universal. A crítica ao materialismo em Farias Brito leva
em consideração o prolongamento natural daquelas ideias: o pessimismo e o
cepticismo, uma filosofia essencialmente negativa que eventualmente restrinja
os próprios horizontes filosóficos face um contexto de indeterminação e
mudanças profundas como, no Brasil, com o fim do II Império, a crise da Igreja
Católica e o fim do trabalho escravo.
Farias Brito
veio de uma família humilde. Em que pese os baixos rendimentos de seus pais,
pôde estudar desde cedo, inicialmente no Ginásio Sobralense. A mãe do filósofo
era indígena e fumava o cachimbo. Certa feita, a segunda esposa de Farias Brito
queixou-se do hábito da mãe ao que o filósofo respondeu: minha mãe lavou muita
roupa e panela para que eu pudesse estudar, não poderia exigir estas coisas
dela. Aos 16 anos o filósofo e sua família mudaram do interior do Ceará para
Fortaleza fugindo da grande seca de 1877. Um ano depois uma vasta epidemia de
varíola atingiria a capital do Ceará matando 26 mil pessoas, número assombroso
para a população da época. Em 1881, Farias Brito inicia seus estudos na
Faculdade de Direito do Recife. Esta escola tinha então um forte viés
cientificista – contrapondo-se de certa maneira à filosofia espiritualista e
idealista do nosso filósofo. Na universidade conviveria com Tobias Barreto e
Clóvis Beviláqua. Posteriormente, Farias Brito muda-se até Belém do Pará onde
leciona Filosofia do Direito na universidade daquele estado.
Consta que
Farias Brito tinha a intenção de trocar o norte pela capital no Rio de Janeiro.
Prestou concurso para lecionar no colégio Pedro II e diante da banca
examinadora ficou em primeiro lugar.
Tradicionalmente, o cargo, a ser escolhido pelo presidente da república, fora
sempre determinado pelo primeiro colocado no certame. Ocorre que Farias Brito
não tinha quase nenhuma influência política na capital e foi preterido pelo
segundo colocado, nada menos do que Euclides da Cunha[1].
Este “A
Verdade Como Regra das Ações” corresponde a curso ministrado pelo filósofo para
alunos de graduação de direito na Faculdade de Belém. O trabalho é dividido em
três partes: na primeira, a que mais nos interesse nos dias de hoje,
correspondendo a uma exposição geral das ideias do filósofo, acerca da
filosofia, da ciência, do direito e das formas normativas correspondentes à lei
moral, jurídica e natural. O segundo Livro trata do direito com a exposição e
crítica dos diferentes sistemas desenvolvidos ao longo da história. O terceiro livro
faz um resgate da concepção do direito natural dos antigos e dos modernos.
Nestes últimos, dá destaque a Hugo Grócio e Kant.
Para Farias
Brito o direito é universal, subsiste em todos os povos e sua finalidade é a
garantia da ordem social. O direito não se confunde com a moral: moral é a
norma de conduta imposta pela consciência ao passo que o direito é a norma de
conduta imposta pelo poder público. Lei moral é a autoridade da razão e a lei
jurídica é a autoridade do poder público. Ambas são diferentes das leis
naturais que são imutáveis, necessárias e irrevogáveis. O grau de perfeição das
leis jurídicas não dizem respeito porém ao conceito de justo. O grau de perfeição das leis jurídicas diz
respeito à tradução em maior ou menor fidelidade da consciência pública. Quando um monarca absolutista governa de
maneira despótica, conquanto sua intervenção diga respeito à convicção[2]
geral da população, a lei se mantém válida. Porém onde tal tradução não se
manifesta com fidelidade, passa a ser legítima mesma a revolução, conclusão até
certo ponto inusitada mas não sem lógica deste filósofo tradicionalista:
“Já não é a
lei, mas a força que governa. E nesse caso é legítima a revolução, sendo
necessário acentuar que se a opressão chega a tomar proporções exageradas e não
é possível vencê-la pela discussão, pela propaganda, pela persuasão, em uma
palavra, pela luta de ideias; neste caso, já não é somente um direito, mas um
dever moral reagir, empregando a força contra a força. É a força da razão que
degenera em inconsciência da força; é uma autoridade que cai por perder a
consciência da missão, e é uma consciência nova que se forma: é um poder que extravasa
e se abate, degenerando na inconsciência feroz da brutalidade; e é um poder
novo que nasce, fundado na inspiração de um novo ideal”.
Quanto ao
procedimento metodológico, observa-se que a filosofia de Farias Brito
encontra-se no campo idealista e especulativo. Suas ideias não envolvem tanto
as antinomias ou contradições mas
definições que se complementam dentro de um sistema que tem a ambição de ser
geral, universal. Verdade e ciência são igualmente distintas - a filosofia que almeja a verdade produz a ciência
tal qual a árvore produz os frutos:
“A ciência é o conhecimento organizado e verificado; a
filosofia é o conhecimento em via de formação. Em outros termos: a filosofia é
a organização do conhecimento científico; é a investigação do conhecido; é a
atividade mesma do espirito, elaborando o conhecimento e produzindo ciência. A
filosofia vem pois em primeiro lugar, como princípio da atividade; só depois
vem a ciência como produto desta mesma atividade; podendo se dizer, para
explicar o fato com uma imagem, a filosofia é como a árvore de que resulta como
fruto a ciência.”
Este “Verdade
Como Regra das Ações” foi publicado pela primeira vez em 1905. Uma segunda
edição do livro foi publicada pelo Instituto Nacional do Livro em 1953. Meio
século se passou para que as Edições do Senado Federal publicassem a terceira edição em 2005. Num
contexto de crise das ideias, da apologia de tudo o que é parcial e relativo, um
filósofo mulato que busca criar um sistema filosófico próprio baseado na
consciência, na busca da verdade como critério de conduta, na consciência como
movimento irresistível em direção ao desenvolvimento do espírito, tudo isso nos
parece como caminho válido e apenas aqui progressista para superação da
fragmentação e ceticismo cínico que demarca as “verdades” filosóficas do
momento.
[1] O
presidente de então era Nilo Peçanha.
[2] Em
Farias Brito a convicção é a verdade em sua versão subjetiva. Todavia a verdade
objetiva não é relativa: é o ponto para onde converge o conhecimento.
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