quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

“A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito


“A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito



Resenha Livro - “A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito – Edições do Senado Federal V. 51

“O homem deve proceder sempre de conformidade com a verdade. Ser verdadeiro, eis pois, a regra suprema das ações. E este princípio que claramente se deduz pela simples compreensão do mecanismo mesmo da ação, também se poderá provar, não só pelo exame crítico da inteligência, mas pela análise mesma do espírito, como ao mesmo tempo pela observação empírica da natureza. Esta, efetivamente, é, em suas manifestações inferiores, puro mecanismo, matéria inconsciente. Vem depois a vegetação; depois a animalidade; e por fim o homem. É no homem que vem primeiro a necessidade orgânica; depois a inclinação e o apetite, o desejo, a paixão, e por fim, a ideia, representação abstrata da ordem das coisas, ou mais precisamente, o conhecimento. O conhecimento é pois a manifestação superior, a última fase, o fim da evolução universal”.

O mais provável é que serão poucos os estudantes, pesquisadores e professores de filosofia e do direito que conhecem as ideias originais do filósofo cearense Raymundo Farias Brito. Nascido em São Benedito, interior do Ceará, em 1862, Farias Brito não foi reconhecido como um pensador de ideias, alguém que contribui para a filosofia não somente lecionando a sua história. A sua própria filosofia de certa maneira pode explicar este esquecimento – vivendo em fins do XIX diante de um contexto de hegemonia das ideias cientificistas, deterministas e positivistas, Farias Brito propõe um caminho do pensamento em torno da busca da verdade, ou mais exatamente, da busca pela verdade como regra da conduta humana. Em que pese as ideias cientificistas então em voga aparentemente sugerirem um mesmo movimento em direção ao conhecimento, observa-se, no Brasil e no Mundo, contexto de abruptas mudanças, com a disseminação das indústrias, das cidades, da formação da classe operária e uma crise de ideias tradicionais que explicavam até então a natureza das coisas através de uma razão universal.  A crítica ao materialismo em Farias Brito leva em consideração o prolongamento natural daquelas ideias: o pessimismo e o cepticismo, uma filosofia essencialmente negativa que eventualmente restrinja os próprios horizontes filosóficos face um contexto de indeterminação e mudanças profundas como, no Brasil, com o fim do II Império, a crise da Igreja Católica e o fim do trabalho escravo.

Farias Brito veio de uma família humilde. Em que pese os baixos rendimentos de seus pais, pôde estudar desde cedo, inicialmente no Ginásio Sobralense. A mãe do filósofo era indígena e fumava o cachimbo. Certa feita, a segunda esposa de Farias Brito queixou-se do hábito da mãe ao que o filósofo respondeu: minha mãe lavou muita roupa e panela para que eu pudesse estudar, não poderia exigir estas coisas dela. Aos 16 anos o filósofo e sua família mudaram do interior do Ceará para Fortaleza fugindo da grande seca de 1877. Um ano depois uma vasta epidemia de varíola atingiria a capital do Ceará matando 26 mil pessoas, número assombroso para a população da época. Em 1881, Farias Brito inicia seus estudos na Faculdade de Direito do Recife. Esta escola tinha então um forte viés cientificista – contrapondo-se de certa maneira à filosofia espiritualista e idealista do nosso filósofo. Na universidade conviveria com Tobias Barreto e Clóvis Beviláqua. Posteriormente, Farias Brito muda-se até Belém do Pará onde leciona Filosofia do Direito na universidade daquele estado.

