quarta-feira, 21 de setembro de 2016

“Utopia e Direito” – Alysson Leandro Mascaro

“Utopia e Direito” – Alysson Leandro Mascaro



Resenha Livro – 238- “Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia” – Ed. Quartier Latin

“Na utopia concreta marxista, a energia utópica exerce uma função crítica. A determinação de objetivos ideias (e necessariamente abstratos) para impulsos se conjuga para o conhecimento das tendências objetivas; sem utopia, o marxismo perderia ele mesmo sua atenção às tendências. A função da utopia vai mesmo mais longe: a conjunção do que há de “futuro no passado” com o conhecimento do presente transfigura e ultrapassa dialeticamente as próprias tendências. A utopia concreta, o marxismo, se define por três momentos: análise, crítica, projeto”. RAULET, Gerard. Utopie – Marxisme selon Ernst Bloch. Payot. Paris, 1976. P. 302.


Alysson Leandro Mascaro é Doutor e Livre Docente em Filosofia e Teoria Geral em Direito pela Faculdade de Direito da USP, onde também leciona disciplinas de filosofia da graduação. É um dos principais expoentes do pensamento crítico do Direito do país. Dentro das divisas propostas pelo próprio autor no que se refere às grandes linhas mestras do pensamento jusfilosófico contemporâneo, podemos destacar:

(i) As correntes juspositivistas, que detém maior peso no âmbito acadêmico e prático e que dizem respeito a certa noção do direito que equipara o justo com o direito posto, com a norma estatal. O juspositivismo propugna em última instância uma perspectiva formalista do direito, axiologicamente neutro e que tem como denominador comum o pensamento de Hans Kelsen e sua simbólica obra intitulada “Teoria Pura do Direito”.

(ii) As correntes não juspositivistas, que estão fora da orientação formalista e admitem portanto interfaces entre o fenômeno jurídico e a economia, a política e a sociedade, mas são genéricas e difusas em suas abordagens, ao ponto de agregar desde a concepção da microfísica do poder de Foucault ao decisionismo de Carl Smitt, este último reconhecido por sua inclinação junto ao nazismo.

(iii) As correntes críticas do direito que tem como origem ou denominador comum a crítica da economia política de Marx e que seria, do ponto de vista jurídico, melhor equacionado em termos de equiparação entre a forma mercantil e a forma jurídica a partir da obra do pensador soviética Pashukanis, aquela talvez mais fiel às categorias teórico-metodológicas do “Capital”. 

Segundo Mascaro, são as correntes críticas aquelas que dão o melhor alcance para um mais profundo esclarecimento do fenômeno jurídico.

“Utopia e Direito” é a tese com a qual Alysson Mascaro obteve a Livre-Docência em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O estudo está voltado à reflexão sobre o problema da Utopia, fazendo um inventário sobre a evolução histórica da apropriação do conceito, a recepção da noção de Utopia e sua recepção no seio do Marxismo.

A partir daqui exsurge o desenvolvimento original das reflexões de um marxista talvez não muito conhecido pelo público brasileiro, Ernst Bloch. Este alemão que viveu ao longo do século XX faz uma original apropriação do conceito da Utopia e desde aqui traz inovações interessantes para reflexões acerca da teoria da transição socialista, do problema do sentidos da história, da subjetividade e dos limites e deficiências do marxismo em dialogar com trabalhadores e povo ao negligenciar temas como o da esperança, a questão da “não contemporaneidade” e o não entendimento do embaralhamento da história.

Incialmente, a Utopia foi concebida por autores como Thomas More  (“Utopia”) ou Tomasso Campanella (“A Cidade do Sol”) no âmbito da Idade Moderna como projetos societários ideais.  A utopia é o não lugar e está fora da história: a Utopia de More é uma ilha onde não existe propriedade privada nem dinheiro, um paraíso onde não existem desigualdades. A própria palavra Utopia remete a sua intangibilidade: “ou” (não) e “topos” (lugar).

Posteriormente, dentro do marxismo, o conceito de Utopia receberia uma conotação negativa. É bastante conhecida a distinção feita por Marx e Engels entre o “Socialismo Utópico” e o “Socialismo Científico”. O que falta aos primeiros é a crítica da economia política marxista: a ausência de percepção acerca da determinação do modo de produção em cada período histórico sobre as demais esferas da vida social (estado, cultura, direito, religião, etc.); a propriedade dos meios de produção pela burguesia, a extração de mais valor e a centralidade da classe trabalhadora como sujeito de projeto de ruptura anticapitalista; o entrechoque entre as forças produtivas e o modo de produção como condição objetiva para os momentos de ruptura revolucionária; a cada vez mais nítida polarização da sociedade em classes distintas, trabalhadores e detentores do capital.

