“Padre Sérgio” – Liev Tolstoi
Resenha Livro - 237 - “Padre Sérgio” – Liev Tolstói – Ed. Cosac
Naify
“Acredito no
seguinte: acredito no Deus que entendo como espírito, como amor, como começo de
tudo. Acredito que ele esteja em mim e eu, nele. Acredito que a vontade de Deus
está expressa da forma mais clara e mais compreensível no ensinamento de Cristo
homem, mas considero o maior sacrilégio tomá-lo por Deus e dirigir-lhe orações.
Acredito que o verdadeiro bem do homem é o cumprimento da vontade de Deus, a
vontade de que as pessoas se amem umas às outras e em consequência ajam umas
com as outras como gostariam que agissem consigo próprias, como foi dito no
Evangelho, que é a única lei, ao lado dos profetas. Acredito que a vida de cada
homem só tem sentido, portanto, na ampliação do amor; que essa ampliação do
amor conduz cada homem a um bem cada vez maior nesta vida, concede após a morte
um bem tanto maior quanto maior for o seu amor, e ao mesmo tempo contribui para
o estabelecimento do reino de Deus neste mundo, isto é, daquele sistema de vida
no qual as discórdias, embustes e violências agora reinantes serão substituídas
pela livre concórdia, pelo amor verdadeiro e fraternal entre as pessoas”. Liev Tolstói.
“Resposta à Resolução do Sínodo de 20-22 de Fevereiro de 1901 e às Cartas
Recebidas Nessa Ocasião”.
“Padre
Sérgio” é uma pequena narrativa escrita pelo romancista russo Liev Tolstói em
1890 e publicada em 1898. Estamos diante de um contexto em que Tolstói já gozava
de plena reputação como escritor após a publicação dos seus mais famosos
romances, Ana Karenina (1875-1877) e Guerra e Paz (1865-1869).
Podemos falar aqui de uma fase tardia da produção artística
deste grande escritor russo. Sabe-se que por volta de 1870, Tolstói teve uma
espécie de crise religiosa, uma experiência íntima a partir da qual o escritor
refugiou-se numa espécie de casa de campo – a Yasnaya Polyana – onde se
dedicaria a uma vida ascética. Após uma espécie de conversão, Tolstói parou de
beber, fumar e passou a viver a vida conforme preceitos cristãos. Abriu escola
para camponeses, estudou com afinco o cristianismo e a história de Santos.
“Padre Sérgio” refere-se portanto a este
último período de vida de Tolstoi. Alguns críticos veriam nesta obra algo como
uma iniciativa panfletária, consoante as ideias originais do escritor sobre o
cristianismo – que logo estariam em contradição em face da Igreja Ortodoxa
Russa ao ponto de Tolstói ser excomungado. Mas tal interpretação deste denso e
belo texto ficcional não parece ser uma boa interpretação de “Padre Sérgio”. Se
esta novela[1]
fosse uma mera obra panfletária reduzida a um alcance religioso, seria uma obra
datada e que, de resto, serviria apenas como fonte para a curiosidade histórica
de leitores dedicados especificamente à obra de Tolstói. Certamente, não é o
caso.
Em incríveis 60 e poucas páginas,
um leitor do século XXI, mesmo não envolvido em questões religiosas, deve ser
tocado pela história de um brilhante comandante do esquadrão de honra, com um
futuro brilhante como ajudante de campo do czar, às vésperas de um casamento
com uma bela dama de honra protegida pelo imperador, que rompe com o noivado,
entrega seus rendimentos à irmã e parte de forma definitiva ao monastério.
Trata-se de uma obra densa,
concentrada, em que a objetividade e um certo realismo formal se condensam em
passagens que abrem enormes possibilidades de reflexão sobre a condição humana,
e, em particular, sobre o fato de o ser humano estar sempre eivado de
contradições – as hesitações, a culpa ou o remorso do protagonista tocam o
leitor atual do começo ao fim do livro, podendo-se extrair daqui a conclusão de
que estamos diante de uma preciosa obra de arte, de uma literatura com vocação
universal.