Consta que Farias Brito tinha a intenção de trocar o norte pela capital no Rio de Janeiro. Prestou concurso para lecionar no colégio Pedro II e diante da banca examinadora  ficou em primeiro lugar. Tradicionalmente, o cargo, a ser escolhido pelo presidente da república, fora sempre determinado pelo primeiro colocado no certame. Ocorre que Farias Brito não tinha quase nenhuma influência política na capital e foi preterido pelo segundo colocado, nada menos do que Euclides da Cunha[1].
Este “A Verdade Como Regra das Ações” corresponde a curso ministrado pelo filósofo para alunos de graduação de direito na Faculdade de Belém. O trabalho é dividido em três partes: na primeira, a que mais nos interesse nos dias de hoje, correspondendo a uma exposição geral das ideias do filósofo, acerca da filosofia, da ciência, do direito e das formas normativas correspondentes à lei moral, jurídica e natural. O segundo Livro trata do direito com a exposição e crítica dos diferentes sistemas desenvolvidos ao longo da história. O terceiro livro faz um resgate da concepção do direito natural dos antigos e dos modernos. Nestes últimos, dá destaque a Hugo Grócio e Kant.

Para Farias Brito o direito é universal, subsiste em todos os povos e sua finalidade é a garantia da ordem social. O direito não se confunde com a moral: moral é a norma de conduta imposta pela consciência ao passo que o direito é a norma de conduta imposta pelo poder público. Lei moral é a autoridade da razão e a lei jurídica é a autoridade do poder público. Ambas são diferentes das leis naturais que são imutáveis, necessárias e irrevogáveis. O grau de perfeição das leis jurídicas não dizem respeito porém ao conceito de justo.  O grau de perfeição das leis jurídicas diz respeito à tradução em maior ou menor fidelidade da consciência pública.  Quando um monarca absolutista governa de maneira despótica, conquanto sua intervenção diga respeito à convicção[2] geral da população, a lei se mantém válida. Porém onde tal tradução não se manifesta com fidelidade, passa a ser legítima mesma a revolução, conclusão até certo ponto inusitada mas não sem lógica deste filósofo tradicionalista:

“Já não é a lei, mas a força que governa. E nesse caso é legítima a revolução, sendo necessário acentuar que se a opressão chega a tomar proporções exageradas e não é possível vencê-la pela discussão, pela propaganda, pela persuasão, em uma palavra, pela luta de ideias; neste caso, já não é somente um direito, mas um dever moral reagir, empregando a força contra a força. É a força da razão que degenera em inconsciência da força; é uma autoridade que cai por perder a consciência da missão, e é uma consciência nova que se forma: é um poder que extravasa e se abate, degenerando na inconsciência feroz da brutalidade; e é um poder novo que nasce, fundado na inspiração de um novo ideal”.   

Quanto ao procedimento metodológico, observa-se que a filosofia de Farias Brito encontra-se no campo idealista e especulativo. Suas ideias não envolvem tanto as  antinomias ou contradições mas definições que se complementam dentro de um sistema que tem a ambição de ser geral, universal. Verdade e ciência são igualmente distintas  - a filosofia que almeja a verdade produz a ciência tal qual a árvore produz os frutos:

“A ciência é o conhecimento organizado e verificado; a filosofia é o conhecimento em via de formação. Em outros termos: a filosofia é a organização do conhecimento científico; é a investigação do conhecido; é a atividade mesma do espirito, elaborando o conhecimento e produzindo ciência. A filosofia vem pois em primeiro lugar, como princípio da atividade; só depois vem a ciência como produto desta mesma atividade; podendo se dizer, para explicar o fato com uma imagem, a filosofia é como a árvore de que resulta como fruto a ciência.” 

Este “Verdade Como Regra das Ações” foi publicado pela primeira vez em 1905. Uma segunda edição do livro foi publicada pelo Instituto Nacional do Livro em 1953. Meio século se passou para que as Edições do Senado Federal  publicassem a terceira edição em 2005. Num contexto de crise das ideias, da apologia de tudo o que é parcial e relativo, um filósofo mulato que busca criar um sistema filosófico próprio baseado na consciência, na busca da verdade como critério de conduta, na consciência como movimento irresistível em direção ao desenvolvimento do espírito, tudo isso nos parece como caminho válido e apenas aqui progressista para superação da fragmentação e ceticismo cínico que demarca as “verdades” filosóficas do momento.


[1] O presidente de então era Nilo Peçanha.
[2] Em Farias Brito a convicção é a verdade em sua versão subjetiva. Todavia a verdade objetiva não é relativa: é o ponto para onde converge o conhecimento.

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