A ausência deste arcabouço teórico e de uma crítica materialista histórica e dialética da economia política tem como resultado dentre os socialistas utópicos (Owen, Proudhon, Fourier, etc.) projetos políticos com intenções igualitaristas mas que conciliam junto a propriedade privada, a sociedade cindida em classes e a situação de dominação de classes da burguesia imbricando via de regra em suas propostas com suposta repartição igualitária de riquezas em fracassos. Seja na fundações de colônias de trabalhos como em Owen (que culminou em fracasso) seja numa perspectiva de vanguardismo desprovido de base social e de classe em Blanqui (que esteve bastante presente no pensamento por de trás da Comuna de Paris), o sentido da Utopia aqui foi de ilusão, fuga da realidade e derrotas.

Ernst Bloch, judeu, alemão emigrado em face do nazismo, e marxista, irá retomar o problema da Utopia sob uma nova perspectiva, desta vez positiva. De início o autor faz uma diferenciação entre a Utopia Idealista (o “não lugar” que remete à “Utopia” de Thomas Morus) e a Utopia Concreta.

A Utopia Concreta estaria vinculada ao projeto do socialismo. O Socialismo é uma “utopia” pois tal sociedade ainda não existe. Mas também é “concreta” pois tal sociedade já é uma possibilidade real. De maneira ousada, Ernst Bloch envolve o Marxismo junto ao problema do presente e do futuro, algo que o próprio Marx fez de maneira muito parcimoniosa, por exemplo em sua “Crítica do Programa de Gotha” – De cada qual segundo suas capacidades, a cada qual segundo suas necessidades, seriam as divisas da futura sociedade comunista.

Importante destacar que a Utopia Concreta em Bloch, ao confrontar as delimitações entre presente e futuro, envolve aquilo que historiadores discutem como filosofia ou metodologia da História. Bloch utilizará o conceito de “Não-Contemporaneidade”. Ao contrário de toda uma tradição que remete desde o iluminismo, Bloch argumenta que a história não é linear. A história é aberta e sobreposta. E mais: a história é um somatório contraditório de demandas e necessidades não resolvidas o que justamente dá margem para a ideia da Utopia que nada mais é do que uma dialética antecipadora. Tais cogitações teriam o condão de explicar não só as razões da ascensão do nazismo na Alemanha, mas do porquê da derrota dos comunistas naquele país:

“Bloch aponta a falência da política marxista justamente na falta de compreensão desta não contemporaneidade dos explorados alemães. Eles eram explorados pelos argumentos do dinheiro, e o marxismo lhes apresentava, nos comícios, explicações econômicas a respeito do capital! O nazismo, sem seus comícios, falava dos sonhos de uma vida comunitária – nacional – liberta dos judeus mercenários, dos marxistas contabilistas, dos avarentos burgueses. O nazismo falsificava, mas ganhava corações. O marxismo apostava na ciência e no esclarecimento, mas não falava às almas dos proletários”.

Boas páginas da dissertação do professor Mascaro serão dedicados à Utopia Jurídica de Bloch. Trata-se aqui fundamentalmente da busca da dignidade humana, que se fundamenta num estudo específico sobre o Direito desde a obra “Direito Natural e Dignidade Humana” (1961). Há interfaces importantes entre o pensamento de Bloch e Pashukanis, mas o que se destaca dentro do autor alemão é justamente a ideia de herança: desde o acontecimento da Revolução Francesa, a burguesia não foi capaz de concretizar efetivamente suas palavras de ordem, igualdade, liberdade e fraternidade. Ao invés de abandonar os princípios jurídicos e rotulá-los como meras formas ideológicas de legitimação da dominação burguesa, Bloch segue um caminho oposto. Abandonar sim a lei, mas não o princípio da justiça e da dignidade humana que se concretiza no socialismo.


O que importa destacar é que o autor Ernst Bloch não parece ter a mesma reputação que outros grandes expoentes do marxismo, ao menos no Brasil, em que pese o mesmo ter escrito sobre temas tão diversos como a arte, a religião e o direito. Alguns de seus pontos merecem ser colocados em dúvida como o excessivo papel colocado na conta da religião e da moral como elementos associados à luta pela transformação anticapitalista. Outros pontos merecem uma leitura bastante atenta: o conceito da “não contemporaneidade” e sua geometria da história remetem à interpretação que Lênin deu ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo da Rússia a seu tempo e serviu como uma contribuição bastante original para o entendimento da derrocada da República de Weimar na Alemanha. Chegou o momento de editoras do Brasil como a Expressão Popular e a Boitempo publicarem as obras de Ernst Bloch.       

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