terça-feira, 13 de setembro de 2016

“Padre Sérgio” – Liev Tolstoi

“Padre Sérgio” – Liev Tolstoi



Resenha Livro - 237 - “Padre Sérgio” – Liev Tolstói – Ed. Cosac Naify

“Acredito no seguinte: acredito no Deus que entendo como espírito, como amor, como começo de tudo. Acredito que ele esteja em mim e eu, nele. Acredito que a vontade de Deus está expressa da forma mais clara e mais compreensível no ensinamento de Cristo homem, mas considero o maior sacrilégio tomá-lo por Deus e dirigir-lhe orações. Acredito que o verdadeiro bem do homem é o cumprimento da vontade de Deus, a vontade de que as pessoas se amem umas às outras e em consequência ajam umas com as outras como gostariam que agissem consigo próprias, como foi dito no Evangelho, que é a única lei, ao lado dos profetas. Acredito que a vida de cada homem só tem sentido, portanto, na ampliação do amor; que essa ampliação do amor conduz cada homem a um bem cada vez maior nesta vida, concede após a morte um bem tanto maior quanto maior for o seu amor, e ao mesmo tempo contribui para o estabelecimento do reino de Deus neste mundo, isto é, daquele sistema de vida no qual as discórdias, embustes e violências agora reinantes serão substituídas pela livre concórdia, pelo amor verdadeiro e fraternal entre as pessoas”. Liev Tolstói. “Resposta à Resolução do Sínodo de 20-22 de Fevereiro de 1901 e às Cartas Recebidas Nessa Ocasião”.

“Padre Sérgio” é uma pequena narrativa escrita pelo romancista russo Liev Tolstói em 1890 e publicada em 1898. Estamos diante de um contexto em que Tolstói já gozava de plena reputação como escritor após a publicação dos seus mais famosos romances, Ana Karenina (1875-1877) e Guerra e Paz (1865-1869).

Podemos falar aqui de uma fase tardia da produção artística deste grande escritor russo. Sabe-se que por volta de 1870, Tolstói teve uma espécie de crise religiosa, uma experiência íntima a partir da qual o escritor refugiou-se numa espécie de casa de campo – a Yasnaya Polyana – onde se dedicaria a uma vida ascética. Após uma espécie de conversão, Tolstói parou de beber, fumar e passou a viver a vida conforme preceitos cristãos. Abriu escola para camponeses, estudou com afinco o cristianismo e a história de Santos.

“Padre Sérgio” refere-se portanto a este último período de vida de Tolstoi. Alguns críticos veriam nesta obra algo como uma iniciativa panfletária, consoante as ideias originais do escritor sobre o cristianismo – que logo estariam em contradição em face da Igreja Ortodoxa Russa ao ponto de Tolstói ser excomungado. Mas tal interpretação deste denso e belo texto ficcional não parece ser uma boa interpretação de “Padre Sérgio”. Se esta novela[1] fosse uma mera obra panfletária reduzida a um alcance religioso, seria uma obra datada e que, de resto, serviria apenas como fonte para a curiosidade histórica de leitores dedicados especificamente à obra de Tolstói. Certamente, não é o caso.

Em incríveis 60 e poucas páginas, um leitor do século XXI, mesmo não envolvido em questões religiosas, deve ser tocado pela história de um brilhante comandante do esquadrão de honra, com um futuro brilhante como ajudante de campo do czar, às vésperas de um casamento com uma bela dama de honra protegida pelo imperador, que rompe com o noivado, entrega seus rendimentos à irmã e parte de forma definitiva ao monastério.

Trata-se de uma obra densa, concentrada, em que a objetividade e um certo realismo formal se condensam em passagens que abrem enormes possibilidades de reflexão sobre a condição humana, e, em particular, sobre o fato de o ser humano estar sempre eivado de contradições – as hesitações, a culpa ou o remorso do protagonista tocam o leitor atual do começo ao fim do livro, podendo-se extrair daqui a conclusão de que estamos diante de uma preciosa obra de arte, de uma literatura com vocação universal.

Mas, ponderamos, certamente em Padre Sérgio (Kassátski), há sim críticas que Tolstói desenvolve em face da Igreja. O protagonista, o Padre Sérgio, sufoca sentimentos perniciosos como a ausência de humildade, a vaidade e um irremediável temperamento competitivo por uma espécie de cega obediência a seu Stárietz, um monge e guia espiritual superior. O interessante é que aqueles defeitos de personalidades são levados à vida do monastério como se o próprio Padre Sérgio não os tivesse em conta:

“Em sua aparência externa, Kassátski dava a impressão de ser um jovem normal, brilhante oficial da guarda fazendo carreira por mérito próprio. Porém, uma contenda complexa e intensa travava-se em seu interior. Desde a infância, essa contenda assumira  várias formas, mas na essência tudo se resumia a um único objetivo: todos os seus passos não tinham outro fim senão o de alcançar a perfeição e o sucesso que suscitariam o elogio e a admiração das pessoas. Apegava-se quer aos estudos, quer às ciência, e trabalhava até que o elogiassem e o apontassem como exemplo aos demais. Alcançando um objetivo, partia para outro. Assim conseguiu o primeiro lugar em ciências; assim, quando ainda cursava a Academia, percebendo que estava fraco em conversação francesa, esforçou-se até conseguir em francês a mesma fluência que tinha em russo; assim, mais tarde, ainda na Academia, ao se dedicar ao xadrez, esforçou-se até conseguir jogar à perfeição”.

Da Capacidade de Rir de Si: amadurecimento pessoal do Padre Sérgio

O itinerário do protagonista vai de sua promissora carreira militar e da vida conjugal rompida, à vida no Monastério. Vive em dois monastérios distintos e depois passa a viver como um eremita dentro de uma gruta por mais de 6 anos. Daqui alguns desenvolvimentos incríveis colocariam em marcha a vida de Padre Sérgio: mas vamos poupar o leitor de informações acerca do paradeiro de Kassátski. Não esperamos retirar a expectativa final de uma leitura prazerosa.

Importa-nos aqui sinalizar como o protagonista, neste seu itinerário, parece evoluir, amadurecer e empoderar- se. Todo tempo de alto-reclusão e retiro espiritual pode ter implicado numa experiência de auto-conhecimento que irá envolver....a capacidade pelo Padre Sérgio de rir de si próprio:

“Meu Deus! Meu Deus!” – pensava – “Por que não me alimentas de fé? Há concupiscência em mim, é verdade, mas também Santo Antônio e outros santos lutaram contra ela, com fé. Eles tinham fé; eu, no entanto, passo minutos, horas, dias, sem que a fé me socorra. Por que todo esse mundo repleto de encantos, se o pecado existe e devemos renunciar a ele? Para que criaste a tentação? Tentação? Mas não será tentação o fato de eu querer me afastar dos prazeres terrenos e me preparar para algo que talvez não exista?” – dizia a si mesmo horrorizado, com nojo de si mesmo. “Canalha! Canalha! E ainda tem a pretensão de se tornar santo” – repreendeu-se. E pôs-se a orar. Porém, mal havia iniciado suas orações e a imagem nítida de como vivera no monastério já lhe surgiu à mente: uma figura majestosa de manto de klobut. E sacudiu a cabeça: “Não, isso não está certo. É ilusão. Posso iludir aos outros, mas não a mim mesmo nem a Deus. Não sou essa figura majestosa e sim um homem lastimável, ridículo”. Levantou a batina e ficou olhando as pernas magras saindo pelas ceroulas. E sorriu”.    






[1] Estamos em desacordo com a classificação desta narrativa como Conto. Para uma breve justificativa, os contos, além da brevidade, parecem ter como pressuposto uma forma narrativa linear de começo, meio e fim, o que não se verifica em “Padre Sérgio”. 

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