“Utopia e Direito” – Alysson Leandro Mascaro
Resenha Livro – 238- “Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia
Jurídica da Utopia” – Ed. Quartier Latin
“Na utopia concreta marxista, a energia utópica exerce uma
função crítica. A determinação de objetivos ideias (e necessariamente
abstratos) para impulsos se conjuga para o conhecimento das tendências
objetivas; sem utopia, o marxismo perderia ele mesmo sua atenção às tendências.
A função da utopia vai mesmo mais longe: a conjunção do que há de “futuro no
passado” com o conhecimento do presente transfigura e ultrapassa dialeticamente
as próprias tendências. A utopia concreta, o marxismo, se define por três
momentos: análise, crítica, projeto”. RAULET, Gerard. Utopie – Marxisme selon
Ernst Bloch. Payot. Paris, 1976. P. 302.
Alysson
Leandro Mascaro é Doutor e Livre Docente em Filosofia e Teoria Geral em Direito
pela Faculdade de Direito da USP, onde também leciona disciplinas de filosofia
da graduação. É um dos principais expoentes do pensamento crítico do Direito do
país. Dentro das divisas propostas pelo próprio autor no que se refere às
grandes linhas mestras do pensamento jusfilosófico contemporâneo, podemos
destacar:
(i) As correntes juspositivistas, que detém maior peso no
âmbito acadêmico e prático e que dizem respeito a certa noção do direito que
equipara o justo com o direito posto, com a norma estatal. O juspositivismo
propugna em última instância uma perspectiva formalista do direito, axiologicamente
neutro e que tem como denominador comum o pensamento de Hans Kelsen e sua simbólica
obra intitulada “Teoria Pura do Direito”.
(ii) As correntes não juspositivistas, que estão fora da
orientação formalista e admitem portanto interfaces entre o fenômeno jurídico e
a economia, a política e a sociedade, mas são genéricas e difusas em suas
abordagens, ao ponto de agregar desde a concepção da microfísica do poder de
Foucault ao decisionismo de Carl Smitt, este último reconhecido por sua
inclinação junto ao nazismo.
(iii) As correntes críticas do direito que tem como origem
ou denominador comum a crítica da economia política de Marx e que seria, do
ponto de vista jurídico, melhor equacionado em termos de equiparação entre a
forma mercantil e a forma jurídica a partir da obra do pensador soviética
Pashukanis, aquela talvez mais fiel às categorias teórico-metodológicas do “Capital”.
Segundo Mascaro, são as correntes críticas aquelas que dão o melhor alcance
para um mais profundo esclarecimento do fenômeno jurídico.
“Utopia e Direito” é a tese com a qual Alysson Mascaro
obteve a Livre-Docência em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco. O estudo está voltado à reflexão sobre o problema da
Utopia, fazendo um inventário sobre a evolução histórica da apropriação do
conceito, a recepção da noção de Utopia e sua recepção no seio do Marxismo.
A partir daqui exsurge o desenvolvimento original das
reflexões de um marxista talvez não muito conhecido pelo público brasileiro,
Ernst Bloch. Este alemão que viveu ao longo do século XX faz uma original
apropriação do conceito da Utopia e desde aqui traz inovações interessantes
para reflexões acerca da teoria da transição socialista, do problema do
sentidos da história, da subjetividade e dos limites e deficiências do marxismo
em dialogar com trabalhadores e povo ao negligenciar temas como o da esperança,
a questão da “não contemporaneidade” e o não entendimento do embaralhamento da
história.
Incialmente, a Utopia foi concebida por autores como Thomas More (“Utopia”) ou Tomasso Campanella (“A Cidade do Sol”) no âmbito da Idade Moderna como projetos societários ideais. A utopia é o não lugar e está fora da história: a Utopia de More é uma ilha onde não existe propriedade privada nem dinheiro, um paraíso onde não existem desigualdades. A própria palavra Utopia remete a sua intangibilidade: “ou” (não) e “topos” (lugar).
Posteriormente, dentro do marxismo, o conceito de Utopia receberia
uma conotação negativa. É bastante conhecida a distinção feita por Marx e
Engels entre o “Socialismo Utópico” e o “Socialismo Científico”. O que falta
aos primeiros é a crítica da economia política marxista: a ausência de
percepção acerca da determinação do modo de produção em cada período histórico
sobre as demais esferas da vida social (estado, cultura, direito, religião,
etc.); a propriedade dos meios de produção pela burguesia, a extração de mais
valor e a centralidade da classe trabalhadora como sujeito de projeto de
ruptura anticapitalista; o entrechoque entre as forças produtivas e o modo de
produção como condição objetiva para os momentos de ruptura revolucionária; a
cada vez mais nítida polarização da sociedade em classes distintas,
trabalhadores e detentores do capital.
A ausência deste arcabouço teórico e de uma crítica
materialista histórica e dialética da economia política tem como resultado dentre
os socialistas utópicos (Owen, Proudhon, Fourier, etc.) projetos políticos com
intenções igualitaristas mas que conciliam junto a propriedade privada, a
sociedade cindida em classes e a situação de dominação de classes da burguesia
imbricando via de regra em suas propostas com suposta repartição igualitária de
riquezas em fracassos. Seja na fundações de colônias de trabalhos como em Owen
(que culminou em fracasso) seja numa perspectiva de vanguardismo desprovido de
base social e de classe em Blanqui (que esteve bastante presente no pensamento
por de trás da Comuna de Paris), o sentido da Utopia aqui foi de ilusão, fuga
da realidade e derrotas.
Ernst Bloch, judeu, alemão emigrado em face do nazismo, e marxista, irá retomar o problema da Utopia sob uma nova perspectiva, desta vez positiva. De início o autor faz uma diferenciação entre a Utopia Idealista (o “não lugar” que remete à “Utopia” de Thomas Morus) e a Utopia Concreta.
A Utopia Concreta estaria vinculada ao projeto do
socialismo. O Socialismo é uma “utopia” pois tal sociedade ainda não existe.
Mas também é “concreta” pois tal sociedade já é uma possibilidade real. De
maneira ousada, Ernst Bloch envolve o Marxismo junto ao problema do presente e
do futuro, algo que o próprio Marx fez de maneira muito parcimoniosa, por
exemplo em sua “Crítica do Programa de Gotha” – De cada qual segundo suas
capacidades, a cada qual segundo suas necessidades, seriam as divisas da futura
sociedade comunista.
Importante destacar que a Utopia Concreta em Bloch, ao
confrontar as delimitações entre presente e futuro, envolve aquilo que
historiadores discutem como filosofia ou metodologia da História. Bloch
utilizará o conceito de “Não-Contemporaneidade”. Ao contrário de toda uma
tradição que remete desde o iluminismo, Bloch argumenta que a história não é
linear. A história é aberta e sobreposta. E mais: a história é um somatório
contraditório de demandas e necessidades não resolvidas o que justamente dá
margem para a ideia da Utopia que nada mais é do que uma dialética antecipadora.
Tais cogitações teriam o condão de explicar não só as razões da ascensão do
nazismo na Alemanha, mas do porquê da derrota dos comunistas naquele país:
“Bloch aponta a falência da política marxista justamente na
falta de compreensão desta não contemporaneidade dos explorados alemães. Eles
eram explorados pelos argumentos do dinheiro, e o marxismo lhes apresentava,
nos comícios, explicações econômicas a respeito do capital! O nazismo, sem seus
comícios, falava dos sonhos de uma vida comunitária – nacional – liberta dos
judeus mercenários, dos marxistas contabilistas, dos avarentos burgueses. O
nazismo falsificava, mas ganhava corações. O marxismo apostava na ciência e no
esclarecimento, mas não falava às almas dos proletários”.
Boas páginas da dissertação do professor Mascaro serão
dedicados à Utopia Jurídica de Bloch. Trata-se aqui fundamentalmente da busca
da dignidade humana, que se fundamenta num estudo específico sobre o Direito
desde a obra “Direito Natural e Dignidade Humana” (1961). Há interfaces importantes
entre o pensamento de Bloch e Pashukanis, mas o que se destaca dentro do autor
alemão é justamente a ideia de herança: desde o acontecimento da Revolução
Francesa, a burguesia não foi capaz de concretizar efetivamente suas palavras
de ordem, igualdade, liberdade e fraternidade. Ao invés de abandonar os
princípios jurídicos e rotulá-los como meras formas ideológicas de legitimação
da dominação burguesa, Bloch segue um caminho oposto. Abandonar sim a lei, mas
não o princípio da justiça e da dignidade humana que se concretiza no
socialismo.
O que importa destacar é que o autor Ernst Bloch não parece
ter a mesma reputação que outros grandes expoentes do marxismo, ao menos no
Brasil, em que pese o mesmo ter escrito sobre temas tão diversos como a arte, a
religião e o direito. Alguns de seus pontos merecem ser colocados em dúvida
como o excessivo papel colocado na conta da religião e da moral como elementos
associados à luta pela transformação anticapitalista. Outros pontos merecem uma
leitura bastante atenta: o conceito da “não contemporaneidade” e sua geometria
da história remetem à interpretação que Lênin deu ao desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo da Rússia a seu tempo e serviu como uma contribuição bastante
original para o entendimento da derrocada da República de Weimar na Alemanha.
Chegou o momento de editoras do Brasil como a Expressão Popular e a Boitempo
publicarem as obras de Ernst Bloch.
Nenhum comentário:
Postar um comentário