Mas, ponderamos, certamente em Padre
Sérgio (Kassátski), há sim críticas que Tolstói desenvolve em face da Igreja. O
protagonista, o Padre Sérgio, sufoca sentimentos perniciosos como a ausência de
humildade, a vaidade e um irremediável temperamento competitivo por uma espécie
de cega obediência a seu Stárietz, um monge e guia espiritual superior. O
interessante é que aqueles defeitos de personalidades são levados à vida do
monastério como se o próprio Padre Sérgio não os tivesse em conta:
“Em sua aparência externa,
Kassátski dava a impressão de ser um jovem normal, brilhante oficial da guarda
fazendo carreira por mérito próprio. Porém, uma contenda complexa e intensa
travava-se em seu interior. Desde a infância, essa contenda assumira várias formas, mas na essência tudo se
resumia a um único objetivo: todos os seus passos não tinham outro fim senão o
de alcançar a perfeição e o sucesso que suscitariam o elogio e a admiração das
pessoas. Apegava-se quer aos estudos, quer às ciência, e trabalhava até que o
elogiassem e o apontassem como exemplo aos demais. Alcançando um objetivo,
partia para outro. Assim conseguiu o primeiro lugar em ciências; assim, quando
ainda cursava a Academia, percebendo que estava fraco em conversação francesa,
esforçou-se até conseguir em francês a mesma fluência que tinha em russo;
assim, mais tarde, ainda na Academia, ao se dedicar ao xadrez, esforçou-se até
conseguir jogar à perfeição”.
Da Capacidade de Rir de Si: amadurecimento pessoal do Padre
Sérgio
O itinerário
do protagonista vai de sua promissora carreira militar e da vida conjugal
rompida, à vida no Monastério. Vive em dois monastérios distintos e depois
passa a viver como um eremita dentro de uma gruta por mais de 6 anos. Daqui
alguns desenvolvimentos incríveis colocariam em marcha a vida de Padre Sérgio:
mas vamos poupar o leitor de informações acerca do paradeiro de Kassátski. Não
esperamos retirar a expectativa final de uma leitura prazerosa.
Importa-nos aqui sinalizar como o protagonista, neste seu
itinerário, parece evoluir, amadurecer e empoderar- se. Todo tempo de
alto-reclusão e retiro espiritual pode ter implicado numa experiência de
auto-conhecimento que irá envolver....a capacidade pelo Padre Sérgio de rir de
si próprio:
“Meu Deus! Meu Deus!” – pensava – “Por que não me alimentas
de fé? Há concupiscência em mim, é verdade, mas também Santo Antônio e outros
santos lutaram contra ela, com fé. Eles tinham fé; eu, no entanto, passo
minutos, horas, dias, sem que a fé me socorra. Por que todo esse mundo repleto
de encantos, se o pecado existe e devemos renunciar a ele? Para que criaste a
tentação? Tentação? Mas não será tentação o fato de eu querer me afastar dos
prazeres terrenos e me preparar para algo que talvez não exista?” – dizia a si
mesmo horrorizado, com nojo de si mesmo. “Canalha! Canalha! E ainda tem a
pretensão de se tornar santo” – repreendeu-se. E pôs-se a orar. Porém, mal
havia iniciado suas orações e a imagem nítida de como vivera no monastério já
lhe surgiu à mente: uma figura majestosa de manto de klobut. E sacudiu a
cabeça: “Não, isso não está certo. É ilusão. Posso iludir aos outros, mas não a
mim mesmo nem a Deus. Não sou essa figura majestosa e sim um homem lastimável,
ridículo”. Levantou a batina e ficou olhando as pernas magras saindo pelas
ceroulas. E sorriu”.
[1]
Estamos em desacordo com a classificação desta narrativa como Conto. Para uma
breve justificativa, os contos, além da brevidade, parecem ter como pressuposto
uma forma narrativa linear de começo, meio e fim, o que não se verifica em “Padre
Sérgio”